segunda-feira, 24 de julho de 2017

Pedido de audiências públicas para tratar dos impactos de Ferrovia Paraense (FEPASA)


Belém do Pará, 24 de julho de 2017.


Ao. Ilmo. Sr. LUIZ FERNANDES ROCHA
Secretário Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS) – Governo do Pará


Assunto: Solicitação (faz)


Sr. Secretário,


Nós, organizações da sociedade civil e núcleos de pesquisa, vimos, através desta, solicitar que as audiências públicas que tratarão dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) do empreendimento denominado Ferrovia Paraense (FEPASA) aconteçam nos 23 municípios afetados pelo mesmo. Aproveitamos esta oportunidade para reiterar que a ocorrência das ditas audiências não exclui de maneira alguma a realização da Consulta Prévia, Livre e Informada dos povos indígenas e comunidades tradicionais, com base nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) da qual o Brasil e signatário, cujos territórios serão direta ou indiretamente impactados.


Certos de que V. Sa. irá atender esta justa demanda da sociedade civil, despedimo-nos.
Respeitosamente,



Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB)
Articulação Nacional de Agroecologia (ANA Amazônia)
Associação Brasileira de ONGs (ABONG-PA)
Associação Quilombola África e Laranjituba (Abaetetuba)
Caritas Brasileira Regional Norte II
Caritas Diocesana Dom Ângelo Frosi (Abaetetuba)
Comissão Pastoral da Terra (Abaetetuba)
Conselho Indigenista Missionário Norte II (CIMI)
Consulta Popular
Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará (MALUNGU)
FASE Programa Amazônia
Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura do Estado do Pará (FETAGRI)
Fórum da Amazônia Oriental (FAOR)
Fórum de Mulheres da Amazônia Paraense (FMAP)
Grupo de Estudos Sociedade, Território e Resistência na Amazônia (GESTERRA/UFPA)
Grupo de Pesquisa Povos e Comunidades Tradicionais em Resistência e Re-existência na
Terra – ReExisterra (UFPA)
Instituto Universidade Popular (UNIPOP)
Movimento Barcarena Livre
Movimento de Mulheres do Nordeste Paraense (MMNEPA)
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
Movimento dos Ribeirinhos e Ribeirinhas das Ilhas e Várzea de Abaetetuba (MORIVA)
Movimento Social pelo Direito à Moradia Digna (Abaetetuba)
Paróquia Nossa Rainha da Paz (Abaetetuba)
Pastoral da Juventude da Diocese de Abaetetuba
Pastoral Social da Paróquia Santuário (Abaetetuba)
Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas (PPGAA/UFPA)
Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA)
Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais de Abaetetuba


quinta-feira, 20 de julho de 2017

A Linha da Cobiça






O Menino e o Mundo - Filme de Alê Abreu

(como eu me sinto)



Carlos Augusto Ramos[1]


Caríssim@s Dilva, Mariana, Mário e Luiz,

Na proporção direta do sofrimento de quem está Abaixo da Linha da Pobreza, é a responsabilidade de quem está Acima da Linha da Cobiça.

A Linha da Cobiça.

Tal termo pesquei no Livro Descolonizar o Imaginário[2], que coincidentemente conheci em meio a três episódios recentes que podem muito bem explicar (infelizmente) o outro lado da gangorra mundial e a tentativa de muitas pessoas em ultrapassar inconscientemente esta linha, a da Cobiça.

Na primeira análise de três partes aqui apresentadas, descrevo o Projeto de Lei 107, de autoria do deputado estadual Hildegardo Nunes, que dispõe reconhecer a pecuária no Marajó como única atividade tradicional, a despeito (mesmo!) das atividades extrativistas como a coleta de açaí, a pesca artesanal, a extração do óleo de andiroba e dos plantios de mandioca para a produção de farinha, colocadas à escanteio como “complementares” pelo texto. Em tramitação na Assembleia Legislativa do Pará, o PL 107 traz por um lado, o simbólico de que o gado e seu fazendeiro são mais importantes do que a população centenária e quiçá milenar na qual nos é origem; por outro, a necessidade de ao reagir, façamos uma avaliação crítica de um termo que nos foi imposto, de extrativistas.

Nosso país (apontável no mapa mundi, mas que ultimamente tem escancarado como somos frágeis enquanto Nação) possui uma longa tradição de uso comum da terra, numa misturada de povos nativos, afrodescendentes e migrantes europeus. Porém, pouco recebera ao longo dos séculos o reconhecimento à altura que merece do poder político e econômico hegemônicos que pudessem bem aproveitar esta rica soma entre diversidade cultural e natureza generosa, bem diria o eterno Jean Pierre Leroy[3]. O sentimento individualista e a vontade de estar Acima da Linha da Cobiça de quem detém o capital e os meios de comunicação[4] preferiram influenciar a conquista de direitos dos povos nativos como a Marajoara, dificultando-lhes o acesso à políticas públicas como saúde, trabalho e educação – a inclusão ao restante do país, porém, exigindo que tais povos fizessem parte do sistema extrativista-capitalista, forçando-os a também serem considerados como extrativistas. Hoje me pergunto se o são. E nesta brincadeira sádica de incluir nos planejamentos estratégicos governamentais quem vive da terra conforme conveniência, seguimos mantendo o que o economista equatoriano Alberto Acosta analisa: que a pobreza em muitos países do mundo está relacionada com a existência de uma significativa riqueza em recursos naturais. Os países ricos em recursos naturais, cujas economias são sustentadas prioritariamente em sua extração e exportação, encontram maiores dificuldades para se desenvolver[5].

Por tal, o extrativismo nos é uma maldição, não criada enquanto conceito pelos nativos, mas sempre lembrada conforme o bel prazer de mandatários não nativos. Quando não, entende-se como função complementar de uma região como o Marajó, segundo a PL 107. Nem mais, nem menos. Por isso, o texto já submetido à ALEPA já nasce errado, uma vez que extrativismo não seria o melhor termo para nos explicar. Deve-se pensar em algo que realmente nos explique, ou na falta de um termo abrangente, que cada Bem Comum como explica Jean Pierre Leroy ou Bem e Serviço Florestal, que exercitei para aquilo que a floresta provém, faça este trabalho[6]. Desta forma, sugere-se que as atividades realmente tradicionais são os Bens Comuns que nos alimentaram, geraram renda e nos abrigaram. Ou seja, a coleta de açaí, a pesca artesanal, a extração do óleo de andiroba, as cordas feitas das enviras das árvores, as palhas de bussu são verdadeiramente atividades tradicionais, não relegáveis a um segundo plano. A indicação de ser a pecuária a única atividade consagrada no Marajó pelo Estado Paraense seria uma atitude Acima da Linha da Cobiça, uma espécie de grilagem, só que no campo das ideias. Como se não bastasse seu triste histórico de apoio a quem desmata e gera conflitos agrários[7].

Sementes de Andiroba. Foto: FASE



No segundo caso que decidi discorrer para caracterizar a Linha da Cobiça, volto-me para a mineração. Uma atividade econômica danosa à natureza, sempre danosa. Por isso, quando leio que aqui e acolá fazem Estudos de Impacto Ambiental da Mineração, eis que percebo a essência do eufemismo[8], um dos anestesiantes da reflexão sobre o que está em jogo. Não é mero impacto, é DANO!

O que dizer do COLTAN (columbita-tantalita) cujas minas do Congo mostram toda a maldade e frieza dos ricos acima da Linha da Cobiça? Sem questionar as marcas de celulares que você e eu utilizamos, seguimos para subir esta linha alienados, enquanto desumanamente paga-se aos mineiros (homens, mulheres) U$2,50 por quilo garimpado e às crianças U$0,25 por dia trabalhado nos buracos escavados, na tenra idade seus 7 anos[9]. Detalhe: um quilo vale no mercado U$500,00. Por isso, cada celular comprado por um capricho confirma o sentimento de consumismo e influencia diretamente na vida dos congoleses. Pobre Mãe África! Sendo berço da Humanidade, tantos flagelos movidos pelo egoísmo de diversas pedras e metais.

Presenciei uma situação curiosa outro dia, em Almeirim, mais especificamente no meio rural do Distrito de Monte Dourado. Um senhor muito apressado surgiu na comunidade em que eu estava para fazer uma pesquisa mineral. Quando uma das dirigentes da comunidade perguntou se era possível antes fazer uma reunião com as lideranças, ele insistiu: estava com pressa e disse ser do Governo Federal (de fato estava ali uma Pick-up com adesivo de ORDEM E PROGRESSO), do Departamento Nacional de Produção Mineral. Perguntei se algum ofício foi enviado àquela associação comunitária anteriormente e expliquei que os moradores locais tinham Plano de Uso dos Castanhais. O senhor já bem chateado sentenciou que não haveria recursos financeiros federais para a localidade se a pesquisa não fosse feita. E foi embora. Devia estar num mal dia. Imagina estar longe da sua casa procurando bauxita em seu trabalho para manter sua família. Sinto pesar que as pessoas sejam tão engolidas pelos processos que não consideram os efeitos de projetos que viram de ponta-cabeça em pouco tempo a vida de quem só queria sossego. O senhor da Pick-up ORDEM E PROGRESSO é pobre, eu sou pobre, provavelmente tu que me lês idem. Rico é somente os pontos extremos de um arco mundial que coloca o super-rico material que não precisa trabalhar pois possui tanto dinheiro que os outros que se virem por ele. Na outra ponta, o rico da natureza, mantido pela Mãe Terra genuinamente como nossos povos nativos. Fora destes pontos, somos todos pobres para procurar sustento, em base de dinheiro que seja para comprar uma lata de sardinha, pois do contrário, passas fome. Para onde vais neste pêndulo? O que escolhes? Eis a crise de nossa existência.




Na terceira e última revista que faço enquanto a figura simpática e enigmática do “Menino e o Mundo” me passa na vista[10], lembro do Orçamento Geral da União em 2017, que indigna hoje e pelos próximos 20 anos com a aprovação da Emenda Constitucional 95, que limita por tal período os gastos públicos. Naquele dia, o Pacto de Nação foi estremecido, pois condena brasileirinhos e brasileirinhas nascid@s naquele dia como sujeit@s desde já à contenção de despesas. Uma Ode para os Acima da Linha Cobiça recitaram os legisladores que aprovaram esta emenda. Nobres congressistas que se mantém às custas dos milhões de brasileiros na outra linha. As mortes por precariedade de atendimento de cada habitante deste país não-sei-se-nação causadas por esta lei que protege os bancos privados lhes serão creditados. Faço questão de divulgar por aí. As listas de votação já foram baixadas por mim[11].






Segundo José de Souza Silva, que provoca a necessidade da uma nova institucionalidade para as relações humanas[12], é preciso refletir-agir na seguinte pergunta: Mudar as coisas ou mudar as pessoas que mudam as coisas? Para o estudioso da EMBRAPA, a inovação institucional pode transformar as formas de interpretação da realidade, criticamente, precedendo a tecnologia instrumental. É preciso sair fora da caixinha colocada há 500 anos pelos pensadores do mercantilismo que enriqueceram a Europa e os EUA a partir da “sangria” dos recursos naturais da América Latina, África e Ásia.


Um dos efeitos mais perversos desta histórica servidão é o estabelecimento do sentimento de que o local, o território, a vida no município, não tem voz nem capacidade de confrontar o sistema. Para José Silva, as instituições de governo, da iniciativa privada e da sociedade civil precisam realinhar suas ações entendendo que “nada é superior à vida”; que todo ser humano busca formas distintas de saber o sentido de sua existência; que a dicotomia superior x inferior, hemisfério norte x sul e desenvolvido x subdesenvolvido são invenções político-ideológicos de dominação. E o que é mais afiado de se perceber: o desenvolvimento sustentável não é conceito e sim uma promessa não cumprida!  

Em relação ao desenvolvimento sustentável, acho que cada morador ou território bem poderia definir o que quer na sua passagem pela terra, sujeitos vivos que são, não arrastáveis como zumbis de seriados. Com certeza saberão explicar o que não querem.


Então assim, sonho: quem dera se os moradores do menor IDH do Brasil, Melgaço; o menor PIB per capita brasileiro, Curralinho e o local de maior incidência histórica de malária, Anajás, se juntassem para uma ação coletiva contra a EC 95, com desdobramentos na dívida pública brasileira. Utilizar dos meios jurídicos para questionar as últimas leis nocivas ao nosso Bem-Estar Social seria uma tentativa interessante, formalizando que esta geração resolve gritar “Não!” aos vinte anos de sufocamento de inocentes. “Estão nos matando aos poucos...”, disse-me um amigo outro dia.


Então movimentemo-nos. Sejamos resultado e ferramenta de uma nova era da Humanidade.


Método? Ter a mente e o coração abaixos da Linha da Cobiça é já um bom começo.



Breves e Portel, 12 de julho de 2017.








[1] Engenheiro Florestal, consultor socioambiental.
[2] Descolonizar o Imaginário: Debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento – organizado pelo do Grupo Permanente de Trabalho sobre Alternativas ao Desenvolvimento apoiado pela Fundação Rosa Luxemburgo.
[3] Mestre que escreveu o livro Mercado ou Bens Comuns? O Papel dos Povos Indígenas, Comunidades Tradicionais e Setores do Campesinato Diante da Crise Ambiental/ Jean Pierre Leroy (autor); Maiana Maia e Julliana Malerba (organizadoras). Rio de Janeiro: FASE – Federação de Órgãos Para Assistência Social e Educacional, 2016, 44p.
[4] Atualmente 0,9% da população brasileira detém 60% da riqueza financeira no Brasil - http://www.viomundo.com.br/denuncias/brasil-debate-absurda-concentracao-de-renda-09-dos-brasileiros-detem-60-da-riqueza.html .
[5] Alberto Acosta descreve o extrativismo como “uma modalidade de acumulação que começou a ser forjada em grande escala há quinhentos anos” e que “esteve determinada pelas demandas das metrópoles – os centros do capitalismo nascente”.
[6] Verificar em Bens e Serviços da Floresta: Ensaio-Prosahttp://www.recantodasletras.com.br/e-livros/5624741.
[7] No anuário da Comissão Pastoral da Terra, Conflitos no Campo Brasil 2016, o Estado do Pará foi aquele que apresentou maior número de famílias envolvidas em conflitos por terra (18.419 famílias). A morte dos 10 trabalhadores rurais em Pau D´Arco, em 2017, com tortura e fuzilamento denota um Estado doente do ponto de vista psicológico, pois jura de pé junto atuar ao público em geral, porém é privatizado - http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-07/chacina-de-pau-darco-no-para-nao-pode-ficar-impune-dizem-ativistas  .
[9] Recomendo ouvir o Programa Radiofônico Laudato Si, episódio 15 - http://redamazonica.org/pt-br/laudato-cuidado-nossa-casa-comum/ .
[10] Recomendo assistir este instigante e belíssimo desenho animado - https://www.youtube.com/watch?v=_N5KGcBDe_M
[12] José de Souza Silva – La Innovación institucional decolonial y el´dia depués del dessarrollo, capítulo 4° do livro Siembras del buen vivir: entre utopias e dilemas possibles.







quarta-feira, 5 de julho de 2017

Manifesto de Repúdio da CPT-Prelazia do Marajó sobre o PL 107/2017


A Comissão Pastoral da Terra/Prelazia do Marajó saúda respeitosamente o povo marajoara - em especial as comunidades ribeiras esparramadas pelo interior deste belo e imenso território - assim como as mulheres e os homens de boa-vontade que lutam pela preservação deste patrimônio natural de valor incalculável: Terra-Mãe, que vem há milhares de anos alimentando e alegrando a vida de milhares de famílias marajoaras com sua fartura gratuita.


É com surpresa e profundo descontentamento que a CPT-Prelazia do Marajó tomou conhecimento do Projeto de Lei 107 de 31/05/2017, apresentado pelo deputado Hildegardo Nunes à Comissão de Cultura da Assembleia Legislativa do Pará (ALEPA) no dia 05/06/2017. O PL dispõe sobre o reconhecimento da pecuária como atividade tradicional no Marajó, considerando-a prioridade na ordem dos investimentos agropecuários para a região. Atividades como o extrativismo e a pesca, por exemplo, são definidas no documento como "complementares" e recebem "permissão" para continuarem sendo praticadas. O PL conclui instituindo uma certificação aos produtos e subprodutos oriundos do Marajó.


Formada - segundo estudos de pesquisadores renomados - desde os anos 600 d.C a partir dos primeiros povos indígenas nheengaíbas (mamayanases, aruans, mapuaz, paucacaz, guajaraz, arapixis e tucojus), a sociedade marajoara hoje abriga 541 mil pessoas moradoras de 16 municípios em uma área que cobre 10,4 milhões de hectares. Tal população habita em 3 microrregiões: campos, furos e ilhas e florestas de terra-firme, numa intrincada malha de rios e igarapés que dão condições às diversas paisagens naturais e modos de vida existentes. 


Por sua localização geográfica, é considerada uma das áreas mais importantes do planeta, pois recebe a foz do maior dos rios - o rio Amazonas - que, juntamente com a área costeira do Amapá, desde ilhas do município de Almeirim-Pa, cercanias de Belém e Baixo rio Tocantins, caracterizam o chamado estuário amazônico. O Marajó é consagrado pela Constituição do Estado do Pará como uma Área de Proteção Ambiental – APA - em seu artigo 13°, parágrafo 2°, cuja regulamentação encontra-se em curso a partir da criação de seu Conselho Gestor. Este Conselho, não obstante possuir o caráter consultivo, tem a obrigação de atuar como observatório da utilização dos recursos naturais na região, em um adensamento florestal que, de acordo com o INPE, felizmente cobrem 96% do território: matas que sobreviveram à Era da Indústria Predatória da Madeira e do Palmito, entre 1950 e 2006. O Marajó é ainda reconhecido pelo Governo Federal como um Território da Cidadania, tal a necessidade de reconhecer suas particularidades.


Pelo número de habitantes e complexidades inerentes a este território, questionamos o fato de pessoas que se dizem representantes do povo proporem leis como a PL 107, que incidem diretamente sobre a vida de milhares de marajoaras, sem que as mesmas tomem conhecimento ou sejam convocadas para participar deste processo. Não há clareza sobre o que fundamenta a diferenciação entre atividades prioritárias e complementares proposta pelo PL. Ao contrário, a história do povo marajoara aponta para a importância maior de atividades como extrativismo e pesca - potencializadas pela multiplicação dos manejos comunitários e planos de uso -, ainda que se considere a existência da criação de animais, especialmente na região de campos.


Para se ter uma ideia, só a comercialização de açaí é capaz de movimentar mais de 300 milhões de reais por ano entre os 16 municípios do Marajó – de acordo com as avaliações do IDESP, valioso órgão estadual que fazia pesquisas socioeconômicas e que foi extinto pelo atual Governo Paraense em 2015 – cujos valores em frutos beneficiados de açaí podem duplicar ao longo de sua cadeia de valor, envolvendo os mercados estadual e nacional. A farinha de mandioca, outro produto tradicional das famílias marajoaras que remonta aos tempos dos povos nativos, além de alimentar, é também parte importante da socioeconomia local, com mais de 55 mil toneladas de farinha produzidas pelos agricultores e agricultoras familiares do Marajó, segundo dados do IBGE de 2015. E o que dizer do potencial socioeconômico e ambiental da pesca do camarão amazônico em Melgaço/Bagre/Curralinho (Triângulo do Camarão), São Sebastião da Boa Vista e Afuá? A caça e a pesca tem papel importantíssimo na alimentação do povo no meio rural, e são recursos fundamentais de sobrevivência, retirados da floresta tanto de terra firme como de várzea, de acordo com seu agroecossistema. A relação entre a natureza e os costumes ribeirinhos é muito forte, pois suas atividades são realizadas de acordo com as marés que, por sua vez, estão ligadas diretamente com as fases da lua. Apesar de não termos uma estatística consolidada sobre a comercialização daquilo que se pesca, esta é uma atividade extrativista que, junto com a farinha e o açaí, é ao mesmo tempo comida, finanças e tradição do povo marajoara, aquilo que nos liga à Mãe Terra. Somada ao uso centenário das sementes da floresta para se obter óleos medicinais, aos cipós e enviras, tem-se a amarração de um lugar que ainda conversa com a natureza.


Considerando esta realidade, soa no mínimo descabido o referido no artigo 2º do PL - sobre as atividades consideradas pelos deputados como "complementares" receberem "permissão" para serem praticadas. Não faz o menor sentido conceder "permissão" para que atividades tradicionalmente praticadas continuem ocorrendo. Elas já fazem parte da história, da cultura e do estilo de vida próprios do povo ribeirinho.


É preciso ainda evidenciar o perigo implícito na obscura definição do que é prioridade daquilo que não é: se a pecuária ganha status de prioridade, pode facilmente desalojar comunidades de suas ocupações tradicionais, uma vez que se sobrepõe às mesmas e às atividades “secundárias” que estejam desenvolvendo. Inverte-se a lógica do Bem-Viver e se estabelece uma lógica absurda onde gado tem mais importância do que a vida humana e a preservação da natureza. Em outras palavras: além do possível (e provável) crescimento de conflitos por causa da terra, estaremos diante do possível (e provável) crescimento dos níveis de desmatamento, sob pretexto de que matas e florestas sejam menos prioritárias do que a pecuária e o lucrativo mercado que ela alimenta. Sim, atualmente a pecuária tem o financiamento com a menor taxa de juros do mercado (3,5% a 4% para 2017-2018). Não é de se espantar que haja tanto interesse em sua expansão.


Há muitos dados interessantes a respeito da pecuária - dados que revelam o quanto ela é uma atividade de viabilidade duvidosa, que jamais poderia ser eleita como "carro-chefe" de qualquer proposta de "crescimento econômico" que se preze sustentável.


A cada minuto no país uma área de floresta equivalente a dois campos de futebol é desmatado - o que parece indicar que a Amazônia está sendo transformada num enorme pasto... Além disso, nossos governantes tem-se mostrado muito interessados em votar - e com urgência - projetos que ampliam a exploração comercial em áreas anteriormente protegidas - e que vem sendo sistematicamente invadidas por criadores de gado. Colocar gado em terra invadida é uma estratégia muito utilizada para "regularizar" situações criminosas. Sob a justificativa de que se está criando e produzindo carne, pecuaristas encontram caminho aberto para legalizar a grilagem de terras públicas. Mais preocupante ainda é constatar que muitos dos que fazem isso não moram nas terras que invadem e nem dependem delas para sobreviver. Ao contrário, como comprovou o IBAMA (por meio da Operação Carne Fria, deflagrada em março deste ano) há pecuaristas e donos de frigoríficos produzindo carne em terras que não lhes pertencem.


Do ponto de vista ambiental, a criação de gado é um grande problema: atividade pecuária + desmatamento para pastagens na Amazônia respondem por 55, 6% das emissões de efeito estufa no país. E pesquisadores alertam que o metano, eliminado pelas vacas, é vinte vezes mais venenoso que o dióxido de carbono. Além da destruição de nossa biodiversidade e da poluição do ar, a pecuária é a atividade que mais consome água no país e no mundo. Para cada quilo de carne bovina, por exemplo, gastam-se 16 mil litros de água. Esse uso estende-se à irrigação dos pastos e das monoculturas de grãos (soja), que integram a ração destes animais. Será que, pelo fato de ser considerada atividade prioritária para investimentos, a pecuária terá acesso garantido à água - que milhares de marajoaras ainda não recebem em suas casas, após tantos anos de lutas e esperas? Terá o gado mais direito à água do que as pessoas?


A grilagem de terras e a devastação da natureza também deixam marcas de sangue por onde passam: o Brasil é o país que mais mata ambientalistas no mundo e, em 2016, registrou 61 assassinatos oriundos de conflitos agrários. Números dramáticos que poderiam ser evitados se houvesse uma séria política de regularização fundiária no país, notadamente na Amazônia.


O Marajó hoje possui 37% de sua área total destinada em termos de regularização fundiária, sobretudo ordenada em sua parte ocidental, em furos e ilhas. Na região dos campos e áreas de terra-firme, o caos fundiário prevalece. E isto se deve à ausência de uma política agrária séria, que priorize a regularização fundiária nesta região. O povo empobrecido, mal informado, explorado no trabalho - e muitas vezes escravizado - é obrigado a assistir suas terras sendo saqueadas pela ganância desmedida de pessoas e grupos poderosos que atuam impunemente grilando terras, explorando ilegalmente madeira e palmito, ameaçando lideranças comunitárias e expulsando famílias que ocupam terras há várias gerações. Documentos relacionados à terra, mas que não comprovam propriedade da terra, vem sendo utilizados para forçar a saída de pessoas que tem o direito legítimo de permanecerem nas terras, pois moram nelas e cumprem a função social de produzir e proteger os bens naturais ali existentes. Estamos falando de gente que depende da terra para sobreviver. O mau uso do CAR (Cadastro Ambiental Rural) é um exemplo típico do que acabamos de falar. O processo que envolve o documento possui vícios que comprometem sua finalidade: o CAR é autodeclaratório e beneficiado pela falta de fiscalização dos dados declarados. Por isso, é possível constatar uma grande quantidade de CARs que se sobrepõem a áreas já destinadas ou tradicionalmente ocupadas por famílias que vivem do uso sustentável de terras públicas. Enquanto, em termos fundiários, se ordenou 37% das áreas do Marajó, 63% do território marajoara está coberto por CARs, o que coloca sempre a dúvida sobre quem efetivamente mora e produz e quem especula e grila. Para agravar a situação, no sistema do CAR da Secretaria Estadual de Meio Ambiente, muitos campos marajoaras são considerados “áreas consolidadas” por seus declarantes, ou seja, não seriam mais campos naturais, mas sim objetos de uso da pecuária e da agricultura de grande escala.


Enfim, o ponto crucial de toda a problemática levantada pelo PL é a questão agrária. Ao ser apresentado à Comissão de Cultura da ALEPA, o PL desvia o foco de sua verdadeira atuação: definir a pecuária como atividade tradicional e prioritária para investimentos tem menos a ver com cultura do que com concretizar a entrada do agronegócio na região - "negócio" este que põe em risco a natureza, a soberania alimentar e os direitos das comunidades às terras.


A propósito, vale mencionar aqui que este PL foi precedido de outro que lhe beneficia - deixando evidente que há um caminho sendo construído para a instalação de atividades inseridas na lógica do agronegócio. No dia 10/05/2017 os deputados aprovaram por unanimidade o Projeto de Lei de Incentivo ao Agronegócio, de autoria do deputado Fernando Coimbra.


Diante dos fatos e argumentos aqui expostos, a CPT-Marajó se posiciona contra qualquer proposta que prioriza o avanço de atividades econômicas sobre terras marajoaras, mas ignora a grave pendência da regularização fundiária na região, deixando as populações ribeiras à mercê de critérios e prioridades que não foram construídos com sua participação ou consentimento - isso inclui a imposição de uma certificação aos produtos e subprodutos marajoaras, citada no artigo 3º.


Vivemos tempos de grave crise política nas diversas esferas do governo, e presenciamos a cooptação crescente do poder político pelo poder financeiro, concentrado nas mãos de empresários-ruralistas. É imperativo que comunidades e povos tradicionais se unam e se esclareçam cada vez mais sobre projetos que ameaçam seu estilo de vida e os bens da natureza. A CPT-Marajó se coloca como apoio e companheira de luta na defesa da Mãe-Terra e dos povos que cultivam o Bem-Viver como modo de vida, permanecendo à disposição para refletir e aprofundar esta questão junto à população e aos movimentos e entidades que compartilhem desta luta.


Comissão Pastoral da Terra - Prelazia do Marajó

Breves, 27 de junho de 2017