domingo, 24 de junho de 2018

Crônicas, Passageiro: ELA, do Beiradão

Apressado estava. Peguei o carro do aplicativo UBER para cortar a cidade na luta para protocolizar documentos importantes antes dos fechamentos das instituições públicas. O motorista, que aqui chamarei de Amintas, calado seguia na pista pesada de carros. Enquanto isso, eu seguia trocando áudios zaps com alguns colegas de trabalho, mencionando regiões, rincões, Marajó e Jari.
- Jari? – Abriu a boca o até então calado Amintas.
- Sim. Conheces?
- Sim. E como? Uma saudade do Jari...
- Pois é, eu me criei por lá, de 1981 a 1992.
- Ah, como é o seu nome mesmo?
- Pantoja.
- Seu Pantoja, eu me chamo Amintas e vivi lá de 1984 a 1993. Grandes tempos. Rolava muito dinheiro lá. Era molecão quando cheguei por lá.
- Que legal. Moravas em Monte Dourado?
- Beiradão. No Beiradão...
De repente Amintas calou. A princípio pensei que era por conta do trânsito, o motorista deve prestar atenção aos outros carros para não incorrer em acidente, ainda mais naquela tórrida hora de meio dia e pouco. Quando reparei naquele senhor, aparentemente de uns cinquenta e altos anos, vi escorrer a lágrima do olho direito, com a respiração própria de quem sentia peso no peito, tal peso cuja pressão nos expulsa o pranto. O homem recordou a cidadela chamada Beiradão, que veio abrigar a maioria dos trabalhadores braçais dos anos 1980 para o Projeto Jari que não podiam morar em Monte Dourado por não serem do Staff da empresa. Ficariam tais “peões” como eram chamados localmente, a maioria do Estado do Maranhão, no outro lado do rio Jari, que separa os estados do Pará e Amapá. O Beiradão deu origem ao hoje município amapaense de Laranjal do Jari.
- Ah, Beiradão... – Continuou Amintas – Tempos bons... Fui dono de uma Boate lá, sabia? Mesmo sendo moço.
- Boate? No Beiradão?
- Tá bom, tá bom (risos), fui dono de Cabaré. Tinha uns vinte e poucos de idade.
- Caramba. E prosperou?
- Se prosperou? Ganhei muita grana, pois lá vinham a peãozada da firma, os garimpeiros, os gateiros, tudo pra buscar carinho lá no Cabaré.
- E como conseguiste um negócio desse ramo?
- Na verdade eu cheguei lá pra cuidar da venda do meu irmão. Essas miudezas, rede, corda, bermuda, por aí. Como ele teve saudade da família, voltou pra Caxias, no Maranhão. Eu lá fiquei e fiz amizade com um cara que era dono de Cabaré na Malvina.
- Na Malvina?
- Tu já ouviste falar, né? Ali sempre morria um. Sempre tinha um boiando no dia seguinte. Pensa num lugar perigoso! O cara que era dono do Cabaré de lá fez uma filial na parte mais perto das catraias e como viu que eu era sério pra cuidar das vendas do meu irmão, acabou me convidando pra tomar de conta do Cabaré daquela parte do trapichão.
- E aí?
- Aí que o homem levou facada lá na matriz dele na briga com um garimpeiro. Foi mandado pra Macapá e não voltou mais, de susto. Eu nisso fui, fui, fui e acabei ficando com a filial dele sem reclamante.
- Entendi.
- Seu Pantoja, eu não tive administração na minha vida. Se tivesse alguém pra me orientar, eu era pra ter muito patrimônio! Mas ELA me levou tudinho...
- Ela?
- ELA – não disse o nome, apenas a denominava “ELA”.
Fiquei em silêncio.
- ELA foi comendo meu dinheiro, comendo, me enganando. Eu gostava tanto DELA. Era a preferida minha no Cabaré, minha parceria que ficou comigo. A gente junto fez a boate ficar sempre cheia, mesmo em noite de quarta-feira... era muita diversão. Eu não me metia com as outras moças, só com ELA. Gerenciava tudo. ELA me enganava. Gastamos tanto... E vim embora do Jari. Casei. Sou um homem bem casado, criei minhas filhas, todas formadas, netos bem cuidados. Aí apertou no trampo de eletricista... sou eletricista, viu? E vim dar um tempo aqui no UBER pra ajudar no sustento da casa.
- É aqui.
- Deu 18 reais.
- Agradeço a corrida e a conversa.
- Eu é que agradeço pela lembrança do Jari.
Amintas deu-me o troco de 2 reais ainda de olhos marejados.
ELA deve ter remexido sua mente. Mistério dele. Segredo dele.
Onde estaria ELA?









Pantoja Ramos
Publicado no Recanto das Letras. 
 
 

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Lamberto, o Traumatizado: Pós-Verdade

Maria Aneci, neta de Lamberto, o Traumatizado, caminhou até o avô coçando a cabeça e trazendo o Tablet com a frase que sua mãe Shana  (outra traumatizada) não conseguira responder a contento para a pequena curiosa. 

"Vô Lamberto, o que é  Pós-Verdade?"

Lamberto, tocava seu violão e respondeu de bate - pronto :

"Sabe quando te disseram que a Mentira tem perna curta? "

"Sim Sim "

"Pois é, ela agora anda por aí com uma PERNA DE PAU DE 3 METROS DE ALTURA, você até se espanta pelo tamanho. Mas nunca deixou de ser Mentira. Só está mais cheia de si.  Entendeu?"

"Valeu vô".

Maria Aneci olhou pro Tablet e sentenciou :

"Esse cara do YouTube eu não assisto mais. Nem esse,  nem esse,  nem esse...".


Sem Traumas. 
 
 
 
 
 
 
 
 

domingo, 3 de junho de 2018

Oração da Castanheira

 

 
Foto: Yara Monteiro.

 

 

Belém, 01 de maio de 2018.



Pai,
Ou Mãe de toda a Vida
Sou a Castanheira do seu jardim
E Adão e Eva vieram a mim
Alimentei
Sem saber se se teria recompensa
Sem saber se me protegeriam

Mãe
Ou Pai de tudo que respira
Quando o meu ouriço assim quebrou
Todo Universo despertou
Toda mata
Todo pássaro
Todo bicho
Todo córrego
Até Você Tupã se espantou

O fogo é tão cruel
Mais cruel é o capim Caim
"Castanhejei" sua manhã, tu lembras?
Vizinhas araras cantando meu nome

Toda manhã floresta é doce sombra
Todo frescor do ar que bom suor
Baque que batuque
Um pouco pra ti,
um pouco pra cutia
Um pouco pra nós

Homem
Ou Mulher que tanto ajudo
Minha raiz não suportou
Tombei da morte do seu amor
Porém se germina o plantador
Da terra queimada
Castanheiras seremos
Até o final dos tempos



Pantoja Ramos
Publicado no Recanto das Letras.