quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Réus de nossos tempos


O Eucalipto estava no banco dos réus:

- O que tens a dizer em tua defesa? - perguntou o Juiz Japiim.

- Sou inocente! Não foi culpa minha, meritíssimo. Fui levado por aquele ali a matar tantas plantas, rios e bichos!

Apontou para o Homo sapiens que filmava o julgamento. Fez de conta que não era com ele.


Sai o veredicto:

- Porque não sabias o que estava a fazer, eu te condeno a prestar serviços comunitaristas.

O martelo de madeira gritou: FEITO!


A Onça anuncia:

- Próximo caso! A Natureza do Chile contra o Abacate!!

O Homem aproveitou pra sair de fininho.


O Abacate olhou pro eucalipto que saía do tribunal e disse irônico:

Muchacho, no es guacamole no!





domingo, 6 de outubro de 2019

Crônicas, Passageiro: Vidas Rasas?



Naquela madrugada de sexta-feira, contemplávamos a movimentada rotina da venda de frutos de açaí na feira que recebe o nome da santa fruta libertadora de um destino pior da fome. Belém do Pará nem parecia ser Belém pois ali havia uma terra de caráter multirregional, do Marajó, do Baixo Tocantins, da Ilha das Onças, de outras paragens e países. Terra de Sumanos, Sumanas, Suprimos, Suprimas, Parentes. Território Internacional do Açaí.

E aparentados já estavam meus colegas da Colômbia que vieram conhecer tudo o que eu falava pra eles em produção de açaí, lideranças técnicas que viam o Pacífico Colombiano ainda começar a dobrar o primeiro laço da peconha neste tão valioso produto da América Latina. O Naidí ou Chapipi (como chamam nas comunidades colombianas) tem pouco mais de 100 anos de relação com a população local, ainda na base do consumo das pepas (frutos) segundo me disse um dos participantes do intercâmbio. Ficaram embasbacados com as polpas que fazemos, com a economia que giramos e com capacidade de alimentar as pessoas. O Açaí ainda é uma fruta socialista.

No meio daquele movimento de carreteiros (SAI DA FRENTE, TÁ PASSANDO!!), três pessoas me chamaram a atenção naquela feira: a senhora do café, a fotógrafa e o rapaz do carreto. A senhora que vendia café se aproximou de nossa comitiva para uma prosa, com este aprendiz de cronista exercitando o portunhol legítimo para traduzir suas falas. Sabia de cor e salteado o sobe e desce da bolsa de valores do açaí naquela pedra, quem vendia mais, quem vendia menos. Informou da insatisfação dos vendedores de açaí com as empresas e seus caminhões que arrecadavam grande parte das rasas nas tardes anteriores, com a madrugada não tendo tanto açaí para os batedores da cidade que assim repassavam à população belenense. Disse que “o pessoal vai fazer uma reunião pra pará com esse negócio dos caminhão levá essa quantidade”.

Também nos chamou a atenção a moça que circulava tranquilamente naquela confusão de paneiros, sacas, carretos e pessoas com certa naturalidade. Ela sempre circula no Ver-O-Peso e Feira do Açaí para registrar a força destes lugares, veiculando em seu Instagram (que descobri e aqui compartilho seu bonito trabalho em https://instagram.com/nayjinknss?igshid=1vhz5o2j6rv9i ) e assim oferecer ao público sua arte e profissão de deixar visível o que era invisível. O sol já despontara e ela ainda procurava ângulos e nuances para assim retratar. Conversou conosco, tiramos uma foto juntos. E ela se foi no meio dos raios de sol da manhã e gritaria dos passantes.

Os colegas da Colômbia estavam observando umas rasas cobertas, gesticulando com um jovem sílabas mímicas até que eu os socorresse para tentar traduzir. O jovem assim explicou o motivo de estarem cobertos os paneiros a esperar pelo caminhão, também para não absorver o odor do local compartilhado com a venda de carne. Ele explicou sua rotina de trabalho: chegava na feira às 4 horas da tarde, madrugava na labuta e voltava para a sua casa às 10 horas da manhã. “E dormes?”. Ele disse que sim, um pouco, pois já tinha que voltar para a Feira, pegando uma hora e meia de ônibus, cruzando a grande Belém.

O rapaz disse que na safra era um tempo bom de finanças, pois chegava a pegar em média 100 reais por dia. “Uma vez peguei até 250 reais”, se gabou. Terminava o dia cansado de tanto carregar rasas e mais rasas, nem sabe a conta de quantas cargas carrega e descarrega dos barcos que chegam. Confessou que já tinha sido preso, desde antes dos 18 anos e depois mais alguns anos na vida adulta. Quando constituiu família, prometeu “sair daquela vida” e passou para o ramo do açaí como carregador daquela feira. Disse que quando se tornasse pai, daria tudo o que fosse preciso para seu futuro filho, sem lamentar muito o fato de não ter tido pai que o acompanhasse desde pequeno. “Ó, aquele ali é meu padrasto”, apontou para um homem que contava uma carga recém-chegada. O jovem orgulha-se de sua mãe professora que muito batalhou por ele e que um dia iria também se formar. “A Feira do Açaí é uma Outra Mãe pra mim, aqui todo mundo se conhece e se defende”.

Com a desenvoltura com que se apresentou, surgiu-me a ideia de sugerir (ahh esses metidos a empreendedores sociais) que ele pudesse juntar-se com outros e colocar um crachá no peito para explicar como funciona a Feira do Açaí, assim, tipo um guia, sabe? Poderia ser uma graninha a mais nesta mini-palestra para os inúmeros turistas que lá visitam e que desejam saber mais sobre o açaí e sua magia.

“Por que você e seus amigos não se organizam? Pode dar certo”. 

“Não tenho mais meus amigos. Eles morreram na mão da milícia”.

Calei fundo.

Depois desse instante triste no subtom da conversa, voltou alegre com o semblante de que na virada de sexta pra sábado mais açaí iria ter e deste modo poderia levar uns trocados a mais pra casa. Como já íamos, a comitiva toda o cumprimentou como a quem cumprimenta um nobre cavalheiro, no respeito e na reverência de quem sabe como é dura a batalha pela vida.

E assim fomos. Todos seguiram para as suas lidas.

Os colombianos.

A senhora do café.

A moça da câmera.

O rapaz do carreto.

As rasas.

Todos frutos da mesma palmeira.




Pantoja Ramos.





Imagem: Belém, Ver-o-Peso de madrugada. Foto: Fred Ferreira.