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segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Fábula Umami *



Cali a caminho de Medellín, 26 de janeiro de 2020.



Era uma vez um caranguejo. Vamos chamá-lo de Remoso.

Remoso vivia naquele manguezal imenso que todos conheciam como Remanso do Vergara. Ele e seus irmãos desfrutavam da água do mar, da água do rio e das chuvas que traziam as folhas das árvores das matas ao redor para alimentar aqueles milhares que ali viviam.

Remoso era esperto, estrategista, racional acima da média dos caranguejos daquele local. Sabia se esconder dos humanos que "manguezavam" e organizava a cambada para proteger as baronesas quando época de procriação muitas vezes com sucesso. 

Sua perturbação, entretanto, era a garça Poqueca, bicudo bicho que insistia em tentar lhe devorar. Poqueca tinha metido na cabeça que comer caranguejo lhe daria a cor dos guarás e se pudesse ter Remoso como refeição, o mais inteligente, talvez tivesse isso acelerado de uma vez. Ninguém convenceu Poqueca. Ela mesmo diagnosticou tal efeito.

A vida transcorria assim:

As baronesas e caranguejos se alimentando nas enchentes e marés. Às vezes comiam um turu.

Os humanos caçando caranguejos nos buracos dos mangues. Às vezes, um turu.

Os pássaros caçando caranguejos aleatoriamente. Poqueca, ao contrário, focada em Remoso, que ágil, sempre escapava, não antes sem dar uma biliscada na canela da ave que gritava mais de raiva do que de dor. E sem ter caranguejo, sobrava para os turus que recebiam o escarafunchar de Poqueca no tronco caído em que viviam.

Mas sabe, apesar disso tudo, não é que havia equilíbrio? Obviamente em algum momento os humanos do mangue saíram da rota, exagerando em catar caranguejo no período do defeso. Graças à outros humanos que dialogaram com tais humanos do mangue, percebeu-se que não era uma questão de lei e sim, de sobrevivência.

De longe os caranguejos, as aves, até os turus ouviam suas conversas e seus acertos.

Certo dia um movimento estranho se fez no Remanso do Vergara. Surgiu de repente uma dezena monstros de ferro cujos enormes beiços empurravam terra para dentro do manguezal. Muitos caranguejos foram soterrados sem conseguir escapar daquele inesperado. Remoso corria da avalanche e quando já se julgava livre do perigo, avistou Poqueca engatada num galho. Primeiramente sentiu desdém.

"Ahh, fica aí...".

Parou a andada de lado. 

"Não, Ahhh, peraí que eu já vou". 

E correndo de lado por cima dos mangueiros chegou até Poqueca que ainda tentou bicar-lhe.

"Não te dou o prazer de me beliscar pela última vez Remoso!", reclamou a garça.

"Tô querendo é te salvar, desgraça!".

E deu uma tesourada forte no galho que prendia a ave pelecaniforme, que logo voou pra longe das toneladas de terra. Na canela dela, pendurado, Remoso percorreu os olhos para ver o tamanho da encrenca.

Os monstros de ferro eram seguidos por monstrinhos menores onde humanos bem mais cobertos de pano pareciam dar as ordens para avanço daquele desastre. O mangue estava sendo engolido.

No chão novamente, Remoso convocou caranguejos e outros crustáceos e assim bradou:

"Irmãos, nosso mangue está ameaçado por aqueles monstros de ferro a inundar nossa lama de lixo e terra. Não podemos ficar parados. Precisamos enfrentá-los!".

Olhou para as aves, para os roedores, insetos e continuou "somos diferentes e lutamos uns com os outros pela vida, só que hoje, se não juntamos, nem haverá luta amanhã, nem haverá vida!".

Os animais concordarem.

Poqueca que liderava as garças ponderou:
"Tudo bem, tens razão. Porém, como enfrentar essas máquinas e seus humanos?? Não damos conta!".

Tinha razão.

Remoso andou para lá, andou para cá, sempre de lado, pensando, pensando. E aí lhe ocorreu.

Passou as coordenadas.

Os bichos no início gargalharam de tal ideia. Depois riram. Depois riram amarelo. Aí entenderam que era a única saída.

Seguiram adiante.

Na Comunidade, os humanos do mangue seguiam para mais um dia de culto dominical. Na porta da igreja, que era ampla para a vista de todos, se depararam com a última garça terminando de pregar o último turu na madeira dos inúmeros que formavam o desenho da seguinte mensagem:

"VIVEMOS NO MESMO BURACO, ENTÃO VAMOS VIRAR O MUNDO PELO AVESSO! PELEJA NO MANGUE!!".

E assinaram assim em sinal de boa vontade com 3 turus:

:)


Os humanos do mangue que já haviam se humilhado e desistido de lutar pelos manguezais, ao ler tal provocação, se juntaram rapidamente na comunidade e partiram pro rumo do Remanso do Vergara.

Quem testemunho, viu uma das maiores batalhas que já se viu em um manguezal. Durou anos. Outros animais aderiram. Outros humanos aderiram em favor do mangue. Não se sabia mais quais as espécies estavam lá.

Tudo misturado. Ali era uma lama só. Uma lama boa.

E quando venceram a Guerra dos Turus, como ficou conhecida, os humanos bem cobertos de algodão rastejaram para tentar destruir outros cantos, mangues, igarapés, rios, comunidades e nunca mais foram vistos.

E percebendo que a Guerra dos Turus terminara, Remoso se permitiu morrer. Estava idoso para a idade carangueja. Caminhou lentamente de lado e parou no meio da praia. E quase cerrando os olhos para o fim, percebeu Poqueca pousando perto de si provavelmente para lhe bicar.

"Espero que eu te dê a cor dos guarás", disse comovido.

"Por fora não creio mais que farás. Por dentro, me coloriste a vida. Vim fazer teu buraco para que descanses finalmente".

A garça começou a cavar o buraco.

Um humano do mangue se aproximou.

Os dois cavaram juntos.

Remoso arrastou-se para dentro da derradeira casa naquele Remanso do Vergara. E a maré encheu. Quando vazou, levou junto Remoso para o infinito.

O infinito segundo o olhar de quem vive no mangue.








(*) Umami é conhecido como o quinto sabor (além do doce, salgado, amargo e azedo), encontrados no paladar nosso quando comemos frutos do mar, carnes, queijo parmesão e cogumelos. 
Descoberto no início do século XX pelo cientista japonês Kikunae Ikeda, o umami foi reconhecido mundialmente em 2000. O termo significa saboroso em japonês e representa o que o sentido traduz para o paladar. Fonte: Portal Terra.



A foto de capa desta fábula é de Rodrigo Moraes.
A segunda foto é de Camila Lima.

À memória de Waldemar Vergara Filho, ativista e poeta das Reservas Extrativistas Marinhas.






domingo, 26 de janeiro de 2020

Cajambre


Río Cajambre, Buenaventura, Pacífico Colombiano, 23 de enero de 2020.


Río Cajambre es una calle sin fin

Camino al mar y en su regreso renovado como nosotros
Sin embargo, las aguas de las montañas nos alertan de que todo es impredecible.
Somos constantes y controlados por un lado, somos implacables por el otro
Pero en el encuentro de todo esto
Equilibrio
La mujer que sigue su bote.
El hombre que calcula el día de producción.
Los niños que disfrutan de la salida del sol.
la salida del sol o de la lluvia
No importa
Todo es parte del río Cajambre.
El río sinuoso que ahora es parte de mi memoria.
Pantoja Ramos


quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Crônicas, Passageiro: Responda Rapidamente



Rádio Comunitária de Gurupá. Foto: Gilvandro Torres



Belém, 15 de janeiro de 2020.



Esta é uma crônica expressa como as perguntas que me motivaram escrever. 

Às 5 da manhã de 2005, lá em Gurupá, fui gentilmente trocar ideia com Sabá Pena, "o comunicador que vos fala", na Rádio FM do município. Eu, todo remelento, sonolento e outros adjetivos que inspiram o que é lento, recebo a pergunta de Sabá:

"Estamos aqui com o engenheiro florestal da ONG Fase, que finalmente aceitou o convite deste comunicador que vos fala para uma entrevista. Senhor Carlos, responda rapidinho para os nossos ouvintes: COMO SE RESOLVE OS PROBLEMAS DA AMAZÔNIA??".

A cabeça deu um pinote. Acordei de supetão. Soltei um palavrão tal a surpresa da indagação. Saiu no ar. Nem sequer tinha dado bom dia. Em poucos segundos, já estava na adrenalina no ato de procurar um caminho que me guiasse até uma resposta plausível.

"Co-co-mo se resolve os problemas da-da-da Amazônia??", Gaguejei.

Enrolei, enrolei, firulei nas palavras como se fosse o jogador Robinho pedalando por sobre a bola sem chutá-la ao gol. De tanto subjetivar, não consegui responder. Até hoje, alguns amigos me zoam: "E aí, como se resolve os problemas da Amazônia, Carlos?"

Talvez ainda não consiga dar retorno, apesar de me fazer esta indagação todo tempo.  Ainda mais nestes obscuros marcos que vivenciamos. Ao menos tal questionamento e analisar os ciclos históricos de ataque destrutivo à natureza me fez concluir que tenho Mátria e não Pátria.

Nesses primeiros dias do ano publiquei  um poema na principal ferramenta atual de comunicação. Uma pessoa elogiou e me perguntou algo forte pois também queria aventurar-se a escrever: "O QUE É UM POEMA?". 

Paradoxalmente, sobre o indagar de algo tão conceitual e antes de tudo, subjetivo, não hesitei e disse:

"Poema é a fotografia da alma".

Pareceu-me natural esta frase. Margarida Di sentenciou algo semelhante.

Assim, o que deveria ser sucinto de responder - "como se resolve os problemas da Amazônia?" - tornou-se seu contrário; e o que deveria ser divagado - "o que é um poema?" - teve uma afirmação de bate-pronto.

Puxa vida, esta crônica não ficou tão expressa como eu queria. Continuará martelando na cabeça por alguns momentos.

Hummm...

Próxima pergunta?