Páginas

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Nota ao Público de Lúcio Flávio Pinto

NOTA AO PÚBLICO 
CONTRA A INJUSTIÇA

No dia 7 o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Ari Pargendler, decidiu negar seguimento ao recurso especial que interpus contra decisão da justiça do Pará. Nos dois graus de jurisdição (no juízo singular e no tribunal), o judiciário paraense me condenou a indenizar o empresário Cecílio do Rego Almeida por dano moral.
O dono da Construtora C. R. Almeida, uma das maiores empreiteiras do país, se disse ofendido porque o chamei de “pirata fundiário”, embora ele tenha se apossado de uma área de quase cinco milhões de hectares no vale do rio Xingu, no Pará. A justiça federal de 1ª instância anulou os registros imobiliários dessas terras, por pertencerem ao patrimônio público. 
O presidente do STJ não recebeu meu recurso “em razão da deficiente formação do instrumento; falta cópia do inteiro teor do acórdão recorrido, do inteiro teor do acórdão proferido nos embargos de declaração e do comprovante de pagamento das custas do recurso especial e do porte de remessa e retorno dos autos”. Ou seja: o agravo de instrumento não foi recebido na instância superior por falhas formais na juntada dos documentos que teriam que acompanhar o recurso especial.
O despacho foi publicado no Diário Oficial eletrônico do STJ no dia 13. A partir daí eu teria prazo de 15 dias para entrar com um recurso contra o ato do ministro. Ou então através de uma ação rescisória. O artigo 458 do Código de Processo Civil a prevê nos seguintes casos:
“Se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz; proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente; resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei; ofender a coisa julgada; violar literal disposição de lei; se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal, ou seja, provada na própria ação rescisória; depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável; houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença; fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa”.
Como o ministro do STJ negou seguimento ao agravo, a corte não pode apreciar o mérito do recurso especial. A única sentença de mérito foi a anterior, do Tribunal de Justiça do Estado, que confirmou minha condenação, imposta pelo juiz substituto (não o titular, portanto, que exerceu a jurisdição por um único dia) de uma das varas cíveis do fórum de Belém. Com a ação, o processo seria reapreciado.
Advogados que consultei me recomendaram esse caminho, muito trilhado em tais circunstâncias. Mas eu teria que me submeter outra vez a um tribunal no qual não tenho mais fé alguma. É certo que nele labutam magistrados e funcionários honestos, sérios e competentes. Também é fato que alguns dos magistrados que agiram de má fé contra mim já foram aposentados, com direito a um fare niente bem remunerado – e ao qual não fizeram jus.
Mas também é verdade que, na linha de frente e agindo poderosamente nos bastidores, um grupo de personagens (para não reduzi-lo a uma única figura fundamental) continua disposto a manter a condenação, alcançada a tanto custo, depois de uma resistência extensa e intensa da minha parte.
Esse grupo (e, sobretudo, esse líder) tem conseguido se impor aos demais de várias maneiras, ora pela concessão de prêmios e privilégios ora pela pressão e coação. Seu objetivo é me destruir. Tive a audácia de contrariar seus propósitos e denunciar algumas de suas manobras, como continuo a fazer, inclusive na edição do meu Jornal Pessoal que irá amanhã às ruas.
A matéria de capa denuncia a promoção ao desembargo de uma juíza, Vera Souza, que, com o concurso de uma já desembargadora, Marneide Merabet, ia possibilitar que uma quadrilha de fraudadores roubasse 2,3 bilhões de reais da agência central de Belém do Banco do Brasil.
A mesma quadrilha tentou, sem sucesso, aplicar o golpe em Maceió, Florianópolis e Brasília. Foi rechaçada pelas justiças locais. Em Belém encontrou abrigo certo. Afinal, também não foi promovida ao topo da carreira uma juíza, Maria Edwiges de Miranda Lobato, que mandou soltar o maior traficante de drogas do Norte e Nordeste do país. O ato foi revisto, mas a polícia não conseguiu mais colocar as mãos no bandido e no seu guarda-costas. Punida com mera nota de censura reservada, a magistrada logo em seguida subiu ao tribunal.
Foi esse o tribunal que teve todas as oportunidades de reformar a iníqua, imoral e ilegal sentença dada contra mim por um juiz que só atuou na vara por um dia, só mandou buscar um processo (o meu), processo esse que não estava pronto para ser sentenciado (nem todo numerado se achava), levou os autos por sua casa no fim de semana e só o devolveu na terça-feira, sem se importar com o fato de que a titular da vara (que ainda apreciava a questão) havia retornado na véspera, deixando-o sem autoridade jurisdicional sobre o feito. Para camuflar a fraude, datou sua sentença, de quatro laudas, em um processo com mais de 400 folhas, com data retroativa à sexta-feira, quatro dias antes. Mas não pôde modificar o registro do computador, que comprovou a manobra.
De posse de todos os documentos atestando os fatos, pedi à Corregedoria de Justiça a instauração de inquérito contra o juiz Amílcar Bezerra. A relatora, desembargadora Carmencim Cavalcante, acolheu meu pedido. Mas seus pares do Conselho da Magistratura o rejeitaram. Eis um caso a fortalecer as razões da Corregedora Nacional de Justiça, Eliana Calmon, contra o corporativismo, que protege os bandidos de toga.
Apelei para o tribunal, com farta documentação negando a existência do ilícito, já que a grilagem de terras não só foi provada como o próprio judiciário paraense demitira, por justa causa, os serventuários de justiça que dela foram cúmplices no cartório de Altamira. O escândalo se tornara internacional e, por serem federais partes das terras usurpadas, o interesse da União deslocou o feito para a justiça federal, que acolheu as razões do Ministério Público Federal e anulou os registros fraudulentos no cartório de Altamira, decisão ainda pendente de recurso.
O grileiro morreu em maio de 2008. Nesse momento, vários dos meus recursos, que esgotavam os instrumentos de defesa do Código de Processo Civil, estavam sendo sucessivamente rejeitados. Mas ninguém se habilitou a substituir C. R. Almeida. Nem herdeiros nem sucessores. Sua advogada continuou a funcionar no processo, embora a morte do cliente cesse a vigência do contrato com o patrono. E assim se passaram dois anos sem qualquer manifestação de interesse pela causa por parte daqueles que podiam assumir o pólo ativo da ação, mas a desertaram.
A deserção foi reconhecida pelo juiz titular da 10ª vara criminal de Belém, onde o mesmo empreiteiro propusera uma ação penal contra mim, com base na extinta Lei de Imprensa. Passado o prazo regulamentar de 60 dias (e muitos outros 60 dias, até se completarem mais de dois anos), o juiz declarou minha inimputabilidade e extinguiu o processo, mandando-o para o seu destino: o arquivo (e, no futuro, a lata de lixo da história).
Na instância superior, os desembargadores se recusavam a reconhecer o direito, a verdade e a lei. Quando a apelação estava sendo apreciada e a votação estava empatada em um voto, a desembargadora Luzia Nadja do Nascimento a desempatou contra mim, selando a sorte desse recurso.
A magistrada não se considerou constrangida pelo fato de que seu marido, o procurador de justiça Santino Nascimento, ex-chefe do Ministério Público do Estado, quando secretário de segurança pública, mandou tropa da Polícia Militar dar cobertura a uma manobra de afirmação de posse do grileiro sobre a área cobiçada. A cobertura indevida foi desfeita depois que a Polícia Federal interveio, obrigando a PM a sair do local.
Pior foi a desembargadora Maria Rita Xavier. Seu comportamento nos autos se revelou tão tendencioso que argüi sua suspeição. Ao invés de decidir de imediato sobre a exceção, ela deu sumiço à minha peça, que passei a procurar em vão. Não a despachou, não suspendeu a instrução processual e não decidiu se era ou não suspeita. Ou melhor: decidiu pelos fatos, pois continuou impávida à frente do processo.
Meus recursos continuaram a ser indeferidos ou ignorados, quando alertava a relatora e os desembargadores aos quais meus recursos foram submetidos sobre a ausência do pólo ativo da ação e de poderes para a atuação da ex-procuradora do morto, que, sem esses poderes, contra-arrazoava os recursos.
Finalmente foi dado prazo para a habilitação, não cumprido. E dado novo prazo, que, afinal, contra a letra da lei, permitiu aos herdeiros de C. R. Almeida dar andamento ao processo (e manter o desejo de ficar com as terras) para obter minha condenação. Nesse martírio não lutei contra uma parte, mas contra duas, incluindo a que devia ser arbitral.
Voltar a ela, de novo? Mas com que crença? Quando, quase 20 anos atrás, me apresentei voluntariamente em cartório, sem esperar pela citação do oficial de justiça (gesto que causou perplexidade no fórum, mas que repeti outras vezes) para me defender da primeira das 33 ações sucessivamente propostas contra mim (19 delas pelos donos do maior conglomerado de comunicação da Amazônia, afiliado à Rede Globo de Televisão), eu acreditava na justiça do meu Estado.
Continuo a crer em muitos dos seus integrantes. Mas não na estrutura de poder que nela funciona, conivente com a espoliação do patrimônio público por particulares como o voraz pirata fundiário Cecílio do Rego Almeida.
Por isso, decidi não mais recorrer. Se fui submetido a um processo político, que visa me destruir, como personagem incômodo para esses bandidos de toga e as quadrilhas de assalto ao bem coletivo do Pará, vou reagir a partir de agora politicamente, nos corretos limites da verdade e da prova dos fatos, que sempre nortearam meu jornalismo em quase meio século de existência.
Declaro nesta nota suspeito o Tribunal de Justiça do Estado do Pará, que não tem condições de me proporcionar o devido processo legal, com o contraditório e a ampla defesa, que a Constituição do Brasil me confere, e decide a revelia e contra os fatos.
Se o tribunal quer minha cabeça, ofereço-a não para que a jogue fora, mas para que, a partir dela, as pessoas de bem reajam a esse cancro que há muitos anos vem minando a confiabilidade, a eficácia e a honorabilidade das instituições públicas no Pará e na Amazônia.
O efeito dessa decisão é que, finalmente, para regozijo dos meus perseguidores, deixarei de ser réu primário. Num país em que fichas de pessoas se tornam imundas pelo assalto aos cofres do erário, mas são limpas a muito poder e dinheiro, serei ficha suja por defender o que temos de mais valioso em nosso país e em nossa região.
Como já há outra ação cível – também de indenização – em fase de execução, a perda da primariedade me causará imensos transtornos. Mas, como no poema hindu, se alguém tem que queimar para que se rompam as chamas, que eu me queime.
Não pretendo o papel de herói (pobre do país que precisa dele, disse Bertolt Brecht pela boca de Galileu Galilei). Sou apenas um jornalista. Por isso, preciso, mais do que nunca, do apoio das pessoas de bem. Primeiro para divulgar essas iniqüidades, que cerceiam o livre direito de informar e ser informado, facilitando o trabalho dos que manipulam a opinião pública conforme seus interesses escusos.
Em segundo lugar, para arcar com o custo da indenização. Infelizmente, no Pará, chamar o grileiro de grileiro é crime, passível de punição. Se o guardião da lei é conivente, temos que apelar para o samba no qual Chico Buarque grita: chame o ladrão, chame o ladrão.
Quem quiser me ajudar pode depositar qualquer quantia na conta 22.108-2 da agência 3024-4 do Banco do Brasil, em nome do meu querido irmão Pedro Carlos de Faria Pinto, que é administrador de empresas e fiscal tributário, e assim administrará esse fundo. Essa conta estava em vias de fechamento, mas agora servirá para que se arque com esse constrangedor ônus de indenizar quem nos pilha e nos empobrece, graças à justiça.
Farei outros comunicados conforme as necessidades da campanha que ora se inicia. Espero contar com sugestões, opiniões e avaliações de todos que a ela se incorporarem. Convido-os a esta tarefa difícil e desgastante de não se acomodar na busca de um mundo melhor para todos nós.

Belém (PA), 14 de fevereiro de 2012


LÚCIO FLÁVIO PINTO
Editor do Jornal Pessoal

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

NARRATIVAS E OLHARES DA MIGRAÇÃO PARA MELGAÇO

NARRATIVAS E OLHARES DA MIGRAÇÃO PARA MELGAÇO
Dailson Guatassara Santos
Glindes Ribeiro Wanzeler


O processo migratório faz parte da vida das populações humanas. Em diferentes tempos e lugares, homens e mulheres sempre procuraram viver da melhor maneira possível. Desde a gênese humana, o homem sempre foi um ser nômade, pois viveu e curtiu sua vida em processos de constantes movimentações. Na ilha e arquipélago dos Marajós, os primeiros habitantes deixaram, entre seus muitos saberes, a alternativa de estar sempre descobrindo outros lugares, rios e outras florestas, e desvendando os enigmas dessa cartografia física. Para isso ensinaram a seus filhos e às futuras gerações que a vida humana e as relações sociais nunca foram estáticas, e o isolamento nunca fez parte de suas identidades culturais.

O passar dos tempos e as transformações em diferentes campos do saber fez homens e mulheres enraizarem-se em comunidades e cidades, tornando-se, em dado momento, sedentários. Tal mudança, por seu turno, construiu duas facetas para o mesmo processo. Se muitas famílias habitando em cidades, vilas e povoados podem ficar mais tempo ali residindo, outras, em função de diferentes razões, estão sempre a caminhar em busca de melhores condições de vida e paz de espírito.

Em nossa região, percebemos que entre as razões que produzem deslocamentos humanos e culturais da floresta para a cidade, destacam-se: a busca por um emprego no setor público, melhores condições de infraestrutura no espaço de habitação, acesso à saúde, à educação, à moradia, maior aproximação com o poder legislativo e executivo e relações familiares, envolvendo afetividades, como saudades e laços humanos.
As movimentações de ribeirinhos da floresta para a cidade não são sempre lineares.

Isso pode ser facilmente visto quando algumas famílias se desencantam pela vida na cidade e retornam para suas antigas habitações e propriedades no espaço rural. Tais famílias percebem que a propaganda de obter uma vida melhor nem sempre se materializa. As linguagens urbanas desestruturam, muitas vezes, códigos e comportamentos oriundos do espaço ribeirinho/rural. Os migrantes, em sua maioria, são trabalhadores do campo ou de cidades de outras regiões que saem de sua terra natal para melhorar de vida com as novas oportunidades oferecidas pelo novo município. Para demonstrar tal argumento, usaremos depoimentos de alguns migrantes, sendo um deles Dona Ilda, oriunda do estado do Maranhão para Melgaço, no Marajó das Florestas.


“Pensei que Melgaço fosse um lugar igual ao Maranhão, com uma enor-
me falta de água, sem condições de fazer plantações, cultivos e criação
de gado, que são coisas da qual sempre gostamos de fazer. Porém, lá, a
tremenda falta de água não permitia que fizéssemos, mesmo assim viemos e
quando aqui chegamos, me deparei com outra qualidade de vida”.


Percebemos que da mesma forma que nordestinos migraram no período da borracha para os seringais de Melgaço, como Raimundo Anacleto, Benevenuto nogueira, Germano Andrade e os primeiros Mamedes, ainda hoje muitas pessoas migram em buscas de melhores oportunidades, porém, esse processo migratório não se dá em função somente da busca pelo trabalho, há outros motivos que precisamos levar em consideração para não restringirmos a complexidade do processo social. Perseguições políticas, melhor acesso à educação, à saúde e à moradia se mesclam com outros fatores apontados pelos entrevistados. Entre estes depoimentos, o de Dona Miraci, que veio de Benevides, para Melgaço, torna-se revelador:


“Sou de Benevides, conheci meu marido lá. A família dele morava aqui em
Melgaço e depois que seus pais se separaram e eles foram morar em Benevides,
lá eu conheci ele, namoramos e casamos. Como lá era difícil o emprego,
resolvemos voltar para a cidade dele e começar uma nova vida”.



Como já citamos anteriormente, a educação também tem um papel fundamental no processo de migração e formação da população, habitante do núcleo urbano melgacense. Com a construção da primeira escola estadual na sede do município, na década de 60, e o processo de emancipação política que levou à “libertação” de Melgaço da custódia de Portel, a cidade passou a ser vista com outros olhos pelos moradores rurais. Um relato que esclarece tal argumento é o testemunho de Lia Souza, coordenadora da E.M.E.F. Getúlio Vargas, em Melgaço, vinda de São Sebastião da Boa Vista, a qual falou de suas expectativas e conquistas, ao chegar ao município:

“Eu realmente não tinha boas expectativas em relação a esse município,
pois o achava muito pobre, os governantes não mostravam compro-
misso com o desenvolvimento. hoje eu vejo outra realidade. Estudei,
me formei e trabalho na educação há sete anos, ganho razoavelmente bem.
O padrão de vida dos moradores está melhor, a educação caminha a passos
largos e isso é muito importante para o desenvolvimento do município.”


A mudança de olhar da coordenadora pedagógica Lia Souza sobre a cidade de Melgaço deve-se muito pela maneira como estabeleceu laços de pertencimento com a cidade e as oportunidades conquistadas. Nesse caso, o ato de migrar lhe trouxe melhoria de vida, ascensão social pela formação de nível superior conquistada, e oportunidade de fazer o concurso público e ser aprovada. Se para Lia a migração para Melgaço não apresentava, inicialmente, grandes expectativas, depois superadas, para outros entrevistados a opção por Melgaço vem de conceitos pré-definidos como o de ser uma cidade extremamente familiar e acolhedora.
nas palavras de Dona Ilda, que já havia residido em Melgaço, mas estava habitando outro lugar, ao declarar sobre a questão de voltar a sua terra natal, comentou:

“Me sinto feliz aqui, me dou com as pessoas da-
qui, demorei muito tempo a me acostumar e agora
não penso em sair daqui.”


O sentido do pertencimento ao lugar pesa muito nas avaliações feitas pelas pessoas que pensam em deixar um lugar em troca de outro. relações familiares, amizades, negócios em parceria, contam muito nesse processo de decisão. Por isso, alguns, ao saírem e terem a oportunidade de voltar, optam, quase sempre, pelo retorno. O relato de Lia Souza, ainda que esteja inserido nesse universo, amplia a questão e faz entendermos que diferentes são os motivos da migração e complexas são as relações constituídas pelas pessoas, tanto com o lugar deixado, quanto com o novo espaço de moradia. Lia questionada sobre a ideia de voltar para São Sebastião da Boa Vista, entre indecisões, traço próprio do ser humano, narrou:


“Às vezes eu tenho vontade de voltar sim, às vezes não. Quando
penso em voltar para minha cidade de origem, é por causa de
meus pais, mas aí eu os visito e logo quero voltar para Melgaço.”


Envolvendo diferentes culturas, relações, os deslocamentos ocorridos de outros lugares para Melgaço demonstram, a partir de alguns poucos depoimentos por nós coletados, a construção de uma complexa teia de relações, sendo impossível classificá-los em uma única razão, como comumente se pensou. As condições econômicas ainda que sejam importantes na redefinição da vida de um sujeito social, não dão conta de explicar todo o emaranhado de sentidos, significados, avaliações, indecisões e traumas que o ato de estar como corpos de passagem podem provocar. Enfim, ouvir outras vozes, dialogar com outras evidências, podem ampliar esse leque de reflexões e conhecimentos que a pesquisa com a temática da migração suscitou em nós.



Texto retirado do Livro REMANDO POR CAMPOS E FLORESTAS: MEMÓRIAS E PAISAGENS DO MARAJÓ, de Denise Schaan, Agenor Pacheco e Jane Beltrão.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Cursos da UFRA em Portel

Município será o 1º do Marajó a sediar um campus da instituição


Um convênio assinado no último final de semana pelo pró-reitor de ensino da Universidade Rural da Amazônia (Ufra), Orlando Tadeu e o prefeito de Portel, no Marajó, Pedro Barbosa, celebrou a implantação dos cursos superiores e profissionalizantes naquele município, o primeiro do Marajó a sediar um campus da Ufra.

A solenidade de assinatura contou a presença de diversas autoridades e principalmente de centenas de estudantes concluintes do ensino médio que estão ansiosos para dar continuidade aos estudos em nível superior em áreas que somente a Ufra oferece, como engenharias de pesca, ambiental, florestal, zootecnia e agronomia, visto que a região possui um imenso potencial agropecuário e florestal, além da criação de peixe em cativeiro, que vem sendo disseminado em toda a região.

O coordenador de implantação do campus, professor doutor Edir Queiroz Neto, fez uma longa dissertação aos atentos ouvidos de mais de 400 estudantes que lotaram as dependências do auditório principal da cidade. Segundo ele, no segundo semestre deste ano já estarão funcionando alguns cursos técnicos nessa área e no final do ano será realizado o vestibular com ofertas dos diversos cursos que possam ser implantados em áreas distintas, como na zona rural, onde funciona o curso "Saberes da Terra", com a criação de peixe em cativeiro, hortaliças e animais como porco e galinha e tem espaço para alojamento e salas de aula.

A prefeitura também está montando um laboratório de produção de alevinos e um tanque para criação e engorda de peixes. A Secretaria de Educação também tem espaço de sobra em salas de aula e aparelhamento para desenvolver aulas teóricas. "Por falta de lugar, espaço e apoio o curso não vai deixar de funcionar ", asseguram o prefeito e a secretária de educação, Rosangela Fialho.

A princípío a Ufra vai oferecer 13 cursos superiores e mais de 20 técnicos, além de programas de extensão que possam inventariar as imensas florestas da região, trabalhar com produtos oleaginosos como a andiroba, a copaiba, o muru muru e as palmeiras, que são muito apreciadas na linha de produção de cosméticos.

O deputado federal Arnaldo Jordy, presente ao evento, confirmou a liberação pela Câmara Federal de uma emenda sua no valor de 700 mil reais para a Ufra utilizar na implantação do campus de Portel e foi ovacionado pela plateia. Projetos importantes para o desenvolvimento sustentável, como o zoneamento ambiental, licenciamento e fiscalização sobre os madeireiros foram temas citados no encontro. Todos se mostravam convencidos que esses cursos poderão trazer muitos benefícios para a agropecuária de Portel, cuja metade da população de mais de 50 mil habitantes reside na zona rural, é ribeirinha e vive do peixe e da farinha. "Vamos levar tecnologia e melhorar a produção de farinha que já é excelente na região e promover a criação de peixe para sustento e comercialização", antecipa o professor Edir, da Ufra.


Fonte: Orm 

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Qual o manejo florestal comunitário que queremos? - Parte II

Gurupá, passando pela Ilha de Santa Bárbara,

28 de janeiro de 2012

Caríssimos,


Outro dia em um seminário prestei depoimento que gostaria de traçar novos desafios para minha vida profissional além do manejo florestal comunitário. Não é por ter deixado de apreciar o tema, mas simplesmente para satisfazer a fraqueza que tenho pela dúvida, pela pergunta sem resposta em outras áreas do empreendedorismo social.


Por tal condição queria tratar nos próximos anos de melhoria de indicadores socioeconômicos e ambientais, combate à malária, cultura, formação de jovens, estratégias de autonomia das entidades nos movimentos sociais em relação a financiadores externos. Taí um desejo e um desafio para a minha sempre doidice. Entretanto, assombra-me um fenômeno no manejo florestal que eu não queria que acontecesse e que já me chamava a atenção em 2009. Por isso não tem jeito: volto a discutir manejo florestal.


Com a política das concessões florestais, tanto a nível federal quanto estadual, onde participara do debate na diretoria de gestão de florestas públicas do IDEFLOR, vi uma saída para o problema de exploração de madeira em áreas públicas, com arrecadação para o Estado e destinando-se, conforme expressa o sexto artigo da lei nº 11.284, de 2 de março de 2006, áreas para comunidades agroextrativistas antes da concessão florestal. Neste artigo da lei apeguei-me, pois só quando ordenado o território para o agroextrativismo, proteção ambiental e concessão florestal, pode-se trabalhar em uma exploração de madeira a nível empresarial ou comunitária com certa tranquilidade, definido o que é de cada parte de maneira a mais justa possível. Cada um no seu quadrado.


Pois bem. Avançado de um lado, complicado de outro. Os empresários do setor florestal com intenção séria buscaram a certificação e as concessões florestais, entendendo o novo quadro de pagar pela madeira pública e procurando agora ajustar-se às leis de regularidade fiscal e trabalhista, praticar operações de manejo bem mais responsáveis e ter que respeitar os territórios de populações tradicionais.


Apesar do avançar de uns, percebo que outra parcela do setor madeireiro tem preferido migrar para algumas áreas comunitárias pelo Pará afora, em terras regularizadas. Dessas relações, tenho escutado reclamações de vários cantos, desde a região Calha Norte, Baixo Amazonas, estuário do Amazonas e até em lugares considerados sagrados pela força do movimento social no enfrentamento do uso florestal sem planejamento.


A percepção que fica é a falta de clareza do que se ganha e do que se pode perder. Sem um debate preparatório, será que a família que têm cedido suas áreas para a exploração tem a noção do quanto vale a sua floresta em termos monetários? Tem discutido a contento quanto vai sair de madeira e qual o impacto na sua mata? O que pode uma escala empresarial de grande porte interferir nas idas e vindas da fauna, dos peixes? É vantajosa para uma comunidade a retirada da madeira de uma só vez (chamado POA único, uma desgraça para o manejo florestal em minha opinião), quando as próprias famílias de forma planejada poderiam manejar por 30 anos e ganhando seu quinhão todo santo ano? Agora obtida a tão sonhada regularização fundiária e ter-se avançado nos serviços básicos à população nos últimos 10 anos, pesa mais a impaciência de se ter lucro o mais rápido possível sem saber lá na frente o resultado das decisões de hoje?


John Lennon no final dos 1970 chocou os seus fãs ao dizer “o sonho acabou”. Ele se referia ao movimento de comunidade, luta por direitos e reflexão sobre humanidade que os anos 1960 espalharam no mundo, na idéia de tornar o planeta uma só coletividade. Por ver o distanciamento das bandas de Rock daquela ideologia comunitária na década seguinte, lançaria sua frase afiada e realista.


Lutadores do movimento social que lutaram pela posse da terra nos últimos 30 anos:


- O sonho acabou?


Espero que não.
Pantoja Ramos
Enviado por Pantoja Ramos em 04/02/2012
Código do texto: T3479288

FOTO: ONG FASE



Qual o manejo florestal comunitário que queremos? - Parte I

Gurupá, Casa Familiar Rural no rio Uruaí, 28 de janeiro de 2012.


Caríssimos,

Princípios universais são valores que determinamos como definição, que não geram dúvidas. Já a moral, como diria um filósofo chamado Immanuel Kant, é a ordem do “age apenas segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal.”. Partindo deste raciocínio ao percorrer uma região que vai do oeste do Pará, sobrevoando o Xingu,  passando pelo Amapá e cruzando o Marajó, percebi que há um princípio do manejo florestal comunitário e talvez uma regra moral: toda comunidade amazônica para fazer manejo florestal madeireiro ou de recursos da sociobiodiversidade deve conhecer seus recursos naturais. Sócrates lhes perguntaria: “conheces a ti mesmo?”.

Em debate sobre o uso florestal madeireiro por comunidades, apresento três exemplos de cumprimento desta regra universal de domínio de sua mata: a COOMFLONA, em Santarém – Floresta Nacional do Tapajós; a comunidade Arimum na RESEX Verde para Sempre e as famílias do Distrito do Itatupã, nas várzeas de Gurupá. Em comum, apesar de diferentes ecossistemas, estas localidades promovem um manejo florestal comunitário madeireiro a partir do real conhecimento originado do levantamento florestal, do que sai, do que fica, do seu valor, do seu potencial. Decidem o que é melhor no inventário, na estrada, no transporte, no comércio, contratando em alguns casos os serviços de arraste e construção de estradas, mas tendo sempre a mão a gestão do processo. Não foi fácil, imagino, chegar a este entendimento interno. É preciso muita conversa, muito compromisso e muita organização.

O resultado deste controle dos estoques florestais são as receitas geradas, os saldos positivos que tem surgido e que tem me ensinado uma valiosa lição de estratégia de manejo e comercialização de produtos florestais madeireiros. Como exemplo, apresento aqui um exercício matemático para melhor entendimento aplicado na comunidade fictícia Timbuí, do líder comunitário Argemiro Monteiro, conhecido como Seu Pirarara, tudo bem pela rama, cabe ao leitor pesquisar a fundo:

- Seu Pirarara, como vocês fazem o manejo? – pergunto.

- Olha seu Carlos, primeiro aprendemos a fazer o inventário, o levantamento naqueles negócios de X e Y, de medir a grossura e a altura de cada árvore, da altura comercial, do plaqueamento, essas coisas. Aprendemo no papel, aquele milimetrado.

- Papel milimetrado? Que coisa mais antiga, Pirarara.

- Mas foi o papel que a gente aprendeu a mexer no tal X e Y.

- Ah, tá.

- Depois da capacitação, escolhemos 100 hectares para fazer o inventário num plano que tem 3 mil hectares.

- 30 anos de ciclo de corte?

- Isso. 30 anos.

- Qual o tamanho de sua área?

- 10 mil hectares do nosso assentamento agroextrativista.

- Tá a terra regularizada?

- Tá. E com o manejo discutido pelas 20 famílias que vivem no assentamento.

- E o que mais vocês decidem?

- A gente decide com orientação de um técnico responsável o quanto vai tirar na mata naquele ano. Na primeira vez, decidimos tirar uma média de 20 metros cúbicos por hectare no manejo.

- Deixa eu vê se entendi. Vocês tiram então 2 mil metros de madeira em tora por ano, pois tu multiplica 20 x 100 hectares ano. Licenciado?

- Licenciado, tá pensando o que? Tudo na letra certa.

- Fiuuuu – assobiei em sinal de positivo - e a quanto vocês vendem o metro cúbico de madeira?

- Olha, a gente leiloa a madeira, onde a venda tem que cobrir o arraste, o transporte e as estradas.

- Quanto é o preço médio?

- Varia muito a depender do tipo da madeira, se é angelim, se é itaúba e aí vai. Vamos dizê que seja uns 200 reais por metro de madeira em tora a média só pra tu fazer a tua conta e entender.

- Então a receita bruta de vocês é de 200 x 2000. Deixa ver, dá 400 mil reais de receita.

- Quem me dera! Aí metade vai pagando o transporte, as estradas, o arraste. Já viu, né? A gente não tem esse maquinário.

- E vocês não têm medo de quem vai arrastar se ache dono do manejo?

- Tu é doido?? A gente é quem decide. Eles só fazem um serviço e nada mais.

- Baixa pra quanto a receita?

- Pela metade. Fica uns 200 mil reais.

- E agora?

- Tem que pagar o engenheiro, ora.

- E depois?

- Dividir. Fica uns 6 mil reais para cada família, trabalhando 4 meses, com aqueles que trabalharam direto no manejo, ganhando as suas diárias além dos seus 6 mil. Um tanto fica pra associação tocar os trabalhos do outro ano.

- Certo. Pra você vale a pena?

- Vale só se a gente tiver organizado e entender do quanto tem na mata e o que vai sair naquele ano. E aí todo ano tem aquele dinheiro nos 4 meses do verão do manejo.

- E o que vocês fazem com o dinheiro?

- Depende. A gente investe na posse, compra criação, porco, melhora a casa, o plantio, essas coisas para o resto do ano. Não vivemos só da madeira. A madeira vem junto com o plantio, a caça, a pesca.

- Todo ano.

- Todo ano se a gente aprovar o plano daquele ano se a burocracia deixar.

- Muito bom, Seu Pirarara.

- É só se organizar...

Após esta conversa com Pirarara, percebi que é possível e que quem deve mandar no manejo é a comunidade. Afinal, depois de tanta luta pela terra, tantas perdas pela regularização fundiária, deixar de mão beijada a nossa floresta para outros tomarem de conta é justo?

É justo aos quilombolas?

É justo aos agroextrativistas?

É justo?

        É moral?
Pantoja Ramos
Enviado por Pantoja Ramos em 01/02/2012
Reeditado em 01/02/2012
Código do texto: T3475208

Foto: ONG FASE