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terça-feira, 26 de março de 2013

O MENINO NENÊ RIPA DE PORTEL, MARAJÓ, EM 5 ATOS



Portel, 05 de março de 2013.


                                                           

ATO 1 – NASCER


Nenê nasceu naqueles idos de 1998. Época de verão moderado, mas de muita poeira e muinha espalhando-se pela cidade de Portel, naquele mês de junho. Seu Frank passando de bicicleta virou a cabeça para perguntar a si mesmo o motivo de tanta gritaria da moça Gracieli muito nova, naquele casebre que mal se via, apertada por duas outras moradias no lado das estâncias a receber madeira serrada. Estava para dar a luz a um pequeno, mas ela mesma era ainda pequena em sua idade, chutemos no máximo uns 16 anos porque não se deve perguntar a idade às mulheres nem dizer assim de graça. O pai, Dagoberto, futuramente conhecido como Viracopos, pede para Agenor e seu táxi velho, um Chevette 1980, levarem a quase parida para o hospital portelense. O motorista chega rápido na casa de moça Gracieli, porém na hora da saída com a gestante encrenca o carro e obriga aos 2 homens que por ventura passavam por ali, um carreteiro levando areia e um prestação, no obséquio de empurrar o calhambeque, batendo-se chave e pegando a bateria na terceira tentativa num “vamo que vamo”. E partiram pulando o pai, a mãe e a barriga nos buracos agoniando ainda mais a mãe Gracieli, em meio aquele cheiro de gasolina, estofado velho e tetânico do veículo que percorria o corredor de casas e galpões que abriam frestas para o rio de vez em quando e jogavam ao ar o barulho das pequenas serrarias a produzirem tábuas. Os homens que entulhavam a madeira pararam por um instante ao perceberem o choro da vizinha que rasgava a tarde.


A enfermeira jovem corre para a enfermeira chefe e diz do acompanhamento da parteira à moça Gracieli, que segundo dizem, apontava para criança virada. A parteira, Velha Silvana, deixou escrito que talvez tivesse tido sucesso em desvirar o nenê, registrado naquele bilhete com pontas meladas de copaíba e andiroba juntas, antes de partir para o Médio Camarapi, onde morava quase escondida de todos e só se permitiu cuidar da moça Gracieli porque esta era sobrinha de uma grande comadre sua, amigas que ficaram dos antigos cursos de reconhecimento das parteiras.


A enfermeira chefe torceu a toalha para a moça Gracieli morder, pois só assim, no urro e no dente, o menino sairia. Na maca dançante e enferrujada em suas quatro bases, a quase mãe botava todos os santos pra fora, o que fizera fugir até as aranhas, impregnadas ali faziam tempos nos escanteios da sala de parto. “Meu Deus”, pedia ao Supremo que resolvesse a questão, enquanto a enfermeira chefe escroteava com a pequena exigindo mais força para expulsar a criança. “bora, enfrenta, antes só bem bom, agora aguenta!”. “Vai pra merda”, respondeu moça Gracieli, quando surge a cabeça. “tá enrolado o pescoço no cordão!”, alerta a enfermeira jovem. A enfermeira chefe nos altos de seus 30 anos de trabalho, com muita habilidade traz a cabeça da criança sem magoá-lo no umbilical cordão até o ponto de achar que poderia ainda com o rebento não saído inteiro meter-lhe a tesoura e separá-lo da mãe fisicamente. Assim o fez. Veio um menino. Um pequeno meio engasgado pelo resto de cordão que prontamente foi-lhe aliviado. Levaram-no ao colo da mãe Gracieli quase desfalecida e os dois ficaram ali parados, soluçando um para o lado, um para o outro, solidários entre si no cansaço. Três horas depois, brigou pelo primeiro leite o pequeno Samuel, futuro Nenê Ripa.



ATO 2 – CRESCER NA PRAIA E NAS TÁBUAS


Primeiro chamaram-lhe de Nenê. Miúdo talvez da dificuldade da mãe Gracieli em alimentar-se direito durante a gravidez, por causa do excesso de enjoos que a perseguiram os 9 meses que a fizerem ter asco de quase tudo, até de Dagoberto e seu perfume de Alfazema. Não foi por falta de comida da mãe que nasceu o bebê magrelo. Dagoberto era funcionário da Madeireira Locama e naquele ano de nascimento de Nenê a firma estava em pleno funcionamento, vendendo madeira branca e madeira de lei sem maiores problemas. Contudo, sabiam que estavam indo mais longe do que o costume para buscar angelim e maçaranduba, nas cabeceiras do Camarapi e Pacajá. A virola estava começando a escassear nas bandas de Breves, do Mapuá ao Jupatituba. Vinham serrando e laminando sem maiores atropelos. Com pagamento em dia quinzenalmente, recebia os vales e mandava ver nos ranchos. Bebia só em momentos realmente especiais, até porque era vidrado mesmo no trabalho, de 08 às 18 hs e na sua esposa Gracieli, colocado muito jovem à condição de encarregado na empresa. Para exercitar o corpo, jogava bola no campo do Camel. Era um apurado na bola e um bom serrador, conhecedor dos lari-laris das madeiras que teimavam algumas em rachar.


Nenê dos 4 aos 7, quando já se saía da mãe Gracieli, corria por entre as tábuas da estância do tio Bosque próximo à sua casinhola. O tio era homem grandão, brincalhão e barrigão que “Ispia menino, cuidado com essas tábua”. Não tinha como evitá-lo. Menino que se preze quer espaço e sua residência mal dava pra ele disparar. Era ter a porta aberta e mergulhar por entre as pilhas de ripas, tábuas, pernamancas, flexais, esteios. Era perito em esconder-se dentro delas, muitas vezes deitado a camuflar-se. Esguio, serelepe e com odor de serragem de tanto se misturar, acabou Tio Bosque lhe rendendo o apelido de Nenê Ripa.


Outros moleques também brincavam naquela confusão, convidando agora Nenê Ripa para sair para as praias. Mãe Gracieli só deixava ele ir na praia próxima, do Joãozinho, com cuidado a observar as marés secas que chamavam as arraias. Botava medo nele que ferrada de arraia dói até depois de sarado, só de lembrar do sofrimento. E pior que pinica mesmo. A praia do Joãzinho depois dos grandões terminarem a sua bola virava um paraíso pra aquela meninada: era um show de acrobacias, de pega-pegas, de nadadas rápidas, de gargalhadas. Nenê Ripa já se destacava pela capacidade atlética de torcer o corpo em carambelas. Ia feliz e voltava feliz. Tempos depois passou a chegar tristonho, já aos 7 anos. Fugia para não escutar a briga dos pais, onde Dagoberto, agora apelidado de Viracopos, ameaçava bater em mãe Gracieli, caso ela não desse o dinheiro pra ele beber 2 dedos de cachaça, “Mulhé, e só!”. As coisas tinham piorado no trabalho da madeireira. O salário tinha baixado e colegas seus foram demitidos, agora bebedores além do final de semana e que traziam Dagoberto para esta nova fase de sua vida. Tal a sua vontade ficou em beber cachaça, tal a desenvoltura nos minicampeonatos de tragos, que não demorou a lhe darem o epíteto Viracopos. Não jogava mais bola, sua vergonha na última tentativa de conciliar futebol e álcool terminara ao quebrar a perna de um adolescente, uma promessa, que lhe dera uns aviões humilhantes. Foi banido futebolisticamente do Camel.





E isso refletia em Nenê Ripa. Agora, revoltado com a situação do seu lar, que aos poucos estava virando apenas casa, o menino começou a puxar confusão, partindo pros socos na primeira encarnação ou brincadeira com os pais. E nem importava o tamanho do adversário. Se apanhava, corria pra estância e trazia uma ripa. As coisas aí ficavam igualadas. Passou a ser temido e virou um magrelo fanfarrão, intimando os filhos pacatos dos outros e fazendo-se líder das cambadas que iam brincar de polícia e ladrão. Tio Bosque estava decepcionado com o menino. Era o único que deixava o moleque sem jeito com suas esculhambações. Quietava. Batia No filho do diretor da escola. Quietava. Balava calango só para ajeitar a mira. Ralhavam-lhe. Quietava. Espantava a velha Tonha com máscara de carnaval no dia de Finados. Surravam-lhe. Quietava. Quebrava o supercílio na guerra de castanhola. Quietava. Dedava a Rosa no corredor da escola. Apanhava. Quietava. Pisou em prego enferrujado quando tentava olhar a Raimunda se vestindo. Medicaram-lhe. Parava. Apossou-se do relógio de seu Eurico esquecido dentro do banheiro de um barco. Apanhava. E assim foi levando a infância.


ATO 3 – O ACERTO COM OS ARREDIOS

Mal se falava em Samuel. Na grande maioria das vezes citavam Nenê Ripa. Aos 10 anos seu pai Viracopos já estava no terceiro ano de desemprego formal, um ajuntamento de renda que ia do carregar de seixo ao carregar de malas nos portos da cidade. Não se conformava em não ser mais homem fichado com salário constante e supervisor. Culpava o Ibama pela decadência das madeireiras de tanto mandarem multa e prisão das balsas. Tio Bosque avisava que o Ibama era só uma das causas, que os próprios madeireiros tinham se fartado tanto e levado seu dinheiro ganho pra outro lugar, sem se preocupar em plantar, “só queriam tirar”. Dizia que o mercado da madeira lá fora também tava ruim, pois escutou isto do Velho Frank, o homem que mais sabia do mundo em Portel. Viracopos não ouviu nada, pois já tava na metade da garrafa de aguardente e continuava a culpar a humanidade por sua desgraça.


Muitos outros pais estavam na mesma situação e esse problema causava um desvio de comportamento aos seus filhos: de serem arredios às suas figuras paternas. “não quero buscar ele, ele tá porre”. “mana, o pai te mexeu?”. “mãe, porque você tá chorando?”. “sou o Miquéias, não o João”. “pai, não me bate pai, não, pai!!”.
 Assim os arredios foram se encontrando, se acertando. Passaram a só andarem juntos. Uns queriam ser iguais aos pais e um dia que eles não esquecem, o Tarugo veio com 5 latas de cerveja. Tarugo, Miquéias, Sombra, Jabota e Nenê Ripa provaram do suco alcoólico. Ali selaram o pacto. Continuariam a ter lazer, mas conversariam coisas de adultos sem que ninguém percebesse, fariam saliências ao mesmo tempo com a Celina da rua do cemitério, roubariam as galinhas do seu Ramos, dariam porrada nos irmãos Macacos, jogariam no time do Dudu e beberiam com dinheiro dos pais bebuns. Nenê Ripa sem querer liderava a palavra final aos atos. Cresceram nestes estratagemas.


ATO 4 – SER CONVENCIDO PARA O DESESPERO

Nenê Ripa e os 4. Não era uma banda de rock. Era uma pequena turma formada que aos 14 anos de cada um badernavam na cidade e já no interior. Foi num cascudo dado em Jabota por um professor que começou de fato a fama dessa trupe. Ao darem uma surra no professor Laurelino, percebeu-se o quanto tinham ficado perigosos, sem atenção dos pais e da sociedade local nos últimos 4 anos, crescendo silenciosamente na vontade de bater nos seres humanos, muitas vezes sem causa aparente. Apesar da luta dos professores em formá-los dignamente e com todas as dificuldades existentes, foi no despreparo de um que surgiu a notoriedade infeliz de Nenê Ripa, o primeiro a socar Laurelino, logo depois os 4. E passaram a ser párias temidos, com o preconceito gratuito de meninos encrenqueiros e nada mais.


Foi quando Sebo de Holanda chegou em Portel. Vindo de Abaetetuba trazendo maconha e umas petecas de cocaína, chegou-se primeiro aos adultos alcoólatras. Não foi investimento para seus planos funcionarem. Teve dificuldade pelo já estado deplorável de homens como Viracopos que não renderiam nada, nem tinham mais forças para roubar. Pesquisando na saída das escolas e andando pela praia, já naquele sereno de sábado, viu os cinco garotos bebendo cerveja na praia do Arucará perto da antiga igreja. “e aí, que é que tá pegando?”. “nada”. “olha que eu tenho aqui. Melhor do que cerveja”. “que é isso?”. “maconha”. “é isso que é maconha?”. “Gala Seca tu nunca viu?”. “kkkkkk”. “toma estes 5 cigarro, se quiserem mais, to parando ali no bairro Muruci perto da Caixa D´água. É só perguntar pelo Sebo de Holanda”. E o homem fedia a sebo mesmo.


Nenê Ripa e os 4 pegaram os cigarros mas não tiveram coragem. Não entendiam o motivo, mas sabiam que tinham na mão algo mais poderoso que a bebida, segundo pensavam. Voltaram para suas casas, guardando cada um o cigarro em diferentes lugares, por entre os esteios, em uma caixa atrás do sanitário do quintal, na casa do Tio Bosque que tava viajando para Macapá, na mesma mala que guardava as revistas de sacanagem já descoberta pela mãe e que já não ligava, dentro de um saquinho plástico colocado dentro do caderno. Em ocasiões acumuladas fatidicamente nos próximos 2 meses, os meninos se revoltam de vez e decidem vingar-se do mundo experimentando a maconha dada por Sebo de Holanda.


Tarugo teve a irmã abusada pelo pai novamente.


Miquéias não recebeu os parabéns do pai por não ter repetido de ano. Só o irmão João.


Jabota viu o pai bater na mãe novamente.


Sombra enxotou os urubus que confundiram o pai dormindo bêbado com um cadáver.


Nenê Ripa apanhou de corda de náilon até as costas parecem uma seringueira riscada, só que o látex era vermelho.


Em cima do barco que sempre ficava ancorado lá na praia do Arucará, o Desespero os convenceu que a vida estava péssima e sem alternativas. O melhor era fugir dela. Decidiram fumar maconha. Todos juntos em sinal de protesto. E ficaram altos. E beberam. E riram feito abestados. E falaram fino. E meteram cerveja em cima. E Jabota vomitou pra caramba. E Sombra quase morreu afogado. E deitaram na proa deste barco até o dia amanhecer.

Procuraram Sebo de Holanda. Não o acharam no Muruci. Souberam que estava na frente de Portel dando um tempo por ter esfaqueado um rapaz que não pagou direitinho suas dívidas. Nenê Ripa e os 4 foram até lá pedir por mais maconha. “como é que vocês vão me pagar?”. “não sei, com venda de picolé?”. “Gala Seca mesmo tu é!”. “toma, mas me paguem com a televisão da casa do Seu Brito, que mora a quatro casas no mesmo lado da rua da farmácia do Quincas”. “quero com o controle remoto, viu?”.
Discutiram se valia a pena. “eh, Nenê, se a polícia pega a gente?”. “pega nada Jabota”.


Naquela noite sem luar, Sombra fincou acampamento do alto do galho da mangueira que ficava em frente à casa do Seu Brito. Observava e daria o sinal quando na casa ficasse quieto e a luz da frente apagada. Mas desde já não dava pra vê-lo. Jabota estava na outra esquina e quando avisado receberia a televisão da sala do lado de fora e sairia, pois era o mais forçudo. Como preparação, Tarugo ainda de dia, daria uma balada no cachorro de Dona Vanda e outra na lâmpada do poste que costuma iluminar aquela parte da rua da farmácia. Miquéias e Nenê Ripa aproveitariam a barulhada para tirar pregos da tábua meio solta no assoalho da casa de modo que um menino magrelo passasse. Pegariam a chance da ida apressada dos entes da casa de seu Brito no susto de ouvir o grito do cachorro Araqueto. Para dar certo, contavam com o escândalo habitual de Dona Vanda a gritar contra a danadice dos moleques contra seu animal e a apontar o poste. Ela não decepcionou. Fez o maior escarcéu e os moleques enfraqueceram o assoalho.


De noite, Sombra percebeu a quietude e deu apenas um sinal de lanterna, apenas o suficiente para chamar a atenção dos pequenos comparsas. Eram duas da manhã entrando-se já no alto sono. Nenê Ripa esgueirou-se pelo quintal e usou seu próprio corpo para arrecadar a tábua do assoalho com a ajuda de Miquéias, cumprindo mais uma vez seu destino de ripa e confundiu-se com a madeira. Com o sofrimento de 20 minutos de varar pela fresta, enfim chegou à sala. Cuidadosamente pegou a televisão LED de 32 polegadas e foi para a janela da casa. Pegou o óleo de máquina que tinha no bolso, passou nas dobradiças da janela para evitar o ranger e arredou para cima o ferrolho, abrindo-a. Jabota já estava embaixo para receber o aparelho, aguentando a duras penas o peso. Pulou a janela e caíram no mundo.


E caíram esquecendo o controle remoto. “porra”! resolve Nenê voltar para pegar o dito. Tarugo pede pros outros irem embora e fica para esperar Nenê. O cachorro Araqueto reconhece Tarugo. “agora me vingo!” e late, late, late, late, late, late. Acordou Dona Vanda que pegou os meninos no ato. “mas que cês tão fazendo aí? Quem é?”. Sombra e Nenê disparam pelo quintal da senhora, Araqueto e latir, Dona Vanda a gritar ladrão. Agora sim o controle nas mãos. E nas mãos de Sebo de Holanda passaram a TV. Feito o pagamento.


Nenê Ripa e os 4 sentiram-se indestrutíveis. Intocáveis. Os mais espertos do mundo nas suas concepções. Arrogantes.


ATO 5 – Fim

Naqueles tempos, tudo se percebia sinistro. O vento do inverno passava frio a Portel e mostrava a escuridão da baía do Camarapi, assobios vindos de não-sei-quem. As pessoas evitavam estar nas ruas depois das 22 horas. Até os bares com suas músicas andavam tenebrosas, por mais que tocassem os mesmos tecnobregas e melodys. Tudo por causa das turmas que bebiam por ali. Como zumbis, andavam de um lado a outro pela rua da praia, parecendo gostarem de pousar na praia da igrejinha, o local mais escuro daquelas paragens. Desde a morte de um senhor alvejado por tiros em sua casa por ladrões surgidos do rio próximo, seria um lugar de lembranças e alerta para as pessoas que não faziam mal a ninguém.


Nenê Ripa e os 4 mantinham-se na concorrência, maiores, mais perigosos e mais audaciosos. Quando Sebo de Holanda fugiu pra Belém, pois a polícia tinha-o mapeado no Marajó, entre Breves-Melgaço-Portel, deixou como aviãozinho-mor ou chefe de boca interino o jovem Nenê. Maltratava assim o coração de mãe Gracieli, alguns anos sobrevivendo dos enganos de si mesma em relação às atividades do filho. O pai, Viracopos, vivia em frangalhos pela cirrose adquirida faziam ano e meio. Além do chefinho, Sombra, Tarugo, Jabota e Miquéias mantinham agora a rotina de beber no Arucará, vender “produto” na Portelinha e roubar no resto da cidade.
No carnaval, sangraram um menino até a morte durante a passagem do Bloco do Porco, simplesmente pela vítima ter atraído a atenção da namorada de Tarugo, Condessa. Todos sabiam que foram Nenê e sua turma, mas nada de justiça, inebriados estavam a população por aquele festejo. Vendiam bebidas aos jovens, outros apontavam que os jovens eram a causa da situação caótica, outros culpavam o governo, aqueles xingavam o presidente, já sabidos achavam que era um fenômeno explicado pela sociologia; indiferentes estes ficavam a contemplar a situação, ali em cima do cadáver. Apenas seu Frank avisava que em seus tempos de sobrevivência à segunda guerra mundial, percebia a mesma indolência da população europeia em relação aos problemas e que isto é caldo fértil para ditadores. Tio Bosque falava da perda de 3 gerações por conta da falta de um gostar maior de Portel. Os esclarecidos que poderiam mudar a situação brigavam muito entre si.


Naquele mês de março, um segundo sábado, chovia na noite portelense. Assim mesmo, no Mormaço, fazia-se o campeonato local de Treme, dança coqueluche no Pará. Tarugo era o cara nesse sentido. Nenê dava o jeito dos bons concorrentes abandonarem a competição. Tava tudo armado, mas o China, garoto da Portelinha, resolveu talvez por ingenuidade dos seus 13 anos, vencer a competição. Ficou marcado por Nenê e os 4. Como vingança, entrariam na maior na casa de China e roubariam o que viesse pela frente.


Letrados na arte do roubo e da intimidação ainda precoces, Nenê Ripa e os 4 foram ao bar, compraram umas cervejas, beberam e cheiraram ali mesmo na calçada. Pegaram das pistolas, meteram debaixo da bermuda frouxa e meteram suas cabeças pintadas para o rumo do lado oposto da cidade. Chegando à Portelinha, foram andando por entre as vielas, cabeças erguidas, passos dançantes, com as pessoas se escondendo em suas casas, pois sabiam que ali tinha confusão. Nenê na frente. Sombra fazendo a retaguarda. Jabota tropeçando. Tarugo com a mão dentro da bermuda. Miquéias empurrando o casal que teimava em não sair do caminho.


Na casinha de madeira feita de guajará e marupá, China assistia televisão enquanto o pai escutava o rádio Am com as últimas notícias do clássico Remo e Payssandu.


“Ei! Te arreda daí, te arreda daí!”. “como é que é?”. Tapa. China: “que foi?”. Tapa. Tapa na mãe. Tapa na filha. “Bora, cada um pega o que der...”. O pai de China corre pra cozinha. “Ê rapá, quer morrer??!!”, berra Nenê Ripa. E segue o velho com a arma em punho. Quando chega à cozinha, recebe um canhão no meio do peito da espingarda 12 que arrebenta o peito magrelo de Nenê, fazendo cair ali no corredorzinho, estrebuchando. O pai de China cria toda a coragem que lhe restava e sai atirando em tudo que se mexa na sala, até quase acerta a filha. Jabota pega um tiro na perna e sai mancando. Sombra puxa o revolver, mas a mãe de China se enrosca com ele, e na briga com a senhora atira em si mesmo, no queixo. Tarugo dá um tiro no velho, mas erra, e na reação do dono da casa, pega um tiro na barriga, se socorrendo no pé de mangueira novo que vigiava por ali, abraçando-o. Miquéias sai correndo pro mundo. E some. Jabota quase é linchado pela população, mas graças ao policial que chegara no local, livrou-se do fatal.


Por milagre, Sombra e Tarugo sobrevivem. O primeiro perdera a língua. O segundo carregaria os chumbos por toda a vida até a úlcera final. Jabota passaria a mancar e a engordar, castigando o lado esquerdo do corpo. Miquéias realmente sumira. Nenê Ripa morrera. Viracopos, desesperado com a morte do filho, se encheu de uma falsa razão e matou o pai de China com uma facada no pescoço, quando este saía da igreja. Foi preso e mandado para o presídio de Americana, em Belém. Por lá se desfez.


No enterro de Nenê, só estavam mãe Gracieli e Tio Bosque. De mãe Gracieli só escorriam as lágrimas, pouco barulho havia, pois seu menino a muito não era mais seu.
Ao ver Nenê Ripa e caixão que mais parecia um caixote, Tio Bosque lamentava-se: “Não foi uma ripa. Foi apenas uma árvore maltratada”.


Miquéias foi morar no Maranhão, lá pras bandas de Imperatriz. Converteu-se ao protestantismo. Casou-se. Teve filhos. Mas ao rádio Am, quando escutava uma faixa paraense, chorava copiosamente na música de seu Gilberto:


“já não aguento,
toda essa ansiedade,
to morrendo de saudade,
com vontade de voltar,
pra minha terra,
minha gente, meu Portel,
meu pedacinho do céu,
no recanto do Pará...”.

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Pantoja Ramos

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