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terça-feira, 10 de abril de 2018

Dois Dedos de Revolução



Carlos Augusto Ramos[1]


Caríssim@s Manos, Mãe, Tios, Primos, Guerrilheiros,

Meu pai, senhor Waldir Coelho Ramos, foi um operário, trabalhador de fábricas, principalmente de Indústrias de Celulose, se especializando e passando boa parte de sua vida neste setor. Era um técnico mecânico muito talentoso segundo os que o conheceram no trampo. Aliás tenho família com tradição na geração de bons profissionais na arte de lidar com equipamento industrial. Eu, longe disso, segui torto.

Seu Waldir e eu não conversávamos muito sobre a vida, a não ser que ele estivesse “animado” pela cerveja de fim de semana. O “Ué?” era o sinal, assim eu já sabia que ele iria abrir o verbo alegremente. Acabei me aperfeiçoando na arte de conversar com ébrios. O segredo é não falar muito e prosear com os olhos, mostrando expressões de concordância, discordância e ponderação, mas de respeito acima de tudo. Neste último domingo, no retorno de Curralinho a Belém no Navio Baluarte, um senhor que lembrava seu Waldir, da mesma idade aparentemente, mesma fisionomia e mesma galhofada embriagada se aproximou e puxou conversa comigo. Me surpreendi com a semelhança, o que me fez buscar o velho método para prosear longamente. Ele falando sem parar no seu linguajar de língua atropelada, eu calado, sentenciando cada frase com gestos e pequenas mímicas. A saudade que despertou e o contexto atual me levaram a aqui escrever uma passagem familiar e política.

Eu respeitava meu pai, não somente porque se deve respeitar um pai, mas porque ele tinha uma mão pesada (risos), principalmente naquela mão direita que tinha o dedo indicador a faltar um pedaço, perdido em uma máquina quando ainda era jovem aprendiz. Pobrezinho.

Ele não falava muito sobre isso e eu nunca toquei também no assunto. Tinha a impressão que ele tinha nascido daquele jeito, quando minha mãe e tios me contaram do fato. De minha parte, nunca me dirigi à esta amputação até o ano de 2002.

Eram tempos de eleições. De um lado José Serra, o candidato para substituir Fernando Henrique Cardoso mantendo a mesma linha governante. Do outro, Luís Inácio Lula da Silva, “Lulinha Paz e Amor”, naquela chance que tínhamos dele finalmente ser eleito e mudar o país em favor dos pobres, apesar da Globo[2], apesar da Regina Duarte[3].

Certo dia:

“Pai, tudo bem? ”, começo de ligação Belém – Dias D´Ávila, Bahia.

“Tudo, filho”.

Seu Waldir de meio de semana era sério. Sisudo. Depois de indagar como ele estava, tentei a novidade de puxar conversa de algo sei lá, amplo, político.

“Pai, em quem o senhor vai votar pra presidente? ”.

“No Serra”.

“Por que? ”

“Porque o Serra é melhor, mais preparado”.

“Mas pai, o senhor devia votar no Lula”.

“Que Lula que nada! ”.

Pronto. O tom de voz era familiar. No subtom dizia “Eu sei o que tô falando e tu não sabe! ”.

Pronto. Aí baixou o rapazote encrenqueiro que resolve responder ao pai. Há anos eu tinha superado a fase rebelde (não sei, será?). No calor do quase-debate, disse a frase mais cruel da minha vida a alguém, logo para uma pessoa tão amada.

“Pai, respeita o seu dedo torado!!”

“Quê??? Seu Muleque!”.

Bateu o telefone na minha cara. Toda razão. Não julgo. Uma coisa é certa, se eu tivesse falado na sua frente, aquela mão pesada iria me acertar entre o pescoço e a nuca. Aquela do dedo torado.

Semanas se passaram. Não falava comigo.

De repente, trocando falas com minhas irmãs, contaram-me que estranhamente meu pai começou a deixar a barba crescer naqueles tempos, coisa que não fazia. Um dia me ligou. Tratava-se do outro Waldir, o alegre.

“E aí filho? ”.

“Tudo bem pai? ”.

“Eu tô aqui pra dizer que nós vamos ganhar! ”.

“Quem pai? ”

“Ué? Nós! Vai dar Lula na cabeça!!”.

“Ahhhhh, tá, tá bom, pai...”.

Não consegui entender a mudança. Porém, fiquei matutando, matutando, acho que meu pai olhou pro dedo do Lula. Pode ter pensado: “Esse cara foi um lascado que nem eu fui. Perdeu o dedo no trabalho de fábrica que nem eu perdi, pode ser que ele queira realmente mudar as coisas pro trabalhador. Eu quero”.

Lula venceu e o resto da história nós sabemos. Dos erros de Lula, dos acertos de Lula. Da esperança que foi Lula, do medo que Lula venceu. Da cortina afastada pra mostrar que cada um de nós, mesmo de origem pobre, pode ser presidente de uma nação se antes de tudo houver comprometimento com a melhoria das condições de vida do povo.

Esse episódio amenizou em mim a imagem que meu pai era um operário que não questionava seus patrões. Enquanto isso eu seguia com meus amigos na bandeira de luta pelos que vivem sem justiça social, no sofrimento diante de tanta violência institucional nas bandas do Marajó da floresta.

Meu pai partiu deste plano terrestre em maio de 2016, de complicações advindas do alcoolismo. Uma luta sofrida entre o Waldir sisudo e o Waldir alegre. Ao encontrar no final do ano passado meu tio Walter, irmão de meu pai que ainda mora em Portel, conversamos muito sobre quem foi o Waldir. Meu tio no seu descrever esbravejou, o criticou, contou que muitas vezes não se davam bem, mas também riu à beça das memórias, o admirava. Certa hora, quando contei que eu tinha me tornado uma pessoa muito diferente dele, meu tio corrigiu-me.

“Carlinhos, tu não sabe? Ele nunca te contou quem ele queria ser? Ele me disse”.

“Não tio, não sei, quem ele queria ser? ”.

“Fidel Castro”.

Quando cheguei na praia do Arucará, em Portel, agora sozinho, me toquei dos livros que ele sempre me presenteava, mais do que brinquedos. Contemplei minha mão, encolhi parte do meu dedo indicador, sorri e perguntei:

“Ué? ”.









Belém, num dia “discunforme” chuvoso, 10 de abril de 2018.





[1] Engenheiro Florestal, consultor socioambiental.
[3] Veja a Regina Duarte com medo do Lula - https://www.youtube.com/watch?v=DEeNSkXn5mY

 

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