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quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Crônicas do Corte: A Volta do “Overnight”, Só que Vestido de Verde



Carlos Augusto Ramos[1]

Belém, 14 de novembro de 2018.


Eu me lembro. TV Globo. Criança curiosa. Quando o Brasil se batia com uma inflação galopante, tempo eu que comprava um pão massa-fina (recordam?) naquela tardinha do Jari para o lanche de meus irmãos. Logo na semana posterior, o mesmo tipo de pão era elevado o seu preço em 20% ou mais, uma doidice econômica que tínhamos e que forçava famílias como a minha a sempre procurar o agiota da cidade. Enquanto isso, as pessoas mais ricas tinham acesso a aplicações financeiras que protegiam suas economias da desvalorização diária e desenfreada, remarcação gulosa das "maquinhinhas" de supermercados para orgulho de Abílio Diniz. Os ricaços apostavam no Overnight, emprestando para os bancos e recebendo no outro dia[2]. O Overnight, por exemplo, chegou a render no seu auge 1% ao dia, naquele período entre 1980 e início de anos 1990[3].

O que me fez relembrar o Overnight? Os tempos sombrios de ameaça da especulação e ganância selvagens promovidas pela elite do atraso brasileiro. Novamente desejam endinheirar-se em grande magnitude às custas da já lascada população das classes média (sim, essa classe apesar de não admitir, é de precariados), pobre e miserável. Economistas de justos e engajados certamente lutarão e denunciarão os abusos para o bem das gerações[4]. Graças aos céus, “subversivos” existem todas áreas da sociedade.

No que se refere ao meu trabalho, de colaborar com o manejo de produtos florestais e na gestão de territórios de comunidades e povos tradicionais na Amazônia, três formas novas de especulação (além da já conhecida e combatida especulação fundiária) encontram-se em curso e devem ser considerados como métodos de retiradas de direitos em nome dos neo-gafanhotos[5].

A primeira onda especulativa sobre a Amazônia adveio de um velho conhecido meu de batalha, xará de letras iniciais, o CAR (Cadastro Ambiental Rural e Carlos Augusto Ramos), ferramenta ambiental importante, mas que foi milhares de vezes utilizado para grilar terras, especular[6]. De intimidação, tentativas de expulsão, à expulsão de famílias de suas posses; de recebimento de financiamentos indevidos sem prova de terra documentada, sem o respeito ao Estatuto da Terra, assim tem sido a marca do CAR. Fico contente com a movimentação da sociedade em alertar sobre a má gestão do CAR no país, resumida em denúncia coletiva escrita sob o título Invisibilização dos Povos e Comunidades Tradicionais No Car[7]. Lógico que existem resultados positivos, porém, a balança penda para o não uso do CAR enquanto instrumento de inclusão socioambiental.

A segunda onda especulativa sobre nossas florestas não vem da grilagem de terras, mas da Grilagem do Ar: a comercialização de créditos de carbono atualmente livre, leve e solta, ao sabor dos mercados. Eliane Superti e Catherine Aubertin informam que desde 2007 tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado Federal projetos de lei sobre pagamentos por serviços ambientais e para um futuro sistema nacional de projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal – REDD +[8]. Segundo estes estudiosos, na época da publicação de seu artigo em 2015, tais projetos enfrentavam resistências no Congresso quanto ao uso dos mecanismos de mercado e “certa hostilidade do Itamaraty na relativização do uso e do controle sobre o território nacional”.

Pois é. O Mercado não respeita ninguém se não for devidamente encarado. Tenho observado alguns casos de aproximação de instituições oferecendo contratos comerciais envolvendo a captação de carbono em comunidades florestais com pouco acompanhamento das instituições governamentais. Outro dia, lideranças comunitárias me ligaram do interior de Portel indagando-me o que é a venda de carbono, pois uma empresa os havia procurado. Em Breves, uma situação ocorre há tempos sem nenhuma norma a disciplinar a atividade. Uma empresa do setor madeireiro utilizou desta estratégia para faturar milhões sem que as organizações locais pudessem debater se algo deveria ficar para o desenvolvimento da região[9].

Sem o Conhecimento Livre, Prévio e Informado sobre os mecanismos de REDD+, um direito das comunidades e povos tribais previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, estamos às cegas sobre a venda de créditos de carbono. Muitas localidades não elaboraram seu Protocolo de Consulta Prévia das comunidades, documento de defesa destas famílias reconhecida pelo Direito Internacional para estas negociações; e com um Governo Federal atual claramente antagônico aos Povos Indígenas, Comunidades Quilombolas e Comunidades Agroextrativistas, está aberta a temporada de 4 anos de grilagem do ar. Especuladores se movimentam. Interessante é o Presidente Brasileiro anunciar que “vai sair do Acordo de Paris”, mas o mercado rentista não se importa com a posição brasileira. Ele vai colocar a mata no jogo, juntamente com seus moradores. O quanto estaremos empoderados para evitar sermos enredados por esse mercado que agora alça voo?

  A terceira onda de especulação que devemos nos preparar é aquela ligada aos efeitos da não ratificação do Estado Brasileiro ao Protocolo de Nagoya. Tal protocolo é, de acordo com o advogado João Emmanuel Cordeiro Lima, “um acordo multilateral acessório à Convenção sobre Diversidade Biológica que tem por objetivo viabilizar a realização de um de seus objetivos centrais: a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais a eles associados[10].

O Congresso Brasileiro, fortemente influenciado neste caso pela Bancada Ruralista, ao não ratificar o Protocolo de Nagoya, coloca o país na posição de não poder opinar sobre suas diretrizes futuras. Isso significa que comunidades detentoras de conhecimento tradicionais como os Povos Indígenas e Quilombolas, partes diretamente interessadas, não tem no Governo Brasileiro um defensor, uma vez que não estará na mesa de decisões. Na prática, não saberemos para onde caminharão as propostas de remuneração dos povos da floresta por empresas que usufruírem de seus produtos e conhecimentos. Não opinaremos sobre as ferramentas que poderão coibir a Biopirataria. Mais uma prova de boicote governamental aos amazônidas. Forte agonia haverá nas pessoas lúcidas que poderiam estar neste espaço e impedir diretamente os estratagemas de grandes corporações em especular sobre nosso patrimônio genético e conhecimento tradicional.

A grilagem genética.

A grilagem do conhecimento.

A grilagem do ar.

A grilagem ambiental.

Grileiros.

Especuladores.

Ricaços acima da Linha da Cobiça.

Overnight Vestido de Verde.





[1] Engenheiro Florestal, Consultor Socioambiental.
[2] Pesquei essa descrição do Blogueiro Social - http://blogueirosocial.blogspot.com/2015/03/oque-e-o-overnight.html . O autor explica que “no final das contas, essas pessoas acabavam se beneficiando da inflação. Para evitar que os bancos perdessem dinheiro todo dia, o governo colocava dinheiro na roda”. E uma parte desse dinheiro ia para o bolso das pessoas que participavam do Overnight, pura especulação financeira. Lá no Sertão do Nordeste, enquanto isso, pessoas morriam de fome por falta de apoio governamental.
[4] Uma prova é de engajamento neste sentido é a Organização Não Governamental Auditoria Cidadã da Dívida, que denuncia e educa as pessoas sobre a farra do mercado rentista, que só em 2017, “devorou” 39,7% do Orçamento Geral da União – ver em https://auditoriacidada.org.br/ .
[5] Refiro-me gafanhoto ao homem que destrói tudo à sua frente em nome da riqueza financeira. Seu instinto é de terra arrasada.










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