Páginas

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Crônicas do Corte: o legítimo ocupante de áreas rurais segundo o Estado do Pará, a balbúrdia que me deixa grilado...




Carlos Augusto Ramos[1]

“Esta terra é desmedida
e devia ser comum,
Devia ser repartida
um toco pra cada um,
mode morar sossegado.
Eu já tenho imaginado
Que a baixa, o sertão e a serra,
Devia sê coisa nossa;
Quem não trabalha na roça,
Que diabo é que quer com a terra?”
A Terra dos Posseiros de Deus – Patativa do Assaré

Hábito que tenho ao ler normas e leis é focar nas regras, nos parágrafos, nos imperativos, proibições, autorizações, deveres e direitos, no limite de minhas capacidades por não ser da área do Direito. Normal, pois é o que interessa na maioria das pessoas, na objetividade de ver quem ganha e quem perde nos marcos legais que se estabelecem. Nesse sentido, entendo que é um marco a nova lei de terras do Estado do Pará, lei n° 8.878, de 8 de julho de 2019, que dispõe sobre a regularização fundiária de ocupações rurais e não rurais em terras públicas do Estado Pará e que revoga a lei n°7.289, de 24 de julho de 2009; e o Decreto-Lei n°57, de 22 de agosto de 1969.

Para fugir do trivial e diante do nosso quadro político desde 2016, passei a prestar mais atenção nos conceitos das leis. Observo que ganham espaço nos últimos anos entrelinhas, tons, subtons e eufemismos que delicadamente entretecem perversidades no Estado de Direito, minando-o e legitimando violações na Constituição, ferindo-a, num passo posterior de violência física, muitas vezes sem o agredido saber de onde veio a justificativa da retirada de seus antes entendidos direitos. Assim é o congelamento dos gastos públicos por 20 anos (agora 19 anos, ufa!) pelo Governo Federal[2]; assim é o subjetivo termo “sob forte emoção” para um policial atirar em alguém, de acordo com a proposta de pacote anti-crime do Ministro da Justiça (?); assim é a prisão de uma pessoa por “atos indeterminados”. A cobra aprendeu a não ser objetiva: subjetivamente ela se arrasta em direção às suas presas.

E seguindo essa reflexão de definições e conceitos, reparei no artigo n° 5, da Lei 8.878, no seu entendimento sobre legítimo ocupante de áreas rurais:

“... pessoa física ou jurídica com ocupação consolidada (em exercício de atividade agrária) ou que pretendam exercer atividade agrária em terras do Estado...”.

Interessante é jogo de significados das palavras legítimo (fundado, amparado na lei, legal; ditado, justificado pelo bom senso, pela razão, justo, razoável), ocupante (que ocupa neste caso a área pública) e pretendam (que não está na área pública, porém intenciona estar ou possuir). Instigador é pensar nisso a partir do monitoramento que as entidades do movimento social do Marajó (principalmente FETAGRI[3] e CPT[4]) fazem do Cadastro Ambiental Rural – CAR, um registro eletrônico ambiental que não dá direito à posse, contudo, tem gerado muita balbúrdia (situação confusa; trapalhada, complicação). Para Moreira (2017), na natureza jurídica do CAR, a lei prevê claramente que “o cadastramento não será considerado título para fins de reconhecimento do direito de propriedade ou posse...”[5]. Porém, denúncias do Grupo Carta de Belém (2018)[6] apontam para o uso do CAR de má fé como um instrumento de grilagem e promoção de conflitos:

“Os erros de inscrição e validação no sistema de cadastramento não foram corrigidos, agravando-se conflitos fundiários devido à confusão realizada pelo CAR entre a análise ambiental e de posse e propriedade de terra... a situação é ainda mais grave para os casos em que os povos e comunidades tradicionais não tem oportunidade de inscrever-se no CAR e de manter a sua inscrição válida no sistema”.

Na própria página da internet, o Serviço Florestal Brasileiro admite que existem na Região Norte do Brasil, 97 milhões de hectares de áreas cadastráveis para o CAR, porém, com 145 milhões de hectares cadastrados[7]. No Marajó, por exemplo, o monitoramento até 2018 apontava para 61,3% da mesorregião marajoara cadastrada no sistema CAR, maior que a área destinada, hoje em 41,9% (Ramos, 2018[8]), com casos conflituosos envolvendo este registro eletrônico. Já estou acostumado com a frase “CAR não legitima posse”, mas na dura realidade da desinformação e truculência nos interiores do Pará, garimpa-se legitimidade não por meio de bom senso ou justiça. É a mentira, “mentirando, mentirando”, como diz um sábio que conheci, numa situação que não é, dizendo-se que não é, mas nos fatos, gente e empresas pretendentes da terra pública cadastrando, cadastrando, expulsando até[9]. Algo que instrumentalmente me recorda a Pós-Verdade[10].
São pontos como os anteriormente referidos que me deixam grilado. Um incômodo... aquela palavrinha, pretendam... No conceito, no entendimento pelo Governo Estadual. A brecha que periga romper a barragem das más intenções de especular sobre a terra (o fundiário), a água (os aquíferos de água doce, maiores do mundo na Amazônia) e o ar (créditos de carbono nas bolsas de valores sem o conhecimento das comunidades). Tudo executado na surdina por aprovar na Assembleia Legislativa Paraense em primeiro e segundo turno de um único dia tal lei, mesmo com todas as ponderações dos perigos de agravar os conflitos no campo e aumentar ainda mais os índices de desmatamento.

Um grilo me sonda a mente.

Um gafanhoto voa para a mata.

Baratas Kafkianas da Pós-Verdade.





[1] Engenheiro Florestal, consultor socioambiental, ganhador da Medalha Qualidade de Vida Ambiental no Pará, outorgado pela Assembleia Legislativa do Estado do Pará em 2017, a mesma ALEPA que aprovou a Lei de Terras do Pará em 2019 sem escutar os clamores da sociedade sobre seus riscos ambientais e de geração de violência. Menciono pela ironia que passou a ser este prêmio para mim.
[2] Ler a Emenda Institucional 95 de 2016.
[3] Federação dos Trabalhadores Agricultores e Agricultoras no Estado do Pará.
[4] Comissão Pastoral da Terra, regional Marajó.
[5] MOREIRA, Eliane. 2016. “Cadastro Ambiental Rural: a nova face da grilagem na Amazônia?” Sítio da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente. Belo Horizonte, 7 jul. Disponível em: http://www.abrampa.org.br/site/?ct=noticia&id=230 . Acesso em: 10 de julho de 2019.
[6] Grupo Carta de Belém. 2018. Denúncia: Invisibilização dos Povos e Comunidades Tradicionais no CAR. Disponível em https://www.cartadebelem.org.br/site/denuncia-invisibilizacao-dos-povos-e-comunidades-tradicionais-no-car/ . Acessado em 10 de julho de 2019.
[10] Pós-verdade é um neologismo que descreve a situação na qual, na hora de criar e modelar a opinião pública, os fatos objetivos têm menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais.




Nenhum comentário:

Postar um comentário