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quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Morcegos, comunidades e esquecimento - Carta de 2004


A seguir transcrevo a carta que considero minha primeira epístola de fato como um incomodado além da minha engenharia.

Como me fizeram acreditar que os sonhos se realizam, essas pessoas do rio Acuti-pereira.




“Morcegos, comunidades e esquecimento

Belém, 12 de Julho de 2004.


Caríssimos:

Estive recentemente no município de Portel, mais propriamente nas comunidades do rio Acoti-pereira a convite de um líder comunitário. O intuito da visita era passar informações à associação anfitriã (localizada na comunidade Santo Ezequiel) sobre o valor da ação coletiva e do manejo florestal para a conservação dos recursos naturais da região do Estuário Amazônico.

Nas discussões que se seguiram com alguns membros da diretoria, resolvemos adentrar no rio, visitando localidades como Nossa Senhora de Aparecida, São Benedito e São Bento. Nesses logradouros, aconteceram os ataques de morcegos hematófagos aos habitantes locais, cujo problema foi divulgado nacionalmente pela incidência da raiva humana ou hidrofobia – se não me falha a memória – nos meses de Março e Abril do corrente ano.

A enfermidade foi detectada em 15 pessoas, fato que acarretou uma verdadeira operação de guerra para evitar novos casos da doença. Dessa forma, agrônomos, veterinários, secretários de saúde de outras cidades, enfermeiros e médicos passaram vários dias vacinando moradores, estudando e prendendo animais, coletando sangue, enfim, atuando como uma tropa de choque, sempre chamadas em ocasiões extremas como esta que vos digo. Vice-governadora do estado do Pará e poder público municipal apareceram, executaram, prometeram.

Passou-se o ápice da tragédia. Os habitantes da região foram imunizados (com “validação” da vacina de 06 meses a 01 ano, dependendo de cada indivíduo), 15 mortes foram registradas (uma vez que os sintomas aparecem, a mortalidade é altíssima) e decorreram-se 120 dias sem grandes mudanças. Em conversa com pessoas atingidas pelo problema, cujas famílias foram esfaceladas pela fatalidade, foram apontadas promessas não cumpridas e feitas durante discursos naquele momento de agonia pelas autoridades:
  • A instalação de 01 posto de saúde na região do rio Acoti-pereira;
  • Recursos para a construção de casas populares e outras obras sociais; uns falam em R$38.000,00, outros em R$100.000,00. Independente do valor divulgado, o importante é mencionar que a obtenção de moradias bem forradas é imprescindível para evitar novos ataques;
  • Uma estrada ligando a sede municipal de Portel à região.

Senhoras e senhores, além desses compromissos não honrados até agora, que por si só levantam dúvidas sobre a seriedade da condução do processo, constatei ainda algumas situações que deixariam qualquer um preocupado com o futuro daqueles lugarejos.

Não existe trabalho de agentes de saúde de maneira estratégica e contínua, monitorando os residentes para possíveis surtos de raiva humana que possam surgir novamente. Como argumento, ressalto a informação dada a mim que 04 trabalhadores rurais tinham sido mordidos por morcegos recentemente.

A higiene e a saúde das crianças são sofríveis. Do ocorrido dever-se-ia aproveitar a ocasião para debater e agir para melhorar a qualidade de vida infanto-juvenil, com acompanhamento e sensibilização para o uso de hipoclorito na água dos rios para consumo, construção de sanitários mais apropriados (muitas casas não tem) e tratamento dos males dermatológicos que são verificados. Uma pena! Vi meninos e meninas de feições bonitas, porém, precisando de cuidados corporais essenciais.

Outro ponto negativo é o não retorno dos estudos realizados com o sangue coletado das famílias para análise e com os animais transmissores da enfermidade à população do Acoti-pereira. Peço sinceramente que os resultados (mesmo que preliminares) sejam socializados com o público interessado, pois é seu direito ser sabedor do que está acontecendo. Se os comunitários não possuem a base científica para entenderem, que os intelectuais revolucionem a si mesmos para serem os mais didáticos que consigam. Para se ter uma idéia, escutei de 03 moradores a noção (errônea, é verdade) de que a vacina é que está matando, não a hidrofobia. Esclarecer é necessário. Ensinar é fundamental. Perdoem-me a franqueza, mas não podemos admitir que teses ou dissertações sejam feitas para elevarem o nível de vida de uns poucos. É antiético.

Aos políticos do município: pensem antes nos portelenses do que em partidos, eleições ou manobras eleitoreiras. Trata-se de uma questão humanitária e não meramente de conjuntura política. Alerto a vocês que cada vez menos daqueles eleitores “cinco reais” (aquele que vale uma camiseta de campanha) estão a permanecer. Construir e não iludir, eis o caminho.

Às associações comunitárias de Portel digo que procurem não depender tanto de outros mais endinheirados. Façam parcerias com aqueles que desejam um bem mais duradouro para convosco. Torneios, camisas de time, quartos de boi e outros brindes são apenas elementos de momento: seus filhos são aqueles que irão ficar. Pensem nisso. Desculpem qualquer coisa.

Carlos Augusto Ramos.”



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