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sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Fábula Amarga


De Santiago a São Paulo, 25 de novembro de 2019.



Era uma vez uma paca que se chamava Dema. Ela vivia solitária de outros de sua espécie desde muito filhote ainda por conta do espanto de uma onça que assim fez seus irmãos e mãe fugirem cada qual para um lado. Desapartada, Dema foi adotada por um grupo de cutias que a viam como grande e destemida e não se importavam aparentemente do fato de Dema ser de outra espécie. Além do mais, Dema em algumas ocasiões mostrou ser muito útil na cabeçada dada no gavião que um dia quase levantou vôo com um filhotinho de cutia.

Todos confiavam em Dema e esta nutria a mesma reciprocidade para com o bando de cutias.

Certa vez, num caminho no meio da floresta, o grupo de cutias roía seus coquinhos do mato quando uma surucucu enorme lhes deu bote. Seria certeira a dentada venenosa se Dema não tivesse surgido no momento para enfrentar a cobrona. Quer dizer, nem tanto, pois Dema percebeu que não era páreo e se meteu num buraco de tatu vazio, com a surucucu atrás. Lá dentro travou-se a briga.

As demais cutias ficaram apreensivas e já contavam sobre o destino final de Dema quando esta aparece do buraco toda mordida. Era morte certa. Mas não. No máximo baldeou um líquido verde-escuro, saído de suas entranhas, na boca, o gosto de fel. 

O fel da paca.

A surucucu saiu do confronto também mordida e arranhada e ficou pasma com a resistência de Dema. Foi-se embora, porém, com o olhar da pura vingança por vir. Pela raiva que tinha dentro de si, a surucucu passou a seguir o bando de cutias e Dema e não descansaria até que se alimentasse de todas elas. 

Não sendo poucas vezes que atacou as cutias , a surucucu foi impedida de seu banquete aguti sempre pela paca Dema e seu corpo imune à peçonha do ofidio.

A surucucu resolveu pensar. 

Tramar. 

Se preparar. 

Dema avisava para o necessário estado de alerta. As cutias, entretanto achavam que Dema exagerava e que esta nunca seria derrotada pela cobra.

No outro lado, ardilosa, a surucucu mudou de estratégia e começou se aproximar do bando de cutias, não para mordê-las, porém, para sibilar notícias e temas divisionistas entre as cutias. A ideia era envenenar a alma. Disse para uma:

- Onde está tua castanha escondida aqui ontem? Não será aquela nas patinhas daquela cutia a te roubar o alimento?


Para outros:

- Já agradeceste à GRANDE AGUTI pelos coquinhos que ganhas? Ah, não ganhas, peça para GRANDE AGUTI te dar, não, mais, desafia GRANDE AGUTI!


E para outros:

- Reparem em Dema, ela não é como vocês. Ela é diferente, mais forte até. Já pensou se Dema encontra outras de sua espécie e neste crescimento em indivíduos dentro do grupo das cutias passam a dominar vocês? A família Cutia está ameaçada!


E de sibilar a sibilar foi minando a resistência mental das cutias que passaram a hostilizar Dema por ser diferente. Esgueirava a surucucu destilando seu veneno moral mesmo enquanto as cutias homenageava GRANDE AGUTI. 

Um dia, uma espantosa notícia: a surucucu tinha se convertido em cutia. Elas festejaram, vibraram doando alimentos a este novo líder do ato de celebrar GRANDE AGUTI. 

As cutias agora, só pensavam em si mesmas e neste individualismo por castanhas e coquinhos. Como consequência, nem mais reparavam que algumas começaram a ter fome.

Alertando sobre o mal estado das coisas, Dema resolveu repartir seu alimento com as demais. Quando começou a distribuir castanhas entre os roedores, a surucucu-cutia começou a gritar:

- BLASFÊMIA DESTA QUE DESEJA DESTRUIR A LEI DE CONSEGUIR CASTANHAS PELO ESFORÇO!

- Você não é uma das nossas!!! - responderam muitas cutias gordas à Paca Dema. 

- Como assim?? Sempre fomos irmãs mesmo não sendo iguais em aparência.

- Vai embora! Vai pro buraco!


E neste ameaçar, duas cutias morderam Dema. Depois outra, depois outra. Estavam insanas. Morderam. Morderam.

Com a boca cheia de sangue, a pobre paquinha ficou estirada ali mesmo. Uma sensação horrível de abandono tomou conta de seu ser. De toda amizade e gratidão, evaporou-se tudo numa imensa incompreensão. Com um resto de forças, foi embora para nunca mais ver as cutias que já não mais conhecia.

Quando sentiu que Dema partira, a surucucu convidou a todos para uma celebração à GRANDE AGUTI. As cutias festejaram pelo fato de só haver cutias de agora em diante.

A surucucu enrolou-se de contente de seu plano e deu o bote.

Muitas picadas. Muito veneno. Muita correria. Até tentativas de se esconder nos buracos. Lá permaneciam tremendo, escondidas, reclusas, refeição garantida da surucucu.

Enquanto a morte fazia efeito nas que foram picadas, um gosto final permanecia na boca das cutias.

O gosto do arrependimento.


Pantoja Ramos.

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