Belém,
21 de abril de 2021.
Carlos Augusto Pantoja Ramos.
Caríssimas e Caríssimos,
Escutei assim quando criança:
- O acapu é madeira de dar em doido!
- Que horrível – pensava.
E desdobrava:
- Quantos adultos são doidos? Tem muito acapu
por aí?
E desculpem-me pelo início de texto ironicamente
violento, nem é do meu feitio escrever essas sandices, ainda mais num momento
em que a maldade se espalhou de tal maneira pelo mundo que ganhou ares de
institucionalidade, nestes estratagemas do neofascismo.
Eis que cá estou a ler notícias florestais, na
tensão entre o ignóbil Salles e o, até semana passada, superintendente da
Polícia Federal do Estado do Amazonas, senhor Alexandre Saraiva, que coordenou
uma das maiores, senão a maior, apreensão de madeira da História Amazônica. E
no escorrer das notícias tão velozes ao passar de dedo na tela do celular,
quieto-me em descobrir a notícia da morte de um adolescente de 14 anos no rio
Tajapuru, Melgaço, Marajó, acidentado por uma serra elétrica enquanto
trabalhava em sua casa processando uma tora de madeira para quando a família
vendesse as peças, amenizasse as dificuldades financeiras daquele lar. Uma tragédia
que não há como medir nem descrever.
Notícias que estão longe uma das outras à
primeira vista. Contudo, como eu sigo nesta minha estranha maldição de
relacionar as coisas apatetando nas ramas das árvores, estalou na cabeça que em
se tratando de uso dos recursos das florestas e dos rios, precisaria resgatar o
que analisava o filósofo e sociólogo alemão Theodor Adorno, famoso por sua “Teoria
Crítica da Sociedade”. Sapateia na minha cabeça que os eventos não são na
maioria das vezes simples de explicar e avaliar. Para Adorno, “a distância
entre a palavra falada e a palavra escrita é ainda maior do que usualmente”. Nada
do que se pode dizer pode fazer jus ao que é preciso exigir de um texto. E quanto
ocorrem polarizações, mais difícil obedecer ao princípio de que "Deus
reside no detalhe".
E é preciso que este Deus Consciente entreolhe
as frestas da casa e escreva o que ocorre numa determinada festa para saber
quem está lá dentro, quem dança, quem fica de fora em ar deprimido, aquele que
embebeda alguém para tirar proveito, aquele que galhofa. Verificar assim provas
precisas, conferências que geram o impresso, no suporte que este serve à
memória para repasse posterior aos que estiveram presentes naquela festa. A
palavra efêmera dita no festejo tem a marca da transitoriedade, porém, o registro
gravado é como a impressão digital do espírito vivo. E mesmo quando noticiado,
é preciso entender quais são as regras do jogo, inclusive da intenção de
simplificar e deixar raso o que é de fato complexo, caso contrário, o tema
conservação e preservação da Amazônia não exigiria tantas preocupações, tantos
estudos produzidos e tantos planejamentos de tomadores de decisão para evitar a
perda de florestas. São questões respondidas por cientistas e aceitas como
políticas públicas que nos fazem avançar pouco a pouco em um estágio mais
evoluído que nos permita nos afastar do tratamento dado à natureza do puro
mercantilismo, desde o pau-brasil.
E correndo no tempo, testemunha o acapu.
Testemunha Vouacapoua americana Aubl.
que o Brasil não largou de ser extrativista em seu pior dos significados assim
cunhado por Alberto Acosta como A Maldição dos Recursos Naturais.
Milhares de tarugos
de acapu saem todos os meses dos matos de Portel, Melgaço, Bagre seja para a
construção civil da capital paraense, seja para os mourões das fazendas da
região. É uma espécie florestal na lista
de espécies ameaçadas de extinção,
sendo permitido pela legislação somente o manejo de produtos como sementes,
folhas e frutos, desde que as técnicas adotadas não coloquem em risco a
sobrevivência dos indivíduos. Se oficialmente é ilegal a extração de madeira do
acapuzeiro, como existem inúmeras ofertas de tarugos na internet?
É nessa doidice emblematizada pelo acapu onde
passam-se os anos, décadas e que me fazem crítico do manejo florestal
madeireiro como parte de uma verdadeira política pública florestal. Entendo que
a Lei 11.284 de Gestão de Florestas Públicas trouxe um caminho sensato, onde a
madeira de floresta pública é tratada como um bem de todos, inclusive com
arrecadação para União, Estados e Municípios. A soma de áreas de concessões
florestais no Pará, é, no entanto, bem menor quando comparada às demais áreas que
fornecem madeira, seja de empresas, seja de comunidades. Apesar de se tratar de
uma escala menor e de uma intensidade de exploração menor, é mister que cada
vez mais comunidades tenham seus planos de manejo para madeira discutidos,
regularizados e realmente protagonizado pelas famílias. Bons exemplos existem e
são objetos de dissertações e teses sobre manejo florestal. Para evoluir é
necessária a efetivação de uma política de manejo florestal comunitário e
familiar no Pará. O que não evolui o manejo de florestas para fins madeireiros
é: a) o uso de associações comunitárias como “laranjas” para que empresas
madeireiras possam explorar sem expor seus CNPJ’s; e b) a teimosia de se
aprovarem áreas para exploração de madeira sem a adoção do chamado ciclo de
corte, base do manejo florestal para que a mesma floresta tenha tempo de recuperar-se;
c) a fragilização das instituições públicas que combatem o desmatamento e as
atividades madeireiras predatórias.
A região de limite entre os estados do Pará e
Amazonas é certamente um dos locais de maior foco de extração ilegal de madeira
na Amazônia. E no caso que vivenciei quando atuava no IDEFLOR, hoje IDEFLORBio,
em 2010, de suspeita de misturas de madeira legal com madeira ilegal nas balsas
da chamada Gleba Nova Olinda, vi que política florestal é antes de tudo uma
questão de atitude pública em prol da floresta. Naquela época, a sociedade da
região do Tapajós cobrou que não houvessem mais dúvidas sobre os processos
envolvendo o licenciamento de atividades madeireiras como cumpridoras dos
preceitos do que é manejo florestal. Nós aprendemos com isso?
Ao assistir a defesa de tese de Alexandre
Saraiva, vi que este concluíra que o principal vetor do desmatamento da Amazônia
seria a extração ilegal de madeira promovida por organizações criminosas. Segundo
Saraiva, a agricultura e a pecuária que já tiveram participação relevante no
desmatamento nos anos 1980, hoje não influenciariam na mesma intensidade como
antes. Trata-se de uma conclusão que talvez nos ajude a medir o momento em que
vivemos na Amazônia, porém, peca, em minha opinião, ao não dar o peso destacado
ao agronegócio ainda como grande vetor histórico de desmatamento.
Segundo o anuário da Comissão Pastoral da
Terra (2020), as Terras Indígenas, por exemplo, seguem sendo alvo de cobiça e
violência. Afinal, as Terras Indígenas na Amazônia "fazem limite com
grandes lavouras de soja e pastos para criação de boi” e têm sido pressionadas
– e invadidas – “para o cumprimento do ciclo: desmatamento da floresta para
comércio ilegal de madeira, colocação de meia dúzia de cabeças de boi para
garantir a posse da terra, venda da terra para plantação de soja...". Em
outro estudo, advindo do relatório da FAO, O Estado das Florestas do Mundo
2016 (SOFO, na sigla em inglês), aponta-se que o agronegócio “gerou quase
70% do desmatamento na América Latina entre 2000 e 2010... Especialmente na
Amazônia, a produção do agronegócio para os mercados internacionais foi o
principal fator de desmatamento após 1990, resultado de práticas como o
pastoreio extensivo, o cultivo de soja e as plantações de palma azeiteira
(dendê)... Segundo a pesquisa, entre 1990 e 2005, 71% do desmatamento na
Argentina, Colômbia, Bolívia, Brasil, Paraguai, Peru e Venezuela foi devido a
demanda de pastos; 14% os cultivos comerciais, e menos de 2% infraestrutura e
expansão urbana...".
Finalmente,
nesta tentativa de não perder a cadeia que envolve extratores ilegais de
madeira e agronegócio, o relatório da organização ambiental sem fins lucrativos
Forest Trends quantificou quanto do desmatamento ilegal do planeta
ocorre para abrir caminho para o óleo de palma, abrigos para gado, cultivo de
soja e outras commodities agrícolas. A equipe de pesquisa da Forest
Trend concluiu que entre 63% e 75% do desmatamento global entre 2000 e 2012
ocorreu para abrir caminho para a agricultura comercial. Dessa porcentagem, de acordo
com os autores, de 36% a 65% vinham de licenças fraudulentas, técnicas
destrutivas de ocupação do espaço ou outras atividades proibidas formalmente,
mas frequentemente ignoradas por governos locais. A referida organização estima
que o valor do comércio internacional desses produtos seja de US$61 bilhões
anuais.
Ou seja, a relação entre perda de florestas e commodities agrícolas ainda é
marcante no mundo.
Não podemos perder de vista esta “cadeia de
valor” e a participação das partes interessadas na fragilização da floresta e
destruição de ecossistemas. O motivo pelo qual não podemos aceitar apenas um
maior culpado? Porque é algo complexo, porque é um nó cego, em uma estrutura
organizacional que tem vencido o Estado Brasileiro na proteção dos recursos
naturais. Que desafia inclusive a forma como a ciência florestal amazônica tem
dialogado com as instituições governamentais e com outras ciências na aprovação
de planos de manejo florestais coerentes entre discurso e prática.
Enquanto não adotamos uma mudança de era no
olhar sobre as florestas e rios, o acapu que dá título a esta carta segue sendo
explorado sem uma planificação que garanta sua permanência nas matas de
terra-firme do Marajó, Xingu e Baixo Amazonas.
Enquanto não percebemos a floresta como
proteção das pessoas, jovens continuarão se expondo a acidentes fatais por não
existirem campanhas educativas às famílias sobre os riscos inerentes à
atividade madeireira.
Enquanto não admitirmos a floresta como
fornecedora de bens e serviços, não serão construídos e disseminados arranjos
produtivos que garantam diversidade de uso florestal, com efeitos diretos na
renda e bem-estar; e por consequência desta negligência, mais pessoas
recorrerão à madeira ilegal, à caça ilegal, ao desmatamento, cujas práticas são
impulsionadas pela emergência da fome.
Enquanto não ligarmos os pontos, movimentar-se-ão
pelos rios e estradas toras de madeira para o enfraquecimento da floresta, etapa
prévia dos tratores, correntões e do fogo que a tudo derrubarão e matarão em
nome da cobiça.
Enquanto isso, nos preparativos para a Cúpula
do Clima 2021 que ocorrerá amanhã (22 de abril, ironicamente dia da “descoberta
do Brasil”), o mundo se volta para o Brasil e sobretudo para a Amazônia. Qual
comunicação se dará a partir das decisões tomadas? Haverá realmente
comunicação, no sentido etimológico da palavra, de reconhecer o outro enquanto
opinião e conhecimento? Povos da floresta, ambientalistas, agricultoras e agricultores
familiares e demais profissionais que defendem os recursos florestais serão
escutados de tal forma que possam sobrepujar os especuladores financeiros da
vez e interesses colonialistas (essa mania!) dos países mais ricos? Ou será uma
nova “partilha” da Amazônia? O sequestro é do carbono ou da Amazônia, Salles
& Companhia?
A História do desmatamento não é simples de se
explicar, nem é feita por um único culpado interno e externo. É um emaranhado
que, para ser compreendido, requer estudo, monitoramento, pestanas cansadas,
livros e artigos impressos ou em PDFs, diálogos e compreensão dos direitos de
povos da floresta; compromissos de tomadores de decisão. Se realmente desejamos
punir, de fato, os mobilizadores e mandantes da destruição da Amazônia, precisamos
seguir o dinheiro com interdisciplinaridade.
Se queremos que o manejo da floresta seja justo, precisaremos agir com
transdisciplinalidade.
Talvez todo o debate florestal no Estado do
Pará nem seja uma luta entre o bem e o mal e sim, como diria a religião budista,
uma luta entre a ignorância e o conhecimento.
A ignorância assumida e não combatida, mata.
Aos mestres, escrevi.