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quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Rio Jaranduba: O GPS é a Pessoa



Rio Jaranduba. Foto: Carlos Ramos.




Breves, rio Jacaré-Grande, pensando em Chaves,

09 de dezembro de 2017.


Seu Nestor avisou: “Bora seus homi, que vocês vão perder a maré...”.


Erivelton e eu, naquelas quatro e meia da manhã, terminamos de deixar tudo pronto nas malas e seguir viagem para outras localidades onde ainda teríamos reunião. Ainda escuro, focou-se a luz da lanterna na proa da voadeira ADNARIM e concluí: a maré estava cheia. Seu Nestor avisara com muita clareza que tudo corre no rio Jaranduba muito veloz e que "pra secar o rio era fácil, fácil".



Seguimos na voadeira.



Naquele conjunto de “S” nos distanciamos das comunidades Monte das Oliveiras e Menino Deus. Os búfalos mantinham-se calados naquela madrugada, com uns poucos em pé, de vigia no rebanho, enquanto riscávamos a água pois já começara a formar as primeiras praias. Realmente a água vazava rapidamente e já percebíamos os bancos de areia com o pedaço de taboca que trazíamos. Besteira não termos trazido remo.



Nestor estava obviamente certo. Tinha noção de tempo aquele homem. Um relógio.



Ele ainda nos avisou para seguir sempre à esquerda e em algum momento que não lembro, dobramos à direita, rumando esquisito. “Não me lembro de ter passado por aqui”.



“Nem eu”, respondeu Erivelton.



“Pra falar a verdade...”, subi na proa da voadeira, e passei a mão na barba: “tamo perdido...”.



“Também acho”.



Naquela imensidão de canais, cercados pela mata, não sabíamos pra onde ir. Eu pensava no tempo, maré vazante, daqui a pouco não seria possível passar pelo rio Jaranduba e chegar no Fundiador, beirar a ilha Siriaca e chegar às outras reuniões.



No breu, lua não clareadora, céu estrelado, olhei pra constelação de Ursa Maior e tive o pensamento: “Ah, se a gente conhecesse a região, era só seguir as estrelas, não deveríamos ter vindo sozinhos... Peraí, a gente devia era ter as nossas próprias constelações. Já pensou a constelação de Arraia Maior e Arraia Menor? Já pensou a pergunta:

"Qual teu Signo?" 

"Signo de Arraia". 

"E o teu?" 

"Matapi”. 

Interrompi uma das minhas frequentes viagens na maionese quando paramos em uma casa para pedir informações sobre a saída daquele labirinto. Chamamos "Ô DE CASA!". Nada. Ou dormiam muito ou estavam com medo da gente, sei lá, estranhos chegando de voadeira de madrugada...



“Olha só, vamo dobrar aqui que eu acho que é o caminho”, sugeriu Erivelton. No que seguíamos, bem no meio do canal, topamos na praia, encalhamos mesmo. “Ô Peste! ”. Pra piorar, lembramos que a saída dali só se daria doze horas depois e tratamos de arrumar jeito de sair do enlameado. Erivelton pulou na água e eu fiquei no volante tentando virar pra direção da margem e apertando incessantemente para acionar o botão de levantamento automático do motor pra retirar a palheta da voadeira daquela lama da praia. Erivelton mal conseguia caminhar e com já com poucos passos aparentava estar exausto. Mais alguns passos, o botão funcionou, aliviando o peso da máquina na lama, o que permitiu sair daquela situação. O botão foi novamente acionado para a hélice do motor tocar o suficiente para fazer a voadeira deslizar numa lerdeza que estava de bom tamanho.



Chegamos próximo à outra casa. Estavam dormindo aparentemente.



“Ehh! ”, damos sinal de proximidade e paz.



Nada.



Outra tentativa: “ÊHH DE CASA! ”.



“ÊHH!”, responderam de lá. Era uma voz de mulher de dentro da morada, nem chegou a abrir a janelinha que deixava o sol entrar no seu raiar.



“A gente tá perdido e quer saber como chegar na boca do rio!!”



“Vocês segue a correnteza, onde a maré vocês vê que mais corre a água é onde não tem praia! ”.



“Tem uma praia ali no meio que a gente encalhou! ”.



“Poisé, tem que seguir pela beirada da direita, onde corre a maré. Ela vai dar lá fora na boca. É só seguir! ”.



“Obrigado! ”



“Vão com Deus! ”.



Depois daquele diálogo gritado pela distância, obedecemos ao conselho. Erivelton com a taboca percebendo a fundura do rio e eu pilotando com o motor bem devagar. À medida que a madrugada dava lentamente lugar ao dia e os galos se multiplicavam nos cantos, aquele caminho dentro d´água surgia, na maior parte de maresia o rio escondendo a praia, mas aquele liso correndo momento pela beira, momento pelo meio, no justo canal do rio Jaranduba. Fui seguindo. Vira e mexe Erivelton alertava pra levantar mais ainda o motor, pois havia banco de lama por perto. Fomos. Aquela estradinha no meio da água pra gente rumar, a taboca confirmando que era canal, até chegarmos à grande boca do rio Jaranduba, na providência de continuar entendendo a correnteza. Erivelton mais experiente das praias do que eu, me substituiu no volante, acelerou a ADNARIM até dobrarmos a ilha Siriaca por volta das seis e meia da manhã. Chegamos ao nosso destino.



Aquela senhora nos valeu e tinha um GPS na mente, mesmo no escuro da madrugada, sem ao menos olhar pra gente. Uma grande noção de espaço que nos livrou de um encalhe de um dia inteiro. Um conhecimento profundo sobre seu território que lhe justificavam direitos inquestionáveis e que alertavam que não sabemos de seu mundo, por isso, há de se respeitar, a velocidade das águas.



Veio à mente um grande geógrafo: “o território é a própria sociedade em movimento; sem o território a sociedade não pode ser explicada”. 

É, senhor Milton Santos, ali tudo está em movimento e explicado por seus moradores. 

A Natureza do Espaço. 

E também do Tempo, "pra modi aproveitar a maré".






Pantoja Ramos.

Publicado no Recanto das Letras.



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