"O que torna a existência imortal? 
Pergunta aparentemente simples, mas 
que, dependendo do ser/sendo humano e do húmus cultural de onde emergiu,
 permite múltiplas respostas. Os povos ágrafos, por exemplo, 
imortalizam-se na transmissão oral e visual de sentimentos, pensamentos e
 saberes práticos tatuados em corpos, lugares e objetos que, ao serem 
escavados, remontam milênios de vivências ali imortalizadas. Perde-se a 
aparência, mas se acredita encontrar um pouco da essência de rituais, 
símbolos e objetos. 
Os povos das letras, via de regras, imortalizam-se 
nas escritas deixadas para a posteridade. Mas como esses mundos do oral e
 do escrito nascem cruzados, com a oralidade, puxando som, imagem e 
escritura, a grande maioria dos escritores tornaram-se tradutores de 
mundos. Walcyr Monteiro, 79 anos, grande amigo paraense, sociólogo, 
humanista e contista das visagens, fez de sua vida uma conexão entre os 
pluriversos do oral e da narrativa escrita para continuar, desde a 
Amazônia, nas batalhas da memória contra o tempo do esquecimento de 
vivências e crenças ancestrais de uma região e suas populações 
atravessadas pelo fantástico imaginário poético e político a nos ensinar
 que outras cosmogonias e cosmologias existem. 
Hoje, ele encantou-se. 
Portanto, parte o homem-matéria, fica o homem-texto, assombração de 
memória oral, escrita e visual. Partem as fragilidades e efemeridades da
 vida, fica o homem-sábio, educador de gerações e artista de outros 
mundos. Walcyr é memória viva de sabedoria amazônica, compositor de 
letras visagentas e assombradas, dessas que fascinam, metem medo e nos 
desafiam a escavar labirintos de matintas, mapinguaris, cobras grandes, 
curupiras, entidades rurais e urbanas e/ou seres-metamorfoses a 
desmontar nossas referências de existência, tempo e lugar. Seu modo 
comunicativo e generoso de ser, fazia o mundo um lugar de afeto. Sua 
obra vasta, porque talhada nas entranhas da Amazônia, fez-se na contação
 de mil e uma noites. 
Em uma das vezes que retornamos de um evento no 
Campus da UFPA/Breves em partilha do irmão marajoara de Afuá, Juraci 
Siqueira, O Boto Sacânico, a noite foi curta para as marés de 
aprendizagem feitas de histórias morbidas, risíveis e imprevisíveis, 
além dos causos das lutas políticas que o constituíram, exilaram e o 
libertaram de crises de si e da sociedade. Quanta experiência, visão 
política e criativa habitavam um único ser! Hoje, o mundo está menos 
alegre, mas se renovará na eterna lembrança e na continuidade da 
existência e do patrimônio narrativo forjado por uma grande Águia das 
Letras Amazônicas que, por muitos pares de ano, sobrevoou, alimentou e 
se alimentou de néctares de humanos e não-humanos para se contar e nos 
contar na boniteza das qualidades e  contradições da vida. 
Vai, meu 
amigo, ser narrativa, conto e poesia em outros dimensões do espaço 
sideral".
Prof. Agenor Sarraf.


