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quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Sobre a medida provisória que permite a venda de créditos de carbono nas concessões florestais

 


Carlos Augusto Pantoja Ramos.[1]

 

No apagar das luzes de 2022 o Governo Bolsonaro decretou a medida provisória nº 1.151[2], que trata da alteração transitória da Lei nº 11.284, de 2 de março de 2006[3], que dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável de madeira. O propósito da MP é principalmente gerar a possibilidade de acrescentar o direito da comercialização dos chamados créditos de carbono e serviços ambientais no objeto da concessão florestal (artigo 16º, parágrafo 2º da MP nº 1.151).

Originalmente na lei 11.284, o parágrafo 2º apontava que “... no caso de reflorestamento de áreas degradadas ou convertidas para uso alternativo do solo, o direito de comercializar créditos de carbono poderá ser incluído no objeto da concessão, nos termos de regulamento...”. Na redação da nova MP, passa-se a vigorar o texto “... o direito de comercializar créditos de carbono e serviços ambientais poderá ser incluído no objeto da concessão...”. Notem que a indicação de créditos de carbono em sua origem pautava-se no processo de reflorestamento. Vale a pena pesquisar as notas das audiências públicas que discutiram em 2006 a Lei de Gestão de Florestas Públicas. Será que naquela à época o entendimento sobre os créditos de carbono era de funcionarem como prêmio para a ação de recuperar áreas desflorestadas? Fiquei a pensar.

Outra modificação é a inclusão no artigo 16 também como objeto de concessão, parágrafo 4º, “...a exploração de produtos e de serviços florestais não madeireiros, desde que realizados nas respectivas unidades de manejo florestal, nos termos do regulamento da respectiva esfera de Governo, tais como... II - acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado para fins de conservação, de pesquisa, de desenvolvimento e de bioprospecção... VI - produtos obtidos da biodiversidade local da área concedida...". É importante salientar que além do crédito de carbono, a Lei 11.284 vedava o acesso ao patrimônio genético para fins de pesquisa e desenvolvimento, bioprospecção ou constituição de coleções e que seu artigo 17º mencionava que os produtos de uso tradicional e de subsistência para as comunidades locais estavam excluídos do objeto da concessão, com explicitação no edital. Como o assunto principal e motivador da MP editada em dezembro de 2022 é a comercialização de créditos de carbono pelos concessionários da exploração de madeira em florestas públicas, a inclusão também de outros bens florestais no novo texto alarga a possibilidade de uso das florestas públicas, o que traz para mim a preocupação sobre uma tentativa de descaracterização total da Lei 11.284.

Evidentemente falamos da gestão da floresta pública, por isso seu uso precisa ser debatido quanto ao seu alcance. E por se tratar de florestas públicas, o conjunto da sociedade amazônica precisa estar presente para analisar não somente os pontos cruciais desta MP como também de avaliar os resultados da lei de 2006, conquistas, falhas e desafios. Uma marca da Lei 11.284 foi a sua construção em bases participativas. Várias organizações foram chamadas para a elaboração do Projeto de Lei sob a liderança de Tasso Azevedo e participação de lideranças técnicas históricas como Paulo Oliveira Jr., Tarcísio Feitosa, Rubens Gomes, Joci Aguiar dentre outros. Indico como fundamental a participação do Professor Girolamo Treccani na Lei 11.284, com regramento no seu artigo 6º que “... antes da realização das concessões florestais, as florestas públicas ocupadas ou utilizadas por comunidades locais serão identificadas para a destinação, pelos órgãos competentes...”. Desta maneira, o ordenamento territorial passou a ser condicionante das concessões florestais para extração de madeira em florestas públicas tendo como balizador o Plano Anual der Outorga Florestal – PAOF. Minha participação no IDEFLOR anos depois acabou por se concentrar nestes valiosos artigo e plano. E se por um lado, entendemos que é possível disciplinar a atividade florestal madeireira empresarial com arrecadação para os cofres públicos e com adoção de parâmetros mínimos que o manejo preconiza como o ciclo de corte e sobretudo que isso parta de um ordenamento territorial, por outro lado compreendemos que sem equidade e isonomia no acesso aos bens e serviços da floresta, praticamos injustiças como assim descrevo em minha Carta da Isonomia e da Equidade pela Floresta[4].

Com base nas considerações anteriores, teço algumas críticas sobre a medida provisória lançada pelo governo que está findando:

1.     Entendo que há “jabutis”[5] no texto, principalmente ao trazer para o direito das concessionárias, além dos créditos de carbono, a licença para uso de outros bens da floresta e acesso ao patrimônio genético; falamos de uma desconfiguração de uma lei que tem por propósito inicial o ordenamento da atividade madeireira em áreas públicas, gerando arrecadação para estados e municípios e com monitoramento de suas operações em uma conjuntura de inúmeros casos de extração de madeira ilegal na Amazônia;

2.     Uma vez que a sociedade amazônica, sobretudo os povos das florestas avançaram no conhecimento de seus direitos em relação à consulta prévia, livre e informada no âmbito da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho[6] e leis relacionadas no Brasil, entendo ser essencial debater com tais atores a tentativa de inserir outros bens florestais e mesmo os créditos de carbono para benefício a princípio de empresas do ramo florestal madeireiro que estão nas concessões.

3.     É preciso alertar que há casos da licença de passagem de famílias agroextrativistas para coletar determinados bens florestais como no caso extração da balata na Floresta Estadual do Paru por comunidades vizinhas como assim explica Luciana de Carvalho e Marcelo Silva (CARVALHO e SILVA, 2022)[7]. O caminho estava até então decidido: as empresas madeireiras acessariam a madeira e não outros bens florestais que seriam utilizadas por povos da floresta, principalmente quanto ao delicado uso do patrimônio genético envolvido que possui normatização própria;

4.     Sobre a comercialização de créditos de carbono previsto na MP, o texto faz menção à Lei 14.119 que trata da Política Nacional de Pagamento Por Serviços Ambientais[8]; desta forma, conforme previsto no artigo 11 da referida lei, o poder público tem o dever de fomentar a assistência técnica e capacitação para a promoção dos serviços ambientais e para a definição da métrica de valoração, de validação, de monitoramento, de verificação e de certificação dos serviços ambientais, bem como de preservação e publicização das informações. Isso significa que é imperativo que o Estado se faça presente e que a sociedade local debata e cobre por informações sobre o valor que seria pago ao crédito de carbono, o valor que se receberia, como isso seria repartido com a União, Estado e Municípios e quais os tributos deverão ser cobrados.

5.     O artigo 2º da Lei 14.119 estabelece por exemplo que o crédito de carbono seria “... ativo financeiro, ambiental, transferível e representativo de redução ou remoção de uma tonelada de dióxido de carbono equivalente, que tenha sido reconhecido e emitido como crédito no mercado voluntário ou regulado “. Para Fernando Facury Scaff, professor de direito financeiro da USP e tributarista, a incidência sobre a comercialização dos créditos de carbono, que são ativos financeiros, é a do Imposto sobre Operações Financeiras – IOF (SCAFF, 2022)[9]. O tributarista aponta que IOF representa tecnicamente incidência sobre operações (1) de crédito, (2) câmbio, (3) seguro, e (4) relativas a títulos ou valores mobiliários. Ou seja, apesar de ser em sua origem como serviços ambientais, a venda de créditos de carbono é uma operação financeira, onde deve-se cobrar o IOF. Caso contrário, poderemos estar falando do seu não pagamento como evasão de divisas? Como cobrar das concessionárias o IOF de tal modo que isso caracterize que o objeto envolvido é oriundo de uma floresta pública na qual o próprio estado é dono? Concessionárias podem deter tais créditos como se fossem títulos seus e negociá-los em um mundo altamente especulativo como é o do mercado voluntário de carbono?  

6.     A discussão sobre a inclusão ou não da comercialização de créditos de carbono por empresas concessionárias em florestas públicas que originalmente eram para fins de manejo florestal madeireiro deve ser feita com o protagonismo da sociedade amazônica e Estado para a construção das diretrizes e normatização, como foi feito em 2006.

7.     É importante lembrar aos deputados federais que provavelmente terão como pauta em 2023 a regulamentação do mercado de carbono que é imprescindível escutar os povos da floresta, os gestores públicos, os cientistas, os conselhos de florestas estaduais e conselhos de gestão de florestas públicas, os ministérios públicos e as controladorias de orçamento e tributação.

 

Não podemos esquecer que falamos de florestas públicas e não de uma nova fronteira do rentismo[10].







Notas:

[1] Engenheiro Florestal, Mestre em Ciências Florestais, estudante de doutorado do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (INEAF) da Universidade Federal do Pará, Mentor de Crédito Socioambiental do Instituto Conexsus no Marajó. Atuou como Diretor de Gestão de Florestas Públicas do Instituto de Desenvolvimento Florestal do Pará nos anos 2009 e 2010, durante a implantação das primeiras concessões florestais estaduais.

[2] BRASIL. Medida Provisória 1.151. Altera a Lei nº 11.284, de 2 de março de 2006, que dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável, a Lei nº 11.516, de 28 de agosto de 2007, que dispõe sobre a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - Instituto Chico Mendes, a Lei nº 12.114, de 9 de dezembro de 2009, que cria o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, e dá outras providências. 2022. Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.151-de-26-de-dezembro-de-2022-453738894. Acesso: 27/12/2022.

[3] BRASIL. Lei nº 11.284, de 2 de março de 2006. Dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável; institui, na estrutura do Ministério do Meio Ambiente, o Serviço Florestal Brasileiro - SFB; cria o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal - FNDF; altera as Leis nºs 10.683, de 28 de maio de 2003, 5.868, de 12 de dezembro de 1972, 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, 4.771, de 15 de setembro de 1965, 6.938, de 31 de agosto de 1981, e 6.015, de 31 de dezembro de 1973; e dá outras providências. 2006. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11284.htm . Acesso em 27/12/2022.

[4] RAMOS, C.AP. Carta da Isonomia e da Equidade pela Floresta. Publicado em 16 de novembro de 2021. Recanto das Letras. Disponível em https://www.recantodasletras.com.br/e-livros/7386776. Acesso: 27/12/2022.

[5] Segundo o jornalista Octávio Guedes, “jabuti” é um estratagema que muitos parlamentares fazem ao inserir em uma medida provisória um assunto sem relação com o tema inicial da proposta. Ver em GUEDES, O. Entenda o que é um 'jabuti' na política. Publicado em 18 de junho de 2021. Disponível em https://g1.globo.com/politica/blog/octavio-guedes/post/2021/06/18/entenda-o-que-e-um-jabuti-na-politica.ghtml. Acesso: 27/12/2022.

[7] CARVALHO, L.G. de; SILVA, M.A. da. Os balateiros da Calha Norte: a emergência de um grupo diante das concessões florestais no Pará. In: Antropolítica - Revista Contemporânea de Antropologia. Publicado em 8 de março de 2022. Disponível em https://periodicos.uff.br/antropolitica/article/view/41894/31405. Acesso: 27/12/2022.

[8] BRASIL. Lei 14.119, de 13 de janeiro de 2021. Institui a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais; e altera as Leis n os 8.212, de 24 de julho de 1991, 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, e 6.015, de 31 de dezembro de 1973, para adequá-las à nova política. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14119.htm. Acesso: 27/12/2022.

[9] SCAFF, F. F. A tributação dos créditos de carbono e dos serviços ambientais. Publicado em 17 de fevereiro de 2022. Conjur. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-out-17/justica-tributaria-tributacao-creditos-carbono-servicos-ambientais. Acesso: 07/12/2022.

[10] O rentismo é, de acordo com o economista Ladislau Dowbor, todo processo que extrai valor sem aumentar ou contribuir para a produção. Para Dowbor, quem extrai dinheiro apenas drenando o que outros produzem é um rentista, e o dinheiro extraído é “renta”. Ver em DOWBOR, L. Quem produz e quem se apropria: o poder do rentismo. Publicado em 25 de fevereiro de 2021. Diplomatique Brasil. Disponível em https://diplomatique.org.br/quem-produz-e-quem-se-apropria-o-poder-do-rentismo/. Acesso em 27/12/2022.

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