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sábado, 20 de abril de 2024

A maçã do Jari



Dos borrões de minha memória.

Aconteceu naquele dia a coincidência de um coleguinha de escola e eu irmos juntos ao supermercado de Monte Dourado naquela manhã ensolarada de 1984, quando o sol das nove horas tinha a quentura das sete horas matutinas de hoje. Seguíamos no bate-papo sobre futebol adentrando no estabelecimento, todo empolgado eu estava a falar que o meu time, o Palmeiras, iria para a final do extraclasse. De repente, o amigo pegou uma maçã e tacou-lhe uma mordida.

- Que é isso??? Como tu come assim a maçã sem pagar?? 

Indignado, tirei a fruta da mão do menino e fui colocar no lugar. A mão de um homenzarrão segurou nossos braços:

- Ahá!! Peguei vocês da gangue dos comedores de maçã!! Vamos pra gerência, agora!

E lá estavam meu amigo e eu, ambos com 9 anos de idade, sendo interrogados na salinha do gerente:

- Então vocês fazem parte da gangue dos comedores de maçã??!!

- Moço, eu até coloquei na prateleira pra não piorar!

O amiguinho calado.

- Quem vai pagar pelo prejuízo? Vamos ligar para os seus pais.

Pronto. Veio a sentença.

- Não conta pro meu pai, não, moço. Por favor. Vou apanhar!

E choro. Muito choro.

Depois de uma hora de ameaças, fomos liberados. O assunto não foi levado pra frente. Mas podia jurar que eles riram quando nós saímos daquela sala escura e mofada, que deixava passar poucos raios de sol.

O amiguinho continuou calmo. Reclamei horrores:

- Bicho, eu nunca mais vou contigo no supermercado!!

Tempos depois meu coleguinha foi pego novamente, desta vez terminando de sugar um copo de iogurte, escondido atrás de sacos de farinha, já que não haviam nesta época as câmeras que atualmente nos flagram e nos julgam. E quando conheci a casa de meu amigo, casinha humilde de muitos irmãos e irmãs, espalhados nos quartinhos lá da Vila Facel, cujo pai recebia baixo salário, desproporcional para as necessidades de sua família, surgiu-me na mente uma desconfiança que meses depois virou um pé-de-vento crescente do entendimento sobre uma possível injustiça.

Perguntei pra minha mãe enquanto ela fazia o almoço:

- Mãe, de quem é o supermercado?

-  Da Jari, meu filho.

- O papai trabalha pra Jari, né?

- Isso. 

- O papai trabalha pra Jari, recebe o salário da Jari e depois compra o rancho do mês no supermercado da Jari?

- Isso, isso, Carlinho, agora vai reparar teus irmãos!

Saí matutando: "A Jari, o amiguinho, a família do amiguinho, a fome, o iogurte, a maçã...".


Seria essa a tal maçã do conhecimento?




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