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quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Pai Zezão


                           Macapá, 21 de julho de 2014.

Pai Zezão sempre foi um grosseiro patriarca. De fala direta e franca, comandava com bengala de acapu aquela ilha no meio do rio Amazonas, no trecho entre Almeirim e Monte Alegre. Cambado de um lado da perna pelo beijo de um surucucu ainda moço, trazia a dor estampada no rosto que muitos viam como mau humor, porém era simplesmente a somatória das experiências vividas principalmente de ruim, e seu sonoro huuuummm era sinal de concordância ou serenidade diante da situação posta. Nunca dava pra saber se era a primeira ou a segunda ou as duas coisas juntas.

O velho tinha seis filhos, sendo quatro rapazes e duas moças, todos trabalhadores e disciplinados, a exceção de Percivaldo, conhecido ali como Chumbinho, dada a mania de caçar desde molecote. Chumbinho tinha uma revolta nascida dentro dele mesmo, sacudida pela família sempre pedindo para estancar a vadiagem e a zarulhice, talvez acostumado que era ao receber os bons tratos do fato de ser o caçula. Realmente, de Pai Zezão foi o que recebera a menor quantidade de carinhos de cinta de couro. Até quando apanhou, não foi em declarações de pausa silábica do por-que-você-fez-aquilo. Uma rapa aqui e acolá, esquivando a maior parte da costa por ser o preferido. Pai Zezão com ele era mais carinhoso. Os outros reclamavam da falta de critério do pai. “O Chumbinho faz o que bem qué e nunca leva o dele de verdade...”, protesta a mais velha. “Vem cá moleca que eu vou tê mostrá o teu que tá querendo!!”. E sova.

Esses episódios não eram a dinâmica daquela relação, não: na maioria das vezes bastava Pai Zezão olhar feio e bater a bengala de acapu no chão para todos já ficarem de sobreaviso e deixar de pavulagem. Assim era quando pediam pra ir às festas, quando queriam enrolar mais uns minutos na rede antes de ir pra roça, quando tinha visita em casa, quando era a sexta-feira da Paixão.

Já adultos, as mulheres casaram-se todas, os homens também a não ser Chumbinho. Viviam todos na mesma posse, com a influência de criação do patriarca não perder uma braça que fosse.

Um dia Pai Zezão tava escamuchando o dedão inflamado da unha encravada deitado na sua rede no salão da casa quando chega o Salatiel, filho do compadre Arnô. “Bença padinho”. “Deus te dê boa sorte”. “Padinho, o pai quê falá com o senhor sobre uma situação que aconteceu com a Verinha”. “Diga pra adiantá, é só com ele?”. “Sim senhor.”. Pai Zezão botou a camisa no ombro o que para ele significava já estar vestido, calçou a percata e já na saída lhe chega a esposa, Dona Ana, a antecipar a conversa com o compadre Arnô. “Homi, que vergonha, a Verinha tá prenha e tão dizendo pur aí que é do Chumbinho...”. “Comequié??!”. Nem contou conversa e foi para o campo de muinha onde o Chumbinho, nos seus vinte e dois anos de idade se preparava para bater um pênalti. No que se virou e viu o pai ainda tentou correr, mas foi enganado pela destreza do velho ainda capaz de dar um salto certeiro em qualquer cutia que bobeasse e assim trouxe o rapaz com o polegarzão travado na orelha. “Vem cá moleque que eu vou tê ensiná a ser homi de respeito pra num andar com a filha dos outro de família, molequi!”.

E no mesmo dia, já estava a capela, a noiva, os pais da noiva, até o padre que estava uma hora e meia de barco visitando uma ilha vizinha, tudo pronto para casar Verinha e Percivaldo Chumbinho. Ela num misto de sem graça e alegre. Ele todo amuado de cabeça baixa. E foram casados quase à meia noite pelo padre Rafael. Enquanto rolava o casório, de Pai Zezão se ouvia: “huuummmmm”.

Quinze anos depois, Chumbinho andava meio bebedor, hostil com todos até chegar ao cúmulo de bater em Verinha só porque perguntara onde estava o dinheiro do açaí que tinha vendido. Violentou a coitada até arroxear os dois olhos, vazios de vida que ficaram por sete dias. A notícia não tardou a chegar ao Pai Zezão, que contava os altos de seus setenta anos. “Ispia, pai, o Chumbinho porre bateu ontem de noite na Verinha”. O velho saiu no terreiro, passou pelo casebre e ainda viu a senhora humilhada na rede que mal balançava pra não trazer mais dor. Ao lado do jirau em pé estava Chumbinho e sua garrafa de cachaça a proferir impropérios para o pai. “Sai daqui velho, que sou homi agora e faço o que eu quiser nessa porra!”. Pai Zezão pegou a bengala tremida e deu com a curva da madeira na costa do filho rebelde, bastando duas porradas pra arrancar o ai-ai-ai do bebum, que logo se acocorou no canto da cozinha. “Quero vê se tu é homi de batê em macho de verdade. Tu é o valentão pra batê em mulhé, então toma o teu!!”. Rachou o supercílio de Chumbinho, que botou as mãos e cotovelos para proteger a cabeça embriagada. “Enquanto tu morar debaixo do meu sobrado, tu não manda nada aqui viu, molequi! Bate de novo na Vera, bate, que eu parto tua cabeça que nem um babaçu!”.

O evento marcou a ilha e fez de Chumbinho um cidadão aparentemente correto, até melhorou na lida diária, um comportamento que já não lembrava mais a bebedeira, e fez o pilequento largar a farra escondida com as mulheres trazidas nas geleiras pelos pescadores de Abaetetuba. Tudo em ordem que tirava de Pai Zezão ao ver Percivaldo carregando rasas de açaí o som de “huuummmmm”.

Cinco anos depois, Pai Zezão morreu. Foi-se devido a uma veia estourada na cabeça que não deu chance de se despedir dos filhos. Neste pé  Chumbinho voltou ao vício da bebida.

Bebeu a roça boa que tinha. Bebeu a embarcação que antes era limpa e rápida para os padrões locais. Bebeu o resto da casa que estava se ajeitando. Bebeu até o amor da esposa que não aguentando mais a ausência do marido, chamou a todos para uma audiência familiar. E disse aos cunhados ajuntados no salão: “Gente, antes de eu botá uma galhada na cabeça do Chumbinho, que não me dá carinho, não me procura, nem pára sequer na sala, só no jirau bicando buchudinha e mais buchudinha, eu prefiro dizer pra vocês que é melhor a gente seguir cada um pro seu rumo”. Todos escutaram e concordaram que talvez fosse o caso. De um a outro, surgiam huuummmm. “É isso que tu qué?”, perguntou o irmão mais velho. “É melhó”. E assim foi. Chumbinho, lá perto do Jirau nem fez questão de tentar entrar na reunião e dizer que iria mudar, que Verinha deixasse disso e que tudo seria melhor daqui pra frente. Só abraçou mais ainda a garrafa que dizia a ele que ao contrário daquela mulher, jamais o abandonaria.

Bêbado, largado, feridento, não falando coisa-com-coisa, Chumbinho passou a viver do coração bom das pessoas e dos irmãos, apodrecendo que nem a morada que lhe sobrara, fartando os cupins que ali se multiplicavam. Verinha, por sua vez, por consideração ao sogro passou a mandar religiosamente uma quantia em dinheiro para que Chumbinho não morresse de fome. Quando perguntada por uns dos filhos o que o vovô Zezão diria daquelas cenas de desolação, Verinha apenas balbuciou:

“Huuummmmmmm”.
Pantoja Ramos
http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/4891927

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