“Nós não somos guardiãs da natureza, somos a natureza”.
Sonia Guajajara.
Certo dia li a lenda de Iaçá e do Açaí,
muito conhecida entre os marajoaras como eu. Mas sei lá, um inconformismo bateu
forte. Senti a necessidade de pensar num outro lado para esta história. Sei que
irei muitas vezes errar, mas é preciso que eu tente.
Então começo com uma primeira frase que
aponte o caminho de mudança na minha mente: e assim Iasawi
deixou-se morrer para renascer mais forte.
Não tenho o lugar de fala de Iasawi nem
de todas as mulheres e mães aqui envolvidas. Nunca saberia expor, nem tenho a
legitimidade de seus clamores. Por isso, só posso escrever a partir do meu
lugar de fala[2] de filho, daquele que se nutriu de
sua luta, de sua força, coragem e entendimento sobre o valor da vida. Neste
conflito que passo, acabo por intercalar parágrafos para demonstrar que algo está
se novamente se transformando dentro mim, eu, criado nos anos 1970 e 1980 para
continuar o machismo.
Nesta versão da lenda de Iaçá, inicio na
imaginação com nossa protagonista posicionada como na parábola platônica da
caverna. Estava Iasawi na frente de sua comunidade a defender algo
incompreensível para os demais: sim, era possível sair da situação difícil de
carestia em que se encontravam. Iasawi dera as opções, argumentara, fizera as
contas. Era necessário um outro estilo de vida da qual tinham se habituado há
muitas gerações. Os homens da aldeia, que até então decidiam as questões
torciam os narizes, alguns até cuspiam de lado pelo fato de Iasawi, uma mulher,
lhes dirigir uma proposta. Tinham aprendido com a igreja que esta deveria ser a
relação entre mulheres e homens.
Eu, criança, não entendia sobre aqueles
atos. Eu adulto, com a vontade de aprender, fico atento ao que diz Vandana
Shiva: “... a convergência do que eu chamo capitalismo e patriarcado está
destruindo o planeta. Unindo a enorme violência contra as mulheres, inclusive
feminicídios, e a violência contra todos os seres, crianças, idosos, que estão
morrendo... Cientistas produzem constantemente estudos que falam da extinção
das espécies, das mudanças climáticas, da desertificação e falta de água. O que
temos neste século, em que os agrotóxicos estão presentes, é ecocídio e
genocídio... Eles têm essa ideia de que matando todos vão ser vencedores,
enquanto todos os demais serão perdedores. Assim, vamos estar extintos como
espécie humana no próximo século. Por isso, é melhor terminar com o patriarcado
antes que ele termine com a vida...[3]”.
Ao ler o relato de Wilma Yãnami
Karapotó Plaki-ô, ouvi sua voz dizer que "... a igreja quebrou a
parceria índia – índio. A dependência da mulher do marido foi
uma ruptura trazida pela igreja. Na sociedade colonial e na
capitalista, a figura masculina é o centro do mundo: o homem dominador de
tudo na natureza. Após muitos séculos de dominação, a mulher ficou
dependente do homem. A mulher indígena, hoje, está reconquistando seu
espaço. Estamos acompanhando as mudanças do mundo. Nós, mulheres,
estamos estudando nas universidades e exercendo as mesmas profissões
que os homens. Perante a lei, todos são iguais tanto homem como mulher; tanto
indígena como não indígena..." [4].
Eram tempos difíceis para conseguir
comida na tribo de Iasawi, os animais tinham desaparecido, a paca, a cutia, o
matrinchã, o aracu, o pirarucu, a onça, o inambu, a harpia. A ação de caçar era
forte hábito, base da alimentação de comunidade. Os homens saiam todos os dias
pra caçar. Quanto mais caça, mais fama e subida na hierarquia local. Mesmo que
não precisassem, matavam para salgar e dependurar nas enviras e cipós para
ostentar os animais abatidos.
Algumas mulheres da tribo não concordavam
com tais costumes de caça desenfreada, mas não expressavam opinião para
confrontar a situação. Iasawi, filha do cacique, por outro lado, questionava
tais práticas abertamente. Não por ser filha de quem era, mas porque percebia
que o jeito como se tratava a natureza ainda iria lhes trazer um grande
infortúnio. O que aconteceu tempo depois, como previra.
Daí verifiquei, por meio dos estudos de
Ana Euler, Ana Faulhaber e Camila Moreira, o quanto tem sido centenária a
dificuldade das vozes políticas da mulher indígena serem escutadas no
país. Segundo as referidas autoras, “o movimento indígena teve uma
conquista histórica com a posse, em 2019, da primeira mulher indígena eleita
Deputada Federal no Brasil, a advogada Joênia Wapichana, pelo estado de
Roraima. Ainda no processo eleitoral de 2018, tivemos a primeira indígena
candidata a vice-presidência da república, Sra. Sônia Guajajara...”[5].
Quando a fome chegou aos parentes de
Iasawi e fez as primeiras vítimas, esta tentou convidar a todos para uma
assembleia e explicar que haveria uma planta que poderia mitigar os famélicos
efeitos da carestia pela carne de animais agora praticamente extintos na região
por causa do excesso de caçadas. Uma grande seca, talvez a mais grave daquela
geração também assolara aquelas plagas, maltratando de vez os poucos animais
que circulavam. Ela apontava para uma palmeira magra de frutinhos de
cores mistas do roxo ao preto, irmanadas de vários estipes a pousar vários
pássaros, principalmente periquitos.
“É venenoso!”, disse o velho cacique.
“Como o senhor meu pai sabe?”, indagava
a filha.
“Meu pai me disse que ouvira de seu pai,
que por sua vez ouviu de seu pai”.
“Se é venenoso, porque os periquitos não
morrem?”.
“Periquitos não são como nós”.
“Nunca ninguém tentou comer os
frutinhos?”.
“Algumas mulheres tentaram e passaram
mal”.
“O que elas sentiram?”, insistiu a
curiosa Iasawi.
“Coisas de mulher”.
“Que coisas?”.
“Não sei”.
“Não sabes?”.
O pai já impaciente olhou com severidade
e por um milésimo de segundo seu olhar chegou até à varinha de cuieira metros
adiante. Iasawi, entendendo o gesto, achou melhor recuar, mas não sem resistir:
“É, o senhor não sabe”.
Fiquei a pensar na situação. Qual o
valor daquela palmeira para enfrentar a fome? O que a tribo de Iasawi estava
perdendo? Fui pesquisar. Achei a explicação da nutricionista Raisa Lima em
entrevista ao sítio de notícias Em Tempo: “... O Açaí roxo é rico
em vitaminas C, E e as do complexo B, fortalecendo o nosso sistema imunológico
e prevenindo o envelhecimento precoce. Além disso, é fonte de fibras, ajudando
a regular o intestino e a combater a prisão de ventre... o açaí possui também
grande quantidade de cálcio, o que facilita o ciclo menstrual das mulheres,
além de fazer bem para o coração...[6]”. Aprendi quando
infanto-adolescente que algo que faz bem para o coração se usa o termo cordial.
O açaí é cordial. Junta gente. Alimenta
as pessoas.
O brasileiro, senhor Sérgio Buarque de
Holanda, o brasileiro não é.
Na tribo de Iasawi, sempre que
o período da extrema carestia se instalava, se aplicava uma terrível lei
entre os parentes: o abandono dos mais fracos. Uma lei criada há muito tempo,
decidida pelos homens, sempre alvo dos protestos das mulheres, sempre
subjugadas e não raras vezes abandonadas junto com seus entes. Uma dura lei,
não consensual, porém executada pelos masculinos. E naquele ano, os machos mais
velhos exigiram a lei do abandono quando a escassez chegou. Houveram gritos de
desespero e dor. Iasawi protestava, brigava com os homens, batia neles, mas
sozinha e sem a ajuda das outras mulheres, sempre sucumbia quase desmaiada de
indignação. O velho cacique, impávido, apontava para o caminhar para o novo
local, quem sabe um outro igarapé. O igarapé deixado para trás ficava cheio das
lágrimas das mães sofridas por filhos e outros entes largados à própria sorte.
O abandono. Quando uma sociedade
abandona suas crianças, estamos na mais baixa capacidade de manter a própria
espécie humana. Henrietta Fore, diretora executiva do UNICEF, em 2020 alerta
que “... Antes da crise de Covid-19, 32% das crianças em todo o mundo com
sintomas de pneumonia não eram levadas a um profissional de saúde. O que
acontecerá quando a Covid-19 atingir sua força total? Já estamos vendo
interrupções nos serviços de imunização, ameaçando surtos de doenças para as
quais já existe uma vacina, como poliomielite, sarampo e cólera. Muitos
recém-nascidos, crianças, adolescentes, jovens e gestantes podem morrer por
causas não relacionadas ao coronavírus se os sistemas nacionais de saúde, já
sob grande tensão, ficarem completamente sobrecarregados. Da mesma forma,
muitos programas de nutrição foram interrompidos ou estão suspensos, assim como
os programas comunitários de detecção e tratamento precoces de crianças
desnutridas. Precisamos agir agora para preservar e fortalecer os sistemas de
saúde e alimentação em todos os países[7]...”.
Quando Iasawi engravidou, tentou o
máximo esconder sua barriga despontando. Contudo, uma mulher - que nunca gostara da filha do cacique e de sua criticidade - desconfiou da situação
da jovem e a denunciou para os homens da tribo. O cacique incrédulo a
princípio, em alguns meses se convenceu que Iasawi estava grávida e manteve
sempre alguns rapazes a vigiá-la. Um deles era o pai do bebê no ventre da moça.
Graças a esta condição de vigilância, Iasawi pode escolher onde passear e
sempre frequentava as proximidades das palmeiras que davam aquele fruto preto-arroxeado.
Observou atentamente os pássaros, os periquitos, os papagaios, os tucanos.
Reparou nas abelhas pretinhas de manhã cedo, no sol, na chuva. Enquanto os dias
passavam, tecia peças de tururi, lindas peças que embelezavam a grande oca.
Ficava horas junto às palmeiras, observando, matutando, estudando. Nove fases
de luas cheias se seguiram.
Nestes tempos, conversou muito com a
maioria das mulheres de maneira reunida. Explicou suas teses em relação ao
fruto. O quanto poderiam alimentar-se daqueles estipes.
“Mas como vamos pegá-los? Não temos os
instrumentos dos homens para derrubar essas palmeiras?”, perguntou a mais velha
do grupo.
“Não precisa”.
“Não??”.
Iasawi apresentou tururis tecidos uns
sobre os outros a formar um círculo.
“Eu não posso subir porque estou
esperando criança, mas você aí pode!”. Apontou o tururi trançado para a melhor
amiga. A melhor amiga, ágil, também rápida de pensamento, encaixou a... a...
“Como é o nome disso, Iasawi?”, coçou a
cabeça a amiga.
“Peko’in”.
“Peconha?”.
“Isso”.
A melhor amiga de Iasawi trançou a
peconha nos pés, tentou a primeira, a segunda e na terceira vez escalou para o
alto das estipes. Pegou um grande cacho, cujos frutos caiam nas cabeças das
demais lá embaixo, arrancando risadas.
“E agora?”.
Olharam umas para as outras.
“Não sei. Bora roer”.
“Caramba, difícil de mastigar”.
“E se a gente colocar na água? Será que
amolece??”.
Os homens chegaram.
“Rápido, esconde, esconde”.
Disfarçar suas habilidades conquistadas
era para as mulheres locais algo corriqueiro. Elas não podiam mostrar sua
capacidade de transformação. Aliás, sabendo um pouco da vida de Elionai Pataxó,
melhor compreendo que nossa civilização é injusta e que uma mudança de Era é
inevitável. Segundo Elionai, “Nós éramos oprimidas pelos homens. Nos
sentíamos presas, obrigadas a cuidar da roça, da alimentação, dos filhos.
Hoje nós, mulheres, conseguimos abranger outras áreas. Eu tenho como
um grande exemplo a minha cacique Arian Pataxó, que fundou a Aldeia
Dois Irmãos e luta por melhorias para nossa Aldeia. Eu acho que tudo
isso é um grande avanço, pois antigamente não tínhamos este
olhar. Hoje somos mais valorizadas, pois sabemos nossos direitos...[4]”. Decisivamente isso trinca o vidro do patriarcado.
As mulheres companheiras combinaram
para voltarem antes do nascimento da criança de Iasawi. Só que após mais uma
desavença entre pai e filha que não suportara ver outra criança abandonada pela
sua comunidade, Iasawi passou mal e recebeu as fortes dores do parto antes do
previsto pelas parteiras.
E naquela noite, nasceu sua menina,
linda menina de seus olhos, num choro que rebentou a noite enluarada. No
carinho em sua cabecinha, a mãe pensava ainda em que nome dar para a pequena
quando os homens, incluindo seu pai, se aproximaram dela para levar a criança e
aplicar a lei do abandono.
“NÃOOOO! NÃOOOOO”.
Iasawi lutou bravamente com aqueles
homens, mesmo quase desfalecida do parto. Protegeu a criancinha. Segurou-a
forte, tão forte, tão forte para proteger sua menina que não viu que a tinha
sufocado.
O velho pajé desta vez não estava
impassível. Corriam-lhe os prantos. Porém, nada fez.
Todas as mulheres da aldeia cercaram os
homens. Pela primeira vez perceberam que elas eram maioria e sentiram a pressão
de um medo a lhes subir nas espinhas.
Iasawi num dos choros mais tristes que a
espécie humana já viu, caminhou tendo nos braços o pequenino corpo até as
palmeiras. Levantou o pequeno ser em direção aos ramos iluminados da lua cheia
e dançantes ao vento e gritou:
“Reviva ela! Reviva! REVIVAAAA!!!”.
Nenhum sinal. Só balançavam as
palmeiras.
Os homens se aproximaram para trazê-la
de volta. O velho cacique ordenou:
“Deixem. Deixem ela aí quieta. Para os
demais, voltemos!”.
As mulheres não puderam ficar. Foram
forçadas a sair. Ninguém dormiu. Nem as mulheres. Nem os jovens. Nem as
crianças crescidas. Nem o velho pai, soluçante em sua rede de um arrependimento
com gosto de fel na boca.
Todos olhavam em direção às palmeiras
onde no chão daquelas touceiras se abraçava Iasawi.
Quando amanheceu, a jovem mãe estava
morta. Todos da comunidade sentiram que o céu pesou em cores sepulcrais. Ao
verificarem a mão de Iasawi, foram encontrados frutos daquela palmeira que defendia.
Feitas as cerimônias fúnebres, a aldeia
caminhou.
As mulheres cabisbaixas por tristeza,
mas sobretudo por estratégia, traziam em seus diversos sacos de tururis feitas
pela grande Iasawi muitos daqueles frutos preto-arroxeados. Iam jogando pelo
percurso, pois certamente, no círculo de moradas que faziam, quando voltassem,
talvez as palmeiras estivessem crescidas.
Quando o velho cacique morreu, um novo
líder foi escolhido, o jovem irmão da melhor amiga de Iasawi que sempre a
admirara. Na dor que presenciou e na saudade da amiga, aprendera a escutar com
bastante atenção e respeito as mulheres da sua comunidade. Certo dia, sua irmã
ofereceu-lhe uma surpresa numa cumbuca.
“Prova”.
“O que é isso??”.
“Prova, confia”.
O jovem cacique provou.
“Hummm, é bom. Foi tu que fizeste?”.
“Nós, mulheres. Nós amassamos na mão”.
“Como é o nome disso?”.
Não tinha pensado num nome. Um raio de
lembrança trouxe Iasawi. Pensou ao contrário.
“É... É... Iwasa’i”.
“Açaí???”.
“Isso. Açaí. Você pode comer com peixe e
farinha se tu quiseres”.
Desde então, Açaí tem alimentado e
nutrido gerações e gerações na Amazônia. O açaí oferece até hoje condições de
dignidade em algumas localidades do estuário amazônico[8].
A partir de agora, fico a sonhar com a
origem desde santo vinho, imaginar a luta e a clarividência de Iasawi (Iaçá).
Constato que, mais do que dinheiro, açaí
é cuidado.
Concluo que, mais do que negócios
comerciais, açaí é uma relação.
E filho destas paragens, deste carinho
todo que me nutriu, e de uma mulher cuja imagem bem poderia ser a de Iasawi, eu testemunho:
Açaí é uma mãe-planta que
lidera.
Belém, dias de luta e de aprendizado, 13
de junho de 2020.
Pantoja Ramos.
[1] Ensaio
elaborado para descrever a importância do açaí para enfrentar a fome no
estuário do rio Amazonas e confrontar o processo de invisibilização social que
muitas mulheres sofrem.
[2] Lugar
de Fala é o conceito construído por Djamila Ribeiro onde temas que envolvem
crimes humanitários como racismo e misoginia, por exemplo, devem ser amplamente
debatidos pela sociedade, entendendo-se os grupos diretamente afetados,
indiretamente afetados ou mesmo não afetados falarão de lugares distintos.
Ribeiro, D. O que é Lugar de Fala? (Ribeiro, 2017). Por isso,
o que escrevo desde então é limitado por ser indiretamente ou muitas vezes não
afetado. Minha intenção é iniciar a discussão, sobretudo para os homens que
queiram juntamente comigo aprender com as mulheres e ajudar a melhorar o mundo
em que vivemos.