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domingo, 20 de dezembro de 2020

SUBSERVIÊNCIA, A QUE OU A QUEM SERVE? Por Manoel Tourinho

 

Decreta-se que nada será obrigado nem proibido. Tudo será permitido, sobretudo brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela (Tiago de Melo em Estatutos do Homem).

 

 

O gesto do Reitor em atentar contra a consulta popular para a formação da lista tríplice, substituindo-a por eleições indiretas, ao melhor estilo do período do Brasil obscurantista, é sintoma do desconhecimento da história de luta libertária travada no Brasil em defesa do ensino público; da mesma forma que desconhece que, na ditadura militar, o paraense secundarista Edson Luís foi assassinado pelos militares na esplanada do Calabouço no Rio de Janeiro, exatamente porque estava participando de movimentos estudantis em defesa da democracia e da liberdade. O Calabouço ou ‘Calaba’ era um dos espaços de resistência contra a ditadura. A UNE era outro espaço, logo invadida, destruída e fechada. Isto, em 1968. O Ato-Institucional n0 5 foi um golpe mortal na democracia e na liberdade da Nação. Nos anos antecedentes ao golpe de 1964, uma das bandeiras do movimento estudantil superior sob o comando da UNE, era a participação dos estudantes nos colegiados das IFES. Inicialmente conseguiu-se uma voz, a do Presidente do Diretório Central dos Estudantes das IFES. Era o início da luta, que reverberou no movimento para conseguir 1/3 dos votos nos colegiados gestores, principalmente nas denominadas Congregações. A então Escola de Agronomia da Amazônia (EAA), esteve fortemente engajada nessa luta, mas, também, contra os movimentos de encampação acionados pela Universidade Federal do Pará. Foram muitas as vezes que estivemos à frente do prédio da Reitoria da UFPA, na antiga São Jerônimo, hoje Gov. José Malcher, gritando contra o autoritarismo da proposta. Vencemos! Mas sem luta não venceríamos. “A luta é a ultima razão do Ser”, nos ensinam os escritos do velho Mouro. Escola de Agronomia, FCAP e UFRA, representam trajetórias de luta democrática, nunca de subserviência irrefutável diante do mando autoritário. Lutas que trouxeram à liça, lideranças de jovens alunas de um ensino então dominado por um machismo exacerbado. Algumas dessas lideranças ainda caminham no nosso campus, a exemplo da Profa. Adélia Benedita Coelho de Souza. Nunca houve recuo; ao contrário, sempre se avançou. O mais notável desses avanços foi a criação da UFRA, na via da trajetória histórica, assegurando a indivisibilidade e perpetuação da luta, assegurando a participação democrática e popular através de instrumentos como a Estatuinte Universitária, o Conselho Consultivo Externo e o Planejamento Estratégico. Mas todos esses instrumentos não teriam sido concebidos se a obediência cega aos ditames do poder central em Brasília tivesse ocorrido, porque o nascimento da UFRA aconteceu, ainda que na contramão dos sentimentos privatistas dominantes na agenda do então Ministro da Educação.

 

Senhor Reitor, inscreva o seu nome entre aqueles que enfrentam o poder, irrefutavelmente, por uma boa causa. Retire sua mensagem imoral enviada ao Consun; lute pela liberdade e pelas causas democráticas. Esteja certo de que as dores que essa atitude poderá trazer-lhe serão bem menores do que obscurecer-se, sujando-se como um homem sem coragem, acovardado, subserviente e bajulador do poder.

 

Manoel Tourinho,

Ex-Reitor e Professor Emérito da UFRA.

 

 

 

  

 

 

 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Sim, fui teimoso. E por que não seria?



Não foi uma defesa fácil. Eram três contra um naquela banca de mestrado no ano 2000. Minhas ideias confrontando com o saudoso Professor Fernando Jardim. Professor Marcelo permanecia tranquilo. Professor Yared só observava. O ponto mais crítico do debate foi a discordância que tínhamos sobre o fato de eu ter separado uma área de floresta secundária e estudá-la com mais detalhe para poder compará-la com a floresta nativa. Jardim dizia que eu deveria ter usado a média do inventário geral em minha dissertação (http://repositorio.ufra.edu.br/jspui/handle/123456789/1088) . Mas como? Como eu saberia dos diferentes potenciais de fornecimento de produtos florestais se não colocasse na balança uma mata em recuperação e uma mata pouco antropizada em suas quantidades de óleo de andiroba, ou de cascas, ou de metros cúbicos de madeira ou de frutas? Fui teimoso e acabei soltando uma frase arrogante, infeliz, que me martela de vez em quando: "Professor Jardim, eu não irei te convencer, o senhor com todo respeito não vai me convencer, isso talvez seja trabalho de uma terceira pessoa no futuro". 

Nossa! Eu achava-me o último caroço do cacho de açaí aos 25 anos.

E quase não fui aprovado. Yared pensava que eu não deveria. Entendia que eu queria saber mais que a banca de doutores, que fui desrespeitoso e por tal não merecia a aprovação. Eu não queria saber mais que eles, juro, só que estava ali para defender minha hipótese como um pai zeloso a proteger um filho ou filha da tempestade. Não tinha a intenção de desrespeitá-los. Minha teimosia ganha força quando os argumentos possuem lacunas, o que perturba-me, incomoda a me franzir a testa e assim espero que alguém mostre onde está tapada a vista do meu raciocínio pra eu retroceda. Naquela banca, eles não mostraram onde eu estava equivocado metodologicamente. 

Fui aprovado porque o Professor Jardim assim o quis e bateu o pé: "o Carlos é assim mesmo e eu prefiro que ele seja assim".  Deu-me uma nota ótima na defesa. Cumpri o que ele, professor Tourinho e professora Rosângela desejavam, o argumento contra o argumento sem ceder às conveniências. Foi uma defesa difícil, já disse isso? Já né?

Foi angustiante. Perdi o nobre amigo Paulo Jorge Dantas, o Cebolinha, amigo meu, amigo de Alírio, amigo da Laura, amigo de Aires, amigão de Samuel Almeida e da Ruth. Amigo de todos. Foi embora deste plano por conta de um motorista imprudente. Cerca de dois meses antes da tragédia, recebi a lascada tarefa como coordenador dos estudantes de mestrado em avisar-lhe que tinha sido jubilado do curso de mestrado e que perderia a sua bolsa, parco recurso que muito o ajudava a cuidar da família. Semanas antes de sua partida, avisou-me naquela viagem do Cidade Nova VI que uma entrevista de emprego o aguardava para um cargo em uma organização não governamental. 

"Mano, que massa!", concluímos tranquilos.

E numa sexta-feira fez a entrevista. E numa sexta foi aprovado. E na segunda-feira assumiria a função. E no sábado partiu pra tristeza de tantos.

Enquanto isso, amigos meus tentavam terminar o mestrado e pela rigidez do processo, abandonaram no fim do percurso. Estresse no limite. 

E para um outro que batalhou muito matematicamente, que lutou noites inteiras e era brilhante, foi-lhe simplesmente dirigido na defesa: "isso não é uma dissertação, aparenta somente ser um relatório técnico". Cara, o rapaz se esmerou pra caramba! Não achei justo. Aliás, eu percebia o sofrimento.

Estávamos sofridos. Ninguém perguntava como nos sentíamos.

Após defender minha dissertação, informaram-me que eu teria que entregar um artigo obrigatoriamente aprovado em uma revista cientifica. 

"Mas por que?". 

"Está na norma, não sabias?".

"Confesso que não. Mas eu defendi a dissertação? Isso não conta pra receber o diploma?".

"Não".

"Não concordo". E fui-me embora. 

"Olhem só o turrão! Não aceita as coisas, rapá? É assim mesmo o sistema! Até parece que tu vais mudar o mundo... Sozinho? Uma andorinha só não faz verão. Aceita quié!".

Não aceitei.

Hoje, 20 anos depois, recebi o diploma. Algo que para minha esposa Neri é muito importante. Para minha filha Sabrina é importante. Para minha filha Bianca é importante, para Jucinha, para Dona Lene, para o mestre Tourinho, para Tarcísio, para Nilza, para Fernanda Mendes, Pollyanna, César, Alynne, Eliana, meus amigos, minhas amigas, ex-colegas de mestrado, meus irmãos, minha mãe, meu pai, para meu amigo Cebolinha. Que gentilmente apontou sua vaga em aberto para que eu trabalhasse na ONG FASE por 9 anos, cuja notícia chegou-me do grande Paulo Oliveira em surpresa:

"Tu sabias que iria trabalhar aqui o Cebolinha? Conhecias?".

"Sim... conhecia...".

Quer saber? Não entrego esse artigo, vou cair no mundo de Gurupá e depois do Marajó e aprender com as comunidades da floresta!

Não quero saber de academia!


Mas aí... veio a juventude querer saber o que eu fazia. O que eu tinha feito. Perguntavam se eu tinha escrito algum livro. Uma jovem indagou se eu poderia ser o seu orientador?

Eu, orientador?

O que eu orientaria?

Será que eu oriento alguém?

E quando avistei o obscuro caminho que parte da sociedade brasileira passou a seguir, disse a mim mesmo:

"É... Tá na hora de voltar para ajudar os que surgem".

Ana Euler e Fernanda Antelo iniciaram meu treinamento de retomada, com calma, conversa e firmeza.


E aqui estou, senhor de minha teimosia que é pista de minha capacidade e resistência.





terça-feira, 24 de novembro de 2020

O Marajó e a Eleição de Vereadoras - 2020

Nas últimas eleições municipais, a sociedade do Marajó decidiu que apenas 23,3% das vagas de vereadores seriam ocupadas por mulheres. Este percentual é maior do o verificado em 2016, onde alcançou-se 15,5% das vagas. 

Apresentamos a tabela com este levantamento:



Melgaço permanece com o gravíssimo problema de não eleger mulheres para serem vereadoras há oito anos, ano-base em que começamos este monitoramento. Vale lembrar que Melgaço é ainda oficialmente o mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país segundo o Censo do IBGE de 2010 e a não presença de mulheres em espaço tão importante para a implementação de políticas públicas não auxilia Melgaço a melhorar seus indicadores sociais. 

Por duas eleições consecutivas, São Sebastião da Boa Vista também não elegeu mulheres para o legislativo municipal. Por outro lado, Santa Cruz do Arari conseguiu o percentual mínimo de paridade entre homens e mulheres na câmara. Aliás, vem numa crescente desde 2012.

O melhor resultado nas eleições para as mulheres ocorreu em Cachoeira do Arari, que escolhera 7 representantes das 11 vagas. Num mundo machista, é uma vitória formidável! 


Parabéns às mulheres eleitas no Marajó!




(*) Fonte: http://www.relatoriosdinamicos.com.br/portalodm/3-igualdade-entre-sexos-e-valorizacao-da-mulher/BRA001015129/soure---pa  

(**) Fonte: https://www.eleicoes2016.com.br/ 

(***) Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54907573




quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Sobre o primeiro CAR Coletivo no Pará



No dia 26 de outubro de 2020, o Governo do Estado do Pará anunciou em sua agência de notícias (Agência Pará): "Governo do Pará emite primeiro Cadastro Ambiental Rural coletivo para comunidade extrativista", em favor do Projeto de Assentamento Agroextrativista Alto Camarapi, em Portel-PA[1]". Sem dúvida é uma conquista daquelas famílias que ganham um documento essencial para garantir a regularidade ambiental e debater projetos socioeconômicos para esta região. Parabéns à associação que muito lutou por isso. Parabéns ao ITERPA. Parabéns à EMATER. Parabéns ao STTR de Portel.

Como tenho analisado a aplicação do Cadastro Ambiental Rural - CAR enquanto política pública desde 2011, acompanhando em campo as comunidades no debate deste instrumento, é necessário informar que os primeiros cadastros coletivos remontam de anos anteriores ao anunciado. Esta correção tem o intuito de não deixar invisível o trabalho do movimento social que tem muito se esforçado para assegurar o CAR como uma ferramenta de inclusão socioambiental. É uma resposta também à situação de deusdará em que há mais registros na Região Norte - 152,6 milhões de hectares - do que áreas cadastráveis - 93,7 milhões de hectares - segundo o próprio Serviço Florestal Brasileiro em seu boletim de novembro de 2019[2]. Quanto se cadastrou na intenção de grilar territórios dos povos da floresta?

Apresento alguns exemplos deste pioneirismo a partir da mobilização da sociedade do campo no Estado do Pará que exigiram das autoridades o cadastro coletivo em respeito à lei e aos direitos territoriais das comunidades agroextrativistas. A seguir informo que:

O Car Coletivo de Repartimento dos Pilões em Almeirim (Recibo PA-1500503-6C39FD907D1641B5ADF7EE1DA2C978CD), existe desde 4 de maio de 2016, onde a associação comunitária ASMIPPS não permitiu que o governo estadual e uma empresa terceirizada decidissem por eles a área do território[3];

- O CAR da Gleba Acuti-pereira em Portel (recibo PA-1505809-0A024A16CF9342F3B9E79983C353AA67) existe desde 5 de maio de 2016, no esforço da Associação dos Moradores da Gleba Acuti-pereira e Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais daquele município;

- O Car Deus É Fiel (recibo PA-1505809-8C12.F63A.2283.4E2A.8769.DD80.B4D0.73EA) existe desde 28 de abril de 2017, também na luta do STTR de Portel e Associação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Agroextrativistas do Alto Pacajá.

 

Além disso, quero ressaltar o louvável trabalho dos técnicos do INCRA que desde 2015 têm registrado o CAR Coletivo de Assentamentos Agroextrativistas Federais do Marajó, com a Relação de Beneficiários inserida no Sistema CAR do Pará.


Principalmente informo que o CAR Coletivo da Comunidade Jaranduba (recibo PA-1502509-768966B61A2644698CE920F874AB48EA) foi registrado em 28 de novembro de 2019, num esforço conjunto entre o STTR de Chaves, Fetagri e Semas para lançar o primeiro CAR Coletivo no módulo Povos e Comunidades Tradicionais (PCT)

 

A abertura de módulo PCT somente em 2019 - lembrando que o CAR é dispositivo do código florestal de 2012 e previa a adequação deste aos Povos da Floresta - foi resultado da pressão do Ministério Público Estadual e de organizações da sociedade civil como Malungu, Fetagri e sindicatos afiliados, Grupo Carta de Belém, ONG FASE, Universidade Federal do Pará, Comissão Pastoral da Terra e diversas outras instituições para que o CAR Coletivo fosse reconhecido como um direito.

 

Este resumo é para provocar estudos futuros sobre o tema. De minha parte, sigo na tarefa de estudar outros territórios que conseguiram registrar seu território no sistema CAR.

 

 

Soberania da Comunicação é não deixar que te façam invisível, sem voz e sem memória.

 

 



domingo, 25 de outubro de 2020

Amnésia da Paisagem



Belém, do meu escritório, 25 de outubro de 2020.


Tu sabes o que é Amnésia da Paisagem

Sabes aquele igarapé que foi aterrado pra virar estrada? Ou aquela sumaumeira que foi tombada para virar condomínio? Tu não lembras? Ahh, não é do vosso tempo jovem? Mas seu Leonam, vizinho meu aqui do bairro da Marambaia, antes de deixar este plano, contava que existiam vários igarapés, lagos e olhos d´água no bairro. Não acreditas? Pois eu acredito dada a existência da mata da Marinha com seu fragmento de biodiversidade no meio de Belém do Pará. Lá dentro, seguem os humildes córregos, refugiados agora.

Pois então. Imagina que o rio Xingu foi livre, leve e solto até a construção da hidrelétrica de Belo Monte. Aquele que mora em Altamira mantém ainda na memória o rio vibrante para homens e mulheres viverem de pescado, milagres silenciosos e rotineiros. Uma cidade pacata ela fora sem os tumultos deste cotidiano trazidos pela indústria do cimento e do vergalhão e sem a violência trazida como colateral e previsível. Aquela quietude de outrora e todo ar bucólico a cada dia, a cada ano, se desfazem como uma peça de roupa abandonada ao relento. Você não percebe de cara, mas estão a se desfazer implacavelmente.  

Lembras de quando não comprava-se água? Eu recordo disso. E lembrar dessa gratuidade é sinal de resistência. Resistência aos donos da Coca-Cola que desejam transformar o pagamento da água em todo planeta uma ordem. O cúmulo e o acúmulo que marcam a face do capitalismo.

Ahhh, lá vem você falar de capitalismo!! Tão chato! 

Sim, é chato. Preciso ser. Para te fazer forçar a mente de exemplos como a da comunidade Cafezal assim denominada porque a agroecologia de décadas atrás fizera famosa esta localidade e que este proceder comunal perdeu-se com o tempo para se comprar o café industrializado. Que ironia. Já pensou? Estou tomando um tinto na comunidade Cafezal de um pacote comprado no supermercado da cidade... Ananindeua tem muita árvore de anani? De onde vem o nome Afuá? 

Minha infância rememora uma Portel em que o açaí se amassava na mão e era de todos. O açaí ainda é do povo? Ahh, desculpe se me enganei. Que bom que está ainda, né? 

Lembras do Igarapé das Almas? Não? O pessoal de Ponta de Pedras chegava nos seus barcos e aportava dentro de Belém. Eu não testemunhei isso. Seu Bruno, de oitenta anos, me disse. Imaginem a paisagem. Não imaginam? Não viste? Ahh, o cavalheiro era dessa época e nem desenhava mais essa visão na mente? Sabia que o livro Bagaceira de Dalcídio Jurandir foi escrito no município de Gurupá pra falar da vida e de paisagens como as do rio Baquiá? Quem é esse tal de Dalcídio?

Hummm, Amnésia da Paisagem...

E me deparo triste ao escrever essas linhas. Não irei mentir, cai uma lágrima. O sol que todo dia a partir das seis da manhã despontava no meu escritório a espreguiçar meus livros e que me banhava com seus raios de luz na parte esquerda do rosto quando aqui me sentava para aguardar o computador ligar não vem mais.  Hoje, demoliu-se minha troca de olhares com o alvorecer pelo soerguimento da casa do vizinho em dois andares que cobre deste momento em diante o raiar do dia no meu canto de trabalho. Não culpo o vizinho. Todos têm o direito de melhorar materialmente. A culpa é minha de ser tão abeliano.

Por tal, pintei essa crônica como autoajuda. Para auxiliar minha memória que a vida do mundo despontava luminosa bem próximo à oficina coberta em que talho as ideias. 

Resistir ao esquecimento é necessário ao espírito.

Vista sua Memória e lute.









quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Sapateado de catita

 

Belém, 22 de outubro de 2020.

 

Seu Carlos, eu não sou maior que o mundo

Nem igual

Nem menor.

 

Só sei que sou parte da Vida

Parte da Natureza

Nascido de uma sumaumeira

Lá das bandas de Portel

Atento quando Larissa fala.

Quando Ana fala.

Quando Fernanda questiona.

Quando Neri alerta.

 

De que preço fazem agora da mata?

Um tal crédito de carbono

Eu desacredito, pois, percebo a mão

A mão não mais invisível do mercado

Olha lá! Ispia! É ela que que carrega a foice da morte!

É, Delfim Netto, o banqueiro sempre volta ao local do crime.

 

Agora a mão se disfarça de proteção

Que bonitinha.. Toda protetora...

De um lado pressiona minha garganta

pelo produtivo que preda sem se arrepender da fumaça

Do outro deixa-me pobre pelo financeiro que especula

Quanto desinteresse... quão salvadores...

 

Repare os novos Pizarros

A ofertar e-espelhos para os nativos

Você não aprendeu ainda?

Você permanece ingênuo?

Tu vais ficar só em Home Office?

 

Não serei remotamente controlado

Não quero esse extrativismo 600 anos

Nem esse cinismo de lasCAR

Não desejo a tal Bioeconomia que não é social e sim S/A

Não quero esse drone a me ameaçar dentro do meu quintal

Dendê é palmada

Eucalipto me esteriliza

REDD me tira o sono da rede

- Você vai ouvir o conselho da liderança comunitária pedindo prudência?

Cuidado lá...

 

Escute a persistência

Escuta a paciência

Ouça a resistência

 

Tua simultaneidade

Velocidade

Globalidade

De nada servirá

Se te tirarem a natureza

O beija-flor

As folhas do chão

 

Lembre-se: o sequestro é do carbono

Não da Amazônia...

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Sobre a Bioeconomia... Melhor dizendo: Biosocioeconomia



Como estudioso e mobilizador social do SISTEMA DE VALOR DO AÇAÍ no estuário amazônico, entendo ser esta palmeira uma promotora do cuidado coletivo entre os humanos que dela dependem, pois antes de tudo, alimenta, é comida. Seria o Açaí Socialista? 

Por conta dessa palma e respeitando os diversos lugares de fala, entendo por nascer e lutar por uma região várias vezes explorada pelo capital de maneira insana (faria de outra forma?), não tenho como não teimar na crítica sobre a chamada Bioeconomia. No mínimo deveria se chamar BIOSOCIOECONOMIA, até em respeito à Sociobiodiversidade. 

Bioeconomia é terminologia que já nasce capenga... Percebem?

É bom lembrar que as palavras têm força...

Por isso, prefiro seguir o Bem-Viver. E no caso do Marajó, da Boa-Vida, como assim me disse Edel Moraes.

Ou o Sossego.

Uma vida sossegada... Jiboiando numa rede... olhando o vento passar... sem patrão que seja.





segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Marajó: Vacinômetro

 Caríssimas e Caríssimos,

 

Espero que esta simples sistematização alerte ou mantenha em alerta sobre os cuidados com a saúde das pessoas em relação à imunização. Importante informar que em 2019, segundo o Ministério da Saúde, pela primeira vez desde 1994, o Brasil não atingiu a meta de vacinar 95% em nenhuma das vacinas do seu calendário público de atendimento[1].

Apresento os últimos percentuais sobre as metas estabelecidas de vacinação contra a Influenza, Polio e Sarampo no Marajó.

Fonte: DataSus[2]

 

Fonte: DataSus[3]

 

Fonte DataSus3

 

“Um cientista que também é um ser humano não deve descansar enquanto o conhecimento que pode reduzir o sofrimento repousa em uma estante”.

Albert Sabin, criador da vacina em gotas

nos anos 1960 para enfrentamento da Poliomielite,

adaptando a vacina criada por Jonas Salk

 contra essa terrível doença que acometia

milhões de crianças no mundo até então[4].





Pantoja Ramos.










 


sábado, 22 de agosto de 2020

Crônicas, Passageiro: A Corda

 Belém, 22 de agosto de 2020.


Se eu não me engano, isso aconteceu em 1995.

Sinal que a memória anda já catando aqui e ali os pedaços do que foi vivido. Mas assim descrevo: estava na Estação Ferreira Pena, na Floresta Nacional de Caxiuanã em curso de férias promovido pela FCAP, hoje UFRA (anos depois um e-mail para Brasília exigiria que eu não entrasse nesta Unidade de Conservação, mas isso é outra história).

Eram tempos em que eu comia muito e dormia na mesma quantidade.

E não é que na Estação Ferreira Pena, apesar de toda estrutura inaugurada pelo príncipe Charles, não tinha escápula para atar as redes? Que engenheiros foram esses? Pra montar a baladeira, era preciso ter uma corda de pelo menos uns 3 metros pra dar a volta lá no alto, na tesoura do centro. 

Lascou. 

Minha corda era "gita". 

"Caramba, vou ter que dormir no chão", pensei. As camas da estação estavam reservadas apenas para os pesquisadores e um ex-calouro como eu dificilmente iria conseguir esse luxo.  Fiquei zanzando com a rede e a corda na mão.

Um pesquisador dormia na rede. Era um estadunidense que fazia intercâmbio e sua rede com um mosquiteiro estranho deixava à mostra uma corda imensa, mais de sete metros eu calculo, a ponto de enrolar-se no chão. 

"Cara, tanta corda, e eu aqui andando doido pra dormir... Vou torar um pedaço da corda desse gringo".

Fui procurar uma faca na cozinha.

Mexe. Mexe. Mexe.

"Não tem faca aqui... ahhhh, achei essa peixeira! Deve servir".


E naquela 1 hora da manhã, com todos já dormindo, me aproximei da vítima. Cortaria a corda do gringo e amarraria minha rede no outro lado do salão.

Fui sorrateiro como uma osga (até aparentava de tão magro que eu era).

O homem dormia, roncava em inglês.

Comecei a cortar.

Corta. Corta. Corta.

"Vamo, faca!".

Os olhos do gringo se abrem e deparam-se com minha peixeira empunhada.

"HELP!!!!!!!! HELP!!!!!!!!", gritou o infeliz.

Eu disse, "Não, não, eu só quero um pedaço de corda" e gesticulei esticando o braço direito e tocando na altura deste braço com o dedo de minha mão esquerda. Tenta fazer aí, leitor.

Aí é que o senhor gritou:

"HELLLLPPP".

Obviamente todos acordaram.

Uma confusão danada.

"Eu só queria roubar um pedaço da corda dele...".

Resultado: arrumaram-me uma cama. 

Dormi como o anjo que sou.

Fiquei ainda mais 3 dias em Caxiuanã.

O pesquisador estrangeiro? 

Continuou também por lá na estação. 

Quando me enxergava, se esgueirava pelas paredes.

Será que ele lembra de mim?







sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Ei Balsa! Volta Aqui! - Portel Madeireiro 2018

 Caríssimos e Caríssimas,


Este Blog traz a atualização da movimentação de volume de madeira em toras e receita gerada por esta atividade no município de Portel, no Marajó. Os valores remetem ao ano de 2018, segundo dados do IBGE/PEVS (Produção da Extração Vegetal e da Silvicultura - ver página na internet).

Assim, movimentou-se em 2018 o volume de 995.000 metros cúbicos de madeira em tora, 5 mil metros cúbicos a mais do que em 2017.


A comercialização de madeira em tora gerou a movimentação financeira em 2018 de R$223.875.000,00 (duzentos e vinte e três milhões, oitocentos e setenta e cinco mil reais) de acordo com o IBGE, cerca de 6 milhões de reais a mais em comparação a 2017.



A razão entre o valor de receita total movimentado e o volume de madeira oficialmente comercializado apresenta valor médio de R$225,00/metro cúbico de madeira em tora.


O valor de receita total em madeira em tora somada no período 2010-2018 é 2 vezes maior que o repasse do governo federal ao município de Portel no mesmo período.



O Imposto Sobre Serviços (ISS) da circulação de balsas que trafegam na região transportando madeira, cuja tributação é de 1% a 5% do valor da nota fiscal, poderia gerar em 2018 um valor em arrecadação estimado entre R$2.238.750,00 (dois milhões, duzentos e trinta e oito mil reais, setecentos e cinquenta reais) e R$11.193.750,00 (onze milhões, cento e noventa e três mil, setecentos e cinquenta reais).


Ei Balsa! Ei Balsa! Volta aqui!
Que levas?
Que levas daqui?



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Fonte das informações:
- Sobre a movimentação de madeira em Portel: IBGE/PEVS 2018
- Sobre os repasses federais ao município de Portel: Portal da Transparência




segunda-feira, 20 de julho de 2020

Nosso Suprimo Vemelho




Hoje Erivelton Miranda partiu na vazante de tudo que é físico.

E eu queria falar um pouco do meu amigo de tantas lutas. Só um pouco de sua grandeza.

Para isso, porém, eu preciso falar de Afuá. Lugar interessante, com um terço de sua área coberto por uma baía, o Canal do Vieira. Com 95% de suas terras habitáveis conquistando Reforma Agrária, resultado da luta dos trabalhadores e trabalhadoras rurais e de seu sindicato. Esta segurança transformou o açaí afuaense em uma potência no Marajó, aliás, potência no Estuário do Maior Rio do Mundo.

Afuá é um mundo.

Um mundo onde mulheres e homens de boa vontade se vestiram de vermelho. E Erivelton foi um dos Grandes de sua geração.

Pouco se exaltava. Nem me lembro se isso aconteceu pois tinha que cuidar do coração. Um coração flamenguista que me fazia sempre pedir na encarnação nossa pra ele trocar o toque do telefone do Hino do Flamengo para Hino do Vasco.

"Não, suprimo, deixa como tá". E ria.

Um batalhador de fala calma.

Que passava o recado bem dado.

Tentou ser prefeito. Não conseguiu.

Como assim não conseguiu??!

E as Ilhas à Esquerda do Canal do Vieira?

Para mim, havia uma outra prefeitura: o sindicato. E durante anos, Eri foi o líder dessa outra gestão, de cuidados com as pessoas dos rios, dos igarapés e das florestas.

E quando as dores finais vieram implacáveis, é na História que devemos pensar como o bálsamo para nosso suprimo de camisa vermelha.

E assim quando os anjos fizerem aquela pergunta decisiva:

- Serviste mais aos pobres explorados ou aos ricos exploradores?

Jesus e Maria sorrirão contentes por sua chegada.

Enquanto isso aqui na terra, pode ter certeza mano, a gente falará às novas gerações por ti.

Esteja em Paz.









domingo, 19 de julho de 2020

Iwasa’i




Iwasa’i[1]

“Nós não somos guardiãs da natureza, somos a natureza”.

Sonia Guajajara.


Certo dia li a lenda de Iaçá e do Açaí, muito conhecida entre os marajoaras como eu. Mas sei lá, um inconformismo bateu forte. Senti a necessidade de pensar num outro lado para esta história. Sei que irei muitas vezes errar, mas é preciso que eu tente.

Então começo com uma primeira frase que aponte o caminho de mudança na minha mente: e assim Iasawi deixou-se morrer para renascer mais forte.

Não tenho o lugar de fala de Iasawi nem de todas as mulheres e mães aqui envolvidas. Nunca saberia expor, nem tenho a legitimidade de seus clamores. Por isso, só posso escrever a partir do meu lugar de fala[2] de filho, daquele que se nutriu de sua luta, de sua força, coragem e entendimento sobre o valor da vida. Neste conflito que passo, acabo por intercalar parágrafos para demonstrar que algo está se novamente se transformando dentro mim, eu, criado nos anos 1970 e 1980 para continuar o machismo.

Nesta versão da lenda de Iaçá, inicio na imaginação com nossa protagonista posicionada como na parábola platônica da caverna. Estava Iasawi na frente de sua comunidade a defender algo incompreensível para os demais: sim, era possível sair da situação difícil de carestia em que se encontravam. Iasawi dera as opções, argumentara, fizera as contas. Era necessário um outro estilo de vida da qual tinham se habituado há muitas gerações. Os homens da aldeia, que até então decidiam as questões torciam os narizes, alguns até cuspiam de lado pelo fato de Iasawi, uma mulher, lhes dirigir uma proposta. Tinham aprendido com a igreja que esta deveria ser a relação entre mulheres e homens.

Eu, criança, não entendia sobre aqueles atos. Eu adulto, com a vontade de aprender, fico atento ao que diz Vandana Shiva: “... a convergência do que eu chamo capitalismo e patriarcado está destruindo o planeta. Unindo a enorme violência contra as mulheres, inclusive feminicídios, e a violência contra todos os seres, crianças, idosos, que estão morrendo... Cientistas produzem constantemente estudos que falam da extinção das espécies, das mudanças climáticas, da desertificação e falta de água. O que temos neste século, em que os agrotóxicos estão presentes, é ecocídio e genocídio... Eles têm essa ideia de que matando todos vão ser vencedores, enquanto todos os demais serão perdedores. Assim, vamos estar extintos como espécie humana no próximo século. Por isso, é melhor terminar com o patriarcado antes que ele termine com a vida...[3]”.

Ao ler o relato de Wilma Yãnami Karapotó Plaki-ô, ouvi sua voz dizer que "... a igreja quebrou a parceria índia – índio. A dependência da mulher do marido foi uma ruptura trazida pela igreja. Na sociedade colonial e na capitalista, a figura masculina é o centro do mundo: o homem dominador de tudo na natureza. Após muitos séculos de dominação, a mulher ficou dependente do homem. A mulher indígena, hoje, está reconquistando seu espaço. Estamos acompanhando as mudanças do mundo. Nós, mulheres, estamos estudando nas universidades e exercendo as mesmas profissões que os homens. Perante a lei, todos são iguais tanto homem como mulher; tanto indígena como não indígena..." [4].

Eram tempos difíceis para conseguir comida na tribo de Iasawi, os animais tinham desaparecido, a paca, a cutia, o matrinchã, o aracu, o pirarucu, a onça, o inambu, a harpia. A ação de caçar era forte hábito, base da alimentação de comunidade. Os homens saiam todos os dias pra caçar. Quanto mais caça, mais fama e subida na hierarquia local. Mesmo que não precisassem, matavam para salgar e dependurar nas enviras e cipós para ostentar os animais abatidos.

Algumas mulheres da tribo não concordavam com tais costumes de caça desenfreada, mas não expressavam opinião para confrontar a situação. Iasawi, filha do cacique, por outro lado, questionava tais práticas abertamente. Não por ser filha de quem era, mas porque percebia que o jeito como se tratava a natureza ainda iria lhes trazer um grande infortúnio. O que aconteceu tempo depois, como previra.

Daí verifiquei, por meio dos estudos de Ana Euler, Ana Faulhaber e Camila Moreira, o quanto tem sido centenária a dificuldade das vozes políticas da mulher indígena serem escutadas no país.  Segundo as referidas autoras, “o movimento indígena teve uma conquista histórica com a posse, em 2019, da primeira mulher indígena eleita Deputada Federal no Brasil, a advogada Joênia Wapichana, pelo estado de Roraima. Ainda no processo eleitoral de 2018, tivemos a primeira indígena candidata a vice-presidência da república, Sra. Sônia Guajajara...”[5].

Quando a fome chegou aos parentes de Iasawi e fez as primeiras vítimas, esta tentou convidar a todos para uma assembleia e explicar que haveria uma planta que poderia mitigar os famélicos efeitos da carestia pela carne de animais agora praticamente extintos na região por causa do excesso de caçadas. Uma grande seca, talvez a mais grave daquela geração também assolara aquelas plagas, maltratando de vez os poucos animais que circulavam.  Ela apontava para uma palmeira magra de frutinhos de cores mistas do roxo ao preto, irmanadas de vários estipes a pousar vários pássaros, principalmente periquitos.

“É venenoso!”, disse o velho cacique.

“Como o senhor meu pai sabe?”, indagava a filha.

“Meu pai me disse que ouvira de seu pai, que por sua vez ouviu de seu pai”.

“Se é venenoso, porque os periquitos não morrem?”.

“Periquitos não são como nós”.

“Nunca ninguém tentou comer os frutinhos?”.

“Algumas mulheres tentaram e passaram mal”.

“O que elas sentiram?”, insistiu a curiosa Iasawi.

“Coisas de mulher”.

“Que coisas?”.

“Não sei”.

“Não sabes?”.

O pai já impaciente olhou com severidade e por um milésimo de segundo seu olhar chegou até à varinha de cuieira metros adiante. Iasawi, entendendo o gesto, achou melhor recuar, mas não sem resistir:

“É, o senhor não sabe”.


Fiquei a pensar na situação. Qual o valor daquela palmeira para enfrentar a fome? O que a tribo de Iasawi estava perdendo? Fui pesquisar. Achei a explicação da nutricionista Raisa Lima em entrevista ao sítio de notícias Em Tempo: “... O Açaí roxo é rico em vitaminas C, E e as do complexo B, fortalecendo o nosso sistema imunológico e prevenindo o envelhecimento precoce. Além disso, é fonte de fibras, ajudando a regular o intestino e a combater a prisão de ventre... o açaí possui também grande quantidade de cálcio, o que facilita o ciclo menstrual das mulheres, além de fazer bem para o coração...[6]”. Aprendi quando infanto-adolescente que algo que faz bem para o coração se usa o termo cordial

O açaí é cordial. Junta gente. Alimenta as pessoas. 

O brasileiro, senhor Sérgio Buarque de Holanda, o brasileiro não é.

Na tribo de Iasawi, sempre que o período da extrema carestia se instalava, se aplicava uma terrível lei entre os parentes: o abandono dos mais fracos. Uma lei criada há muito tempo, decidida pelos homens, sempre alvo dos protestos das mulheres, sempre subjugadas e não raras vezes abandonadas junto com seus entes. Uma dura lei, não consensual, porém executada pelos masculinos. E naquele ano, os machos mais velhos exigiram a lei do abandono quando a escassez chegou. Houveram gritos de desespero e dor. Iasawi protestava, brigava com os homens, batia neles, mas sozinha e sem a ajuda das outras mulheres, sempre sucumbia quase desmaiada de indignação. O velho cacique, impávido, apontava para o caminhar para o novo local, quem sabe um outro igarapé. O igarapé deixado para trás ficava cheio das lágrimas das mães sofridas por filhos e outros entes largados à própria sorte.

O abandono. Quando uma sociedade abandona suas crianças, estamos na mais baixa capacidade de manter a própria espécie humana. Henrietta Fore, diretora executiva do UNICEF, em 2020 alerta que “... Antes da crise de Covid-19, 32% das crianças em todo o mundo com sintomas de pneumonia não eram levadas a um profissional de saúde. O que acontecerá quando a Covid-19 atingir sua força total? Já estamos vendo interrupções nos serviços de imunização, ameaçando surtos de doenças para as quais já existe uma vacina, como poliomielite, sarampo e cólera. Muitos recém-nascidos, crianças, adolescentes, jovens e gestantes podem morrer por causas não relacionadas ao coronavírus se os sistemas nacionais de saúde, já sob grande tensão, ficarem completamente sobrecarregados. Da mesma forma, muitos programas de nutrição foram interrompidos ou estão suspensos, assim como os programas comunitários de detecção e tratamento precoces de crianças desnutridas. Precisamos agir agora para preservar e fortalecer os sistemas de saúde e alimentação em todos os países[7]...”.

Quando Iasawi engravidou, tentou o máximo esconder sua barriga despontando. Contudo, uma mulher  - que nunca gostara da filha do cacique e de sua criticidade - desconfiou da situação da jovem e a denunciou para os homens da tribo. O cacique incrédulo a princípio, em alguns meses se convenceu que Iasawi estava grávida e manteve sempre alguns rapazes a vigiá-la. Um deles era o pai do bebê no ventre da moça. Graças a esta condição de vigilância, Iasawi pode escolher onde passear e sempre frequentava as proximidades das palmeiras que davam aquele fruto preto-arroxeado. Observou atentamente os pássaros, os periquitos, os papagaios, os tucanos. Reparou nas abelhas pretinhas de manhã cedo, no sol, na chuva. Enquanto os dias passavam, tecia peças de tururi, lindas peças que embelezavam a grande oca. Ficava horas junto às palmeiras, observando, matutando, estudando. Nove fases de luas cheias se seguiram.

Nestes tempos, conversou muito com a maioria das mulheres de maneira reunida. Explicou suas teses em relação ao fruto. O quanto poderiam alimentar-se daqueles estipes.

“Mas como vamos pegá-los? Não temos os instrumentos dos homens para derrubar essas palmeiras?”, perguntou a mais velha do grupo.

“Não precisa”.

“Não??”.

Iasawi apresentou tururis tecidos uns sobre os outros a formar um círculo.

“Eu não posso subir porque estou esperando criança, mas você aí pode!”. Apontou o tururi trançado para a melhor amiga. A melhor amiga, ágil, também rápida de pensamento, encaixou a... a...

“Como é o nome disso, Iasawi?”, coçou a cabeça a amiga.

“Peko’in”.

“Peconha?”.

“Isso”.

A melhor amiga de Iasawi trançou a peconha nos pés, tentou a primeira, a segunda e na terceira vez escalou para o alto das estipes. Pegou um grande cacho, cujos frutos caiam nas cabeças das demais lá embaixo, arrancando risadas.

“E agora?”.

Olharam umas para as outras.

“Não sei. Bora roer”.

“Caramba, difícil de mastigar”.

“E se a gente colocar na água? Será que amolece??”.

Os homens chegaram.

“Rápido, esconde, esconde”.

Disfarçar suas habilidades conquistadas era para as mulheres locais algo corriqueiro. Elas não podiam mostrar sua capacidade de transformação. Aliás, sabendo um pouco da vida de Elionai Pataxó, melhor compreendo que nossa civilização é injusta e que uma mudança de Era é inevitável. Segundo Elionai, “Nós éramos oprimidas pelos homens. Nos sentíamos presas, obrigadas a cuidar da roça, da alimentação, dos filhos. Hoje nós, mulheres, conseguimos abranger outras áreas. Eu tenho como um grande exemplo a minha cacique Arian Pataxó, que fundou a Aldeia Dois Irmãos e luta por melhorias para nossa Aldeia. Eu acho que tudo isso é um grande avanço, pois antigamente não tínhamos este olhar. Hoje somos mais valorizadas, pois sabemos nossos direitos...[4]”. Decisivamente isso trinca o vidro do patriarcado.

As mulheres companheiras combinaram para voltarem antes do nascimento da criança de Iasawi. Só que após mais uma desavença entre pai e filha que não suportara ver outra criança abandonada pela sua comunidade, Iasawi passou mal e recebeu as fortes dores do parto antes do previsto pelas parteiras.

E naquela noite, nasceu sua menina, linda menina de seus olhos, num choro que rebentou a noite enluarada. No carinho em sua cabecinha, a mãe pensava ainda em que nome dar para a pequena quando os homens, incluindo seu pai, se aproximaram dela para levar a criança e aplicar a lei do abandono.  

“NÃOOOO! NÃOOOOO”.

Iasawi lutou bravamente com aqueles homens, mesmo quase desfalecida do parto. Protegeu a criancinha. Segurou-a forte, tão forte, tão forte para proteger sua menina que não viu que a tinha sufocado.

O velho pajé desta vez não estava impassível. Corriam-lhe os prantos. Porém, nada fez.

Todas as mulheres da aldeia cercaram os homens. Pela primeira vez perceberam que elas eram maioria e sentiram a pressão de um medo a lhes subir nas espinhas.

Iasawi num dos choros mais tristes que a espécie humana já viu, caminhou tendo nos braços o pequenino corpo até as palmeiras. Levantou o pequeno ser em direção aos ramos iluminados da lua cheia e dançantes ao vento e gritou:

“Reviva ela! Reviva! REVIVAAAA!!!”.

Nenhum sinal. Só balançavam as palmeiras.

Os homens se aproximaram para trazê-la de volta. O velho cacique ordenou:

“Deixem. Deixem ela aí quieta. Para os demais, voltemos!”.

As mulheres não puderam ficar. Foram forçadas a sair. Ninguém dormiu. Nem as mulheres. Nem os jovens. Nem as crianças crescidas. Nem o velho pai, soluçante em sua rede de um arrependimento com gosto de fel na boca.

Todos olhavam em direção às palmeiras onde no chão daquelas touceiras se abraçava Iasawi.

Quando amanheceu, a jovem mãe estava morta. Todos da comunidade sentiram que o céu pesou em cores sepulcrais. Ao verificarem a mão de Iasawi, foram encontrados frutos daquela palmeira que defendia.

Feitas as cerimônias fúnebres, a aldeia caminhou.

As mulheres cabisbaixas por tristeza, mas sobretudo por estratégia, traziam em seus diversos sacos de tururis feitas pela grande Iasawi muitos daqueles frutos preto-arroxeados. Iam jogando pelo percurso, pois certamente, no círculo de moradas que faziam, quando voltassem, talvez as palmeiras estivessem crescidas.

Quando o velho cacique morreu, um novo líder foi escolhido, o jovem irmão da melhor amiga de Iasawi que sempre a admirara. Na dor que presenciou e na saudade da amiga, aprendera a escutar com bastante atenção e respeito as mulheres da sua comunidade. Certo dia, sua irmã ofereceu-lhe uma surpresa numa cumbuca.

“Prova”.

“O que é isso??”.

“Prova, confia”.

O jovem cacique provou.

“Hummm, é bom. Foi tu que fizeste?”.

“Nós, mulheres. Nós amassamos na mão”.

“Como é o nome disso?”.

Não tinha pensado num nome. Um raio de lembrança trouxe Iasawi. Pensou ao contrário.

“É... É... Iwasa’i”.

“Açaí???”.

“Isso. Açaí. Você pode comer com peixe e farinha se tu quiseres”.


Desde então, Açaí tem alimentado e nutrido gerações e gerações na Amazônia. O açaí oferece até hoje condições de dignidade em algumas localidades do estuário amazônico[8].

A partir de agora, fico a sonhar com a origem desde santo vinho, imaginar a luta e a clarividência de Iasawi (Iaçá).

Constato que, mais do que dinheiro, açaí é cuidado.

Concluo que, mais do que negócios comerciais, açaí é uma relação.


E filho destas paragens, deste carinho todo que me nutriu, e de uma mulher cuja imagem bem poderia ser a de Iasawieu testemunho: 

Açaí é uma mãe-planta que lidera.    






Belém, dias de luta e de aprendizado, 13 de junho de 2020.

Pantoja Ramos.







[1] Ensaio elaborado para descrever a importância do açaí para enfrentar a fome no estuário do rio Amazonas e confrontar o processo de invisibilização social que muitas mulheres sofrem.
[2] Lugar de Fala é o conceito construído por Djamila Ribeiro onde temas que envolvem crimes humanitários como racismo e misoginia, por exemplo, devem ser amplamente debatidos pela sociedade, entendendo-se os grupos diretamente afetados, indiretamente afetados ou mesmo não afetados falarão de lugares distintos. Ribeiro, D. O que é Lugar de Fala? (Ribeiro, 2017). Por isso, o que escrevo desde então é limitado por ser indiretamente ou muitas vezes não afetado. Minha intenção é iniciar a discussão, sobretudo para os homens que queiram juntamente comigo aprender com as mulheres e ajudar a melhorar o mundo em que vivemos.
[3] Shiva, V. Vandana Shiva aposta no Ecofeminismo. 2018. Outras Palavras. https://outraspalavras.net/sem-categoria/vandana-shiva-aposta-no-ecofeminismo/. Acessado em 7 de junho de 2020.
[4] THIDÉWÁ. Pelas Mulheres Indígenas. 2015. Coleção Índios na Visão de Índios. Disponível em http://www.thydewa.org/wp-content/uploads/2015/03/pelas-mulheres-indigenas-web.pdf. Acessado em 13 de junho de 2020. 
[5] Euler, A.; Faulhaber, A.; Moreira, C. Mulheres À Frente: Caminhos para a Visibilidade da Agenda Indígena no Brasil. 2020. Columbia Women’s Leadership Network In Brazil. https://globalcenters.columbia.edu/sites/default/files/content/CWLN-2019.pdfAcessado em 7 de junho de 2020.
[6] Em Tempo. Saiba Mais Sobre o Açaí, o Superalimento da Amazônia. 2018. Disponível em https://d.emtempo.com.br/saude/103832/saiba-mais-sobre-o-acai-o-superalimento-da-amazonia. Acessado em 7 de junho de 2020.
[7] UNICEF. Não permitam que crianças sejam as vítimas ocultas da pandemia de Covid-19. Declaração de Henrietta Fore, diretora executiva da UNICEF. 2020. https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/nao-permitam-que-criancas-sejam-vitimas-ocultas-da-pandemia-de-covid-19. Acessado em 7 de junho de 2020.
[8] Ver o artigo de Ramos, C.A.P e Euler. A.M.C. Quarta baliza do agroextrativismo no estuário do rio Amazonas: da luta pela terra à consolidação da economia do açaí. 2019. Revista de Agricultura Familiar - RAF. v.13 , nº 2 / jul-dez 2019, ISSN 1414-0810. Disponível em https://periodicos.ufpa.br/index.php/agriculturafamiliar/article/view/8718. Acessado em 7 de junho de 2020.