terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Quando eu Lembrei do Futuro



Belém, 31 de dezembro de 2018.


Quando eu lembrei
Tu tinhas um futuro tão bom
Eu escolhia as flores
Que iriam para a tua janela
Florescerás eu sei

A terra seca
A lua nova
A escuridão
Do outro lado
Olha que vem o sol
O silêncio da cor
E como tu eras prisma
Agora o arco-íris
Pensei no arco e a íris

Meu amor fique aqui
Junto comigo
Vejamos os fogos no céu
Os aviões vem nos saudar
Ou nos deixar saudade

Quando eu lembrei
Tu tinhas um futuro doce
Eu escolhia as frutas
Que iriam para a tua mesa
Frutificarás eu sei

A rua deserta
A praça de poucos
O rio desconhecido
A folha que parou

Meu amor fique aqui
Junto comigo
Brotou um olho d´água
Carros vem tomar posse
Ou sentir a nossa sede

Quando eu lembrei
Tu tinhas um futuro calmo
Eu escolhia pra ti a paz
Que iria para o teu teto
Tu sonharás eu sei

O fato nas costas
O vizinho distante
A dor dos outros
A culpa que me chega

Quando eu lembrei
Tu tinhas um futuro amor
Eu escolhia pra ti a nuvem
Que iria para o teu recanto
De mim lembrarás eu sei


Pantoja Ramos


Publicado originalmente no Recanto das Letras



sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Fábula Azeda




Quibdó, 15 de dezembro de 2019.



Era uma vez uma jabota conhecida como Rabeta. Mal-humorada, avessa a amizades, quando respondia, era só na patada. Vivia no seu casco e deste lugar quase nunca saía. Praticamente achava-se que Rabeta não comia, tal era a sua discrição em comer as marias-mole e as goiabas-do-mato que se anunciavam ao seu redor. 

Rabeta tinha raiva do mundo.

Os animais em geral a viam perto do velho jambeiro, árvore que marcava que em certo tempo humanos moraram ali. O macaco-de-cheiro puxava conversa:

- Bom dia Dona Rabeta!

- Quem disse? - respondia lá de dentro do casco.


Cumprimentava o jacaré:

- Boa tarde Rabeta.

- Tu provas? Te sai.


Tentava ser gentil a onça:

- Quer prosear?

- Te sai. E não vem que meu casco é duro ou você já quer perder o outro dente?

- Ó jabota casca grossa - e partia a onça passando a língua no buraco do antes dente canino.

Em geral os bichos desistiam de conversar com Rabeta e desta maneira esta conseguia seu objetivo: ficar na sua, quieta, mastigando as folhinhas e a raiva que tinha do mundo. 


Ainda assim, havia a Nara, a ave Guará que todo dia a visitava.

- Olá Rabeta, tudo bem?

- "Tudo" e "bem" juntos não existe. Te sai.

- Credo, Rabeta, só quis dizer Bom dia.

- Não será.

- Tá, como estás?

- Mastigando.


E Nara assuntava e falava, falava, descambava a contar histórias sobre camarões que comeu, dos caranguejinhos que lhe escapavam, da fofoca e críticas por puro despeito às araras, "aquelas coloridas que se achavam"; dos tatus que erravam os buracos de suas casas.

Rabeta, lá dentro do casco, mastigava. Não dava trela.

Só que Nara não desistia de sua amizade.

- Rabeta, olha que eu trouxe pra você: é folha de jambu que eu roubei de uns humanos. Tá até com tucupi.

- Me treme o beiço. não quero.

- Rabeta, olha essa flor de tajá pra colocar por cima do teu casco.

- Vai chamar mamangá pra me ferrar. Não quero. Te sai.

- Rabeta, achei um jabuti bonitão pra ti.

- Pra comer minhas marias-moles? Tô dentro!

- Quer conhecer??

- Não. Tô dentro do meu casco! Te sai.

- Rabeta, tu reparaste como a chuva tá pesada esse ano?

- Não quero. 

- Não quer a chuva?

- Não quero papo.


Deste modo seguia o curso da boa relação de Nara (na concepção unilateral desta) à amiga Rabeta.  

Rabeta mastigava.

Um dia, enquanto Nara inspirada falava em seus mínimos detalhes sobre a farra dos catitus no marizal da vizinhança, não percebeu que um humano se aproximou e vap, pegou-a pelos pés e a ensacou, provavelmente para lhes arrancar as bonitas penas alaranjadas como o pôr do sol. 

Rabeta mastigava sua raiva cotidiana e nem reparou do movimento que se fez lá fora de seu casco. E como o silêncio pairou de repente, pensou: "a doida deve ter ido embora cansada de tanto falar, égua! Devia ter nascido periquito de tanto falar!".

Silêncio ecoou.

Até Rabeta estranhou.

Devagar meteu a cabeça pra fora. 

Tudo parado, sequer uma estridulação de grilo. 

- Te sai? 

E voltou pra dentro.

No outro dia, Rabeta acordou tarde. Pudera, seu despertador matinal não tinha chegado ainda.

- Viu? De tanto não ser bom o dia, a doida da Nara não veio perturbar.

E mastigou sem graça.


Os bichos foram se aproximando de Rabeta. Um a um.

- Rabeta? Bom dia.

- Ihh! Lá vem vocês.

- A gente não sabe como te dizer...

- Primeiro aprendam a falar!

- É que a Nara tá na mão dos humanos... 

- Dos humanos?

- Vão tirar as penas dela pra fazer fantasia das festas deles.

- O quê??

- Sentimos muito.

- Sentem? Sentem? Vocês não sentem nada! Não sentem quando a família de vocês é pega por esses monstros que nos cozinham! Nos matam aos poucos! Meu pai, meus irmãos, minha mãe morrendo se debatendo na panela quente!! Eu vi o pé deles se mexendo! Eu vi tudo pequenina que era, debaixo daquele pedaço de lenha! Todos assados! Comidos no sumo do limão! E não foi por fome daqueles humanos! Foi por gula!! Gula!! Tavam todos gordos! Aquela senhora babando pelas ovas da minha irmã! Sentem?? Não! Vocês não sentem!

- Sentimos muito. Nara é uma boa amiga.

- E ainda é! Vocês não entenderam a história da panela?? Mesmo cozinhando, um jabuti não desiste!


E Rabeta foi pra junto do rio na velocidade dela.

- Não me apressem! Tenho que me concentrar, cambada!

E tirou seu casco, imenso casco de jabota que tinha e jogou no rio.

- Sobe todo mundo!

Todos subiram no casco,

- E agora?

- Agora os calangos ali fazem o trabalho: bora!

E como um motor de popa os calangos juntos deslocaram rapidamente o casco de Rabeta pelos igarapés com os bichos da vizinhança até chegar na barraca dos caçadores que mantinham Nara presa na gaiola de madeira roliça.


Assim que o casco parou na margem, a bicharada num desatino de todos os sons invadiu a barraca, mordendo, arranhando, fazendo misuras para os caçadores que saíram correndo. Era tatu, arara, catitu, onça, mutum numa confusão danada. Até cocô de macaco-prego voou. O maior deles ainda tentou pegar na espingarda, mas Rabeta pulou na sua orelha e deu a dentada, digna dos jabutis.

O homem gritava, gritava, atirava a esmo e chorava de dor.

Rabeta segura na orelha do marmanjo até este bater com a cabeça num acapu e desmaiar de dor.

A guariba cantou:

- Solta!!

Pronto. Rabeta largou o infeliz.

Nara, libertada pelos macacos, já estava no casco de Rabeta, que corria (no seu ritmo) pelada em direção à margem.

Todos no casco, os calangos acionaram as pernas. O jacaré veio ajudar. A Rabeta empinou e porfiou com os pássaros.



No outro dia de manhã, agora já no normal começo de um dia de algazarra dos animais, Nara pousou para prosear com a amiga:

- Muito feliz de tá livre!!! Bom dia amiga Rabeta!!


Rabeta, lá de dentro, admitindo só pra si a saudade que teve da companheira e também percebendo que deveria mudar seu comportamento, meteu a cabeça pra fora e um indisfarçável sorriso amarelo a fez balbuciar:

- É... pode ser que seja...

- O que você disse??

- Te sai.






Pantoja Ramos.






quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Sumaúma é História

Foto do Sítio de Notícias Ver-O-Fato. Sumaumeira que foi derrubada para dar lugar a prédios no Bairro Batista Campos.




Uma Sumaúma é História.
De pessoas, de pássaros, de passagens.
Dos passageiros nos ônibus.
Das janelas que conferem quantos periquitos lá pousam e quais seriam suas prosas.
As prosas de nascer do sol e de poente.
Uma Sumaúma tem História.
Que se foi no machado.
Mais rapidamente na motosserra pra não se perder tempo.
O tempo que a História cobrará.
A jovem Sumaúma que só não se perderá no tempo porque suas sementes aladas darão filhas.
As filhas conscientes árvores e pessoas que saberão do misturado entre Sumaúma e História.
E assim não mais muda será a gente diante do dinheiro.
Que não é Sumaúma.