domingo, 23 de setembro de 2018

Lamberto, o Traumatizado: Anne Frank a Cada Dia Renasce

Lamberto, o Traumatizado e sua neta Maria Aneci (agora uma pré-adolescente) seguiam no ônibus naquela grande cidade, naquele imenso calor das 3 da tarde, naqueles tempos hidrofóbicos. Trânsito lento, engarrafado, sem mais preferência de congestionamentos em horário de pico. No Brasil, tudo está em momento de pico.

No trânsito de 3 tempos, o motorista do ônibus esperava a licença luminosa para prosseguir. O motor quente não deixava apenas ele estressado, todos ali estavam, no calor vindo de todos os lados. Lamberto reparou o cartaz do candidato a deputado estadual que enquanto vereador desta capital votara contra a implantação de ar-condicionado nos coletivos.  Sorria o candidato daquele papel a ironizar os usuários de coletivos.

De repente, ouve-se forte movimento fora do ônibus de uma moto arrancando em alta velocidade. Seu condutor acabara de fazer uma tentativa de assalto a um carro, frustrada. Assustara-se com uma viatura policial próxima, escondida entre os veículos parados no sinal e afoito, acelerou. A moto tenta cruzar rapidamente o canteiro que divide as pistas de ida e volta, quando é surpreendida por uma kombi que saíra de uma ruazinha para a avenida principal. Com a aceleração alta posta pelo assaltante em sua fuga, tenta desviar bruscamente a moto da Kombi e neste desequilíbrio, choca-se com a parede de uma casa, deixando estirado o motoqueiro, rosto já ensanguentado pela colisão. 

Todos do ônibus viram a cena, estupefactos. E mais estupefactos ficaram ao ver sair do carro que seria o alvo do assalto um homem, bem vestido, que tranquilamente saiu de seu luxuoso carro, atravessou a pista ao encontro do agora semimorto assaltante. Levava algo na mão. Uma arma. Chegou perto do moribundo, que contorcia-se vagarosamente de dor, peito pra cima, no cimento duro daquela tarde e sem cerimônia, disparou 2 tiros na cabeça do caído. Assim fez, assim voltou-se para seu carro, caminhando. O semáforo abriu. Muitos testemunharam e passaram pela cena. Até a viatura passou, indiferente. 

Maria Aneci começa a chorar desesperadamente banco ao lado de Lamberto. Soluçava. "Meu Deus" e botava as mãos no rosto, amparada por seu avô. 

"Chora não, menina", uma voz ecoou dentro do coletivo. A princípio todos ficaram tocados.

"Ele matou aquele homem".

Os rostos mudaram. 

"Tem pena dele não, pequena, eles não tem pena da gente", falou uma senhora que sentava próxima de Aneci. A terça parte dos passageiros concordaram com ela. 

"Mas como assim? Um estava caído se contorcendo e o outro veio e atirou!", insistiu a menina. 

"Tu não sabe de nada menina, tem é que matar mesmo! Eu faria a mesma coisa!".  A terça parte aplaudiu o homenzarrão que gritou da parte de trás do ônibus.

"Mas não é certo matar!".

"O que tu sabe hein moleca??? Sabe de nada, inocente".

Gargalhadas.

Dois terços do ônibus ficaram calados, não sabiam o que dizer. Uma moça resolveu opinar: "a gente chegou nesse ponto? Pai do Céu? Onde vamos parar? Tudo se resolvendo na bala?? A gente não é bicho!".

"Cala a tua boca aí, tu também não sabe de nada!".

Maria Aneci em prantos tentou pela última vez argumentar: "que mundo é este com morte e todo mundo aplaudindo a morte? Vô Lamberto, isso era assim no seu tempo?".

Lamberto não tinha o tempo dele. Eram simplesmente os tempos.

A moça que concordava com Maria Aneci começou a ser hostilizada. Lamberto falou baixinho para que ela descesse junto com ele e a neta.

Puxaram a cordinha para a próxima parada. 

Antes de descer do coletivo, conduzindo com todo cuidado Maria Aneci e a moça esclarecida em direção à porta aberta, Lamberto sentenciou para aqueles passageiros em alto e bom som:

"Agora sei porque soltaram Barrabás!".

Desceram em meio a xingamentos.


O ônibus partiu. Logo adiante entrou num túnel... bastante escuro.







Sem Traumas.







sábado, 22 de setembro de 2018

Crônica, passageiro: oito bistecas cortadas bem fininhas para passar na chapa

Belém, 15 de setembro de 2018.



"Amor, olha pra mim, foca: aproveita o exercício, corra e compre oito bistecas cortadas bem fininhas para passar na chapa".

"Tá bom".

"Lembra, oito bistecas cortadas bem fininhas para passar na chapa".

Saí repetindo: "oito bistecas cortadas bem fininhas para passar na chapa". "Oito bistecas cortadas bem fininhas para passar na chapa".

Imaginei uma música com batida: "oito bistecas cortadas bem fininhas para passar na chapa". 

"Tempo de DJ: Tum-Tum-Tum, oito-oito-oito, squashhh, oito bistecas cortadas bem fininhas para passar na chapa".

Correndo.

"Oito bistecas".

Correndo e pensando.

"Bisteca é uma carne boa, preciso parar de comer carne. Ajudar a combater o agronegócio".

"Bisteca, bisteca. Mas é bom comer bisteca".

Bora, Carlos. Foco. Foco.

Corre. Corre. Vou parar ali naquele quebra-mola. Vai!! Droga de gordinho que sou. Corre agora.

"Oito bistecas cortadas bem fininhas pra passar na chapa".

"Oito bistecas bem fininhas...".

"Bem fininhas... tempo em que morava com os amigos no conjunto Império Amazônico, em 93, quinto bloco, apto 205. Eu cuidava do arroz, Oziel do feijão, Rogério sempre no bife, parte bem fininhas, que nem a bisteca que vou comprar, bem batidinho o bife, pá-pá-pá naquelas onze horas da manhã, pobre é assim, ainda mais estudante".

"Pobreza. Porque tanta gente vive pobre? Ainda tem gente que ameaça a gente por reclamar disso. Ganância!". "Pobreza é não ter escolha. Tem sentido?"

"Ops, um cocô de cachorro. Desvia.".

Foco, Carlos, foco.

"Bistecas bem fininhas para passar na chapa".

"Na chapa. Na chapa. Na frigideira. Cheiro bom de carne na frigideira. Óleo de cozinha. Mas podia ser óleo de miriti. Será que dá fazer manejo de miriti? Lá de Bagre? Se não der óleo, dá pra fazer mingau. Mingau de miriti. Abaetetuba. Prefiro o mingau de açaí. Será que dá pra trabalhar com a Cofruta o fundo açaí? Seria bom eles visitarem o Acuti-pereira. Um falava do fundo, outro falava do sistema agroflorestal. Viveiro. Edital do Banco da Amazônia. Paula tá certa. Computador pra Alynne que ela não tem. Youtube. Sociedade da Virtude é maneiro. Zezelo e Professor Benedícrates, vou já postar. Que bom que gostaram da minha besteira. Dá nervoso".

"Oito... o que era mesmo?".

"Oito bistecas cortadas bem fininhas para... Humm, lixo que não se quer mais aqui, pouco urubu. Legal o jardim que os moradores fizeram. Podiam plantar uns mamoeiros. Mamoeiros vingam fácil. O de casa tá muito grande. Será que vai dar problema para os vizinhos?".

Quase chegando no açougue.

"Casa do Heitor, amiguinho do Vicente. Tem que fazer a despedida para os amiguinhos que tanto cuidaram do Vicente na turma dele. Vicente, pé no chão, Vicente. Também piso meio assim". 

"Culto na igreja".

"Homem bêbado sem camisa andando".

"Mulher na bicicleta andando com sacola na garupa".

"Um filé bem fino pra comprar. Filé ou contra- filé. Contra filé??".

A moça do açougue diz: "bom dia".

"Bom dia".

O rapaz do açougue pergunta: "vai querer o quê, meu patrão?".

Já me atrapalhou os pensamentos: Pensei em dizer "não sou seu patrão, sou pobre lascado como você, tenho um tênis velho, mamoeiros, bifes fininhos, lixo, mingau de açaí, Império Amazônico, como contra-filé...".


"Senhor?".

"Por favor, me-me, ve-ve-ve, POR FAVOR ME VEJA OITO BISTECAS CORTADAS BEM FININHAS PARA PASSAR NA CHAPA!".

O açougueiro riu da minha capacidade de decorar tal pedido.

Voltei caminhando triunfante.

"Senhor, esqueceu seu troco!".

"ah, o troco".

Voltei. Peguei o troco.

Um caminhante nem tão triunfante.

"Eu podia fazer uma crônica, podia sim, hummm, quando vamos vencer a boçalidade do Bonner? Não tem nuvem no céu, será que existem os tais rios voadores...".

Mibaraiós: porque #elenunca


Eu vi um gueto cercado por um imenso muro verde… (2005)

 Carlos Augusto em viagem da equipe da ONG FASE do Pará ao Espírito Santo. Ano 2005.



Viagem ao norte do Estado do Espírito Santo, amém. Tratava-se de uma paisagem esverdeada, lembrando a minha infância jarilense, criancice voltada para aquele bando de soldados dispostos em linha, tal qual uma parada militar soviética, tal a sincronia. Florestas de eucaliptus prontos a guerrear com as nativas, frios, competentes, pragmáticos contra os absurdos assimétricos e colossais árvores legitimamente equatoriais.

Em terras capixabas, os patrocinadores são o fiel da balança em favor dos eucaliptais que abastecem as indústrias de papel como Aracruz, Bacel, Veracruz. Suas armas são representadas por políticos e meios de comunicação que apresentam a sua superioridade econômica quando comparada à já rala Mata Atlântica. Do lado fraco, somente parceiros. Índios que outrora pescavam, caçavam e plantavam. Recordações de flora que abrigava vidas e culturas orais e escritas que estão a definhar pelo tratamento hostil do plantado.


Constatei o impensável: guaranis e tupiniquins pedindo para visitarem uma reserva de mata para ensinar os filhos o que é uma envira, um sauí-preto, um caxinguelê. No eucaliptal, um gavião voa tedioso e se depara com um tatu perdido, como sempre solitário: “nosso acordo é continuar existindo por aqui. Vá em paz”, comenta a ave.


Mata estéril que isola os homens e as mulheres, que esteriliza o solo e seca as fontes de água, avançando conforme seus patrocinadores ordenam. E são gulosos. Quilombolas e índios condenados a viverem de restos de madeira deixados para trás como esmola para fazerem carvão, sujos nos pulmões e na dignidade. Cercados, anulados, atrofiados. Eu vi um gueto. Um gueto cercado por imensos muros verdes.


Aracruz, 09 de Agosto de 2005.


Texto publicado nos sites Recanto das Letras e Racismo Ambiental






Crônicas, Passageiro: o líder que tu escolhes



Belém, 3 de setembro de 2018.

Esta crônica é o ajuntamento de fatos e impressões das conversas de nosso tempo. Talvez seja 18% representativo. Mas sinceramente, tomara que não. Se tal percentual nos ronda, perigosamente podemos acordar e ver nossas portas marcadas como assim tiveram os judeus. Não diga que estou exagerando. Com isso não se brinca. A história por mais que seja tratada com chacota pelos espíritos ruins, dá a volta e rebelde que é  (quando encontra a amiga Verdade),  mostra-se implacável. Não brinquemos.

Eis que volto de Uber. Papo com o jovem motorista, menos de 30 anos e sai a provocação política: "eu concordo com o Bolsonaro, é muita burocracia pra se ter uma arma. Enquanto isso, a bandidagem anda solta". Um caminhão entra na nossa frente, num cruzamento. O motorista do Uber e do caminhão trocam 1 minuto de xingamentos, cotocos e falsas arrancadas com os veículos. "Desculpe, senhor, eu não sou assim normalmente, sou um cara calmo". Olhei pela janela as pessoas passando rapidamente na vista em suas batalhas e disse "se uma arma sem burocracia estivesse na sua mão ou na mão do motorista daquele caminhão, haveria real chance de 'sobrar' pra ti, pra ele e quem sabe até pra mim, que só observava vocês". O jovem motorista ficou calado no restante do percurso. Será que ofendi? 

E o que dizer do homem que entrou na casa da pobre senhora em seus setenta e poucos anos, que cuidava dos netos, enquanto a mãe solteira daqueles meninos, naquele bairro da periferia de Belém, estava na lida. Truculento, vociferou para a idosa mulher: "Mulher, eu sou da Milícia e vim aqui atrás do celular da minha mulher que roubaram, o GPS diz que ele tá por aqui! !". A senhora respondeu, "a gente não sabe dessa coisa, aqui não se faz isso, vá embora". "Cadê teu marido? ??". "Ele já é falecido, vá embora por favor que os meninos estão com medo ". "Mulher que não tem marido merece ser estuprada! !". Saiu batendo porta afora, já invadindo outra casa na procura por seu dito. Só parou porque a polícia apareceu e o prendeu, antes que os traficantes chegassem, pois a notícia já se espalhara pelas ruas esburacadas do bairro.

Sempre que vou à feira, vejo homens ali reunidos em uma barraca, no assunto de carro prata, comentando o noticiário policial. Comemoram sempre quando saem reportagens da morte nas quebradas da capital. Sorrisos sádicos. É meio teatral o negócio,  vou lá duas vezes por semana e os pego nos mesmos assuntos: assassinatos, assaltos, "encomendas". Na última vez, estavam na expectativa de mais uma declaração do rádio kafkiano sobre o carro prata. "Morre policial que levou 3 tiros de um desconhecido que circulava num carro descrito por testemunhas como de cor prata...". Calaram. Saíram sorrateiros para cada serviço seu.

Nas campanhas eleitorais, homens que simulam tiros, que gritam em favor do armamento das pessoas, que incitam o ódio, que elogiam torturadores, que defendem assassinos de camponeses, que mandam intervir no morro lá de suas mansões.



Se esses são seus líderes,  pessoa pobre como eu, então te chamo de franguinho da Sadia. 

Fazes propaganda pro seu próprio carrasco.