terça-feira, 30 de novembro de 2021

Crônicas, Passageiro: Conserto do Natal



Confesso. Estava chateado com o Natal. Sequer um enfeite em casa quase chegando dezembro. Não teria motivos.

É tanta carestia que impedi até então a própria mente de desenhar uma árvore de natal, plastificada ainda por cima, como artificial se tornou a vida. De uma cultura colonizadora que esmagou a ideia indígena do que seria um final de ano (que obviamente não coincide com o Ocidente) ou de dias festivos de convite ao Amor, à Solidariedade, ao Respeito. De cultura hegemônica que insiste em não nos apresentar a belíssima espiritualidade dos povos malês, sudaneses, angolanos, moçambicanos, senegaleses em louvar a bem-aventurança. 

São tantas mortes causadas pela Covid-19 pelo hediondo governo que se apossou deste país que embrulha-me o estômago a ter que aceitar na mesma mesa aquele parente fascista convicto que votou na perversidade e também aquela parente que flerta com o ex-juiz ladrão, como se o número 17 fosse apagado de sua testa infame.

Minhas dívidas me perturbam.

Minha rua alaga toda vez que chove, num inverno amazônico esticado perigosamente este ano a mostrar que as consequências ambientais de nossos atos nos forçam a prestar contas.

E a praga de um banqueiro continua a parasitar o Orçamento Geral da União, junto com seu bando comer 40% daquilo que deveria servir ao povo.

E a praga do fazendeiro-gafanhoto permanece a derrubar milhares de árvores, antecedido pelos madeireiros criminosos. Que garimpeiros furiosamente agridem o Rio Madeira em estocadas fatais em nome da ganância.

E o preço do açaí tá aumentando para desespero de nosso sagrado hábito de beber o santo vinho de Iaçá. 

Respiro fundo e lembro Paulo Freire: "Indignação sim, raiva não... Indignação sim, raiva não...". Mantra.

E eis que surge a foto: a foto do jornalista João Paulo Guimarães, aquele que se importou com a cena anestesiada para muitos de nós. Do menino que no lixão de nossa civilização, achou uma árvore de natal usada, arrepiada, maltrapilha. Limpa, limpa, brilha seus olhos para o Natal. Percebam a íris, o olhar esperançoso para arvoreta que enfeitará sua modesta moradia. O sonho é que faz o Lar.

Estou desconcertado.

Céus! O Menino sonhou com um Natal Digno!

Céus! O Jornalista sentiu que era seu dever mostrar ao Mundo este erro da Humanidade!

Céus! A Foto rodou o país.

Céus, Padre Júlio Lancellotti elogiou, abençoou e divulgou!

Céus, que pessoas estão a ajudar o menino e sua família!

Um ato de Comunhão! Daquilo que a Santa Ceia avisava.

Como eu sou estúpido! Como poderia deixar a Esperança me escapar? Corre não, me espera Esperança!

Alcancei-a.

Ufa! Você anda rápido, hein?

Podemos caminhar? Faz tempo que a gente não conversa.

A propósito, eu já desejei para você um Feliz Natal?

Feliz Natal. 

:)


  

sábado, 20 de novembro de 2021

Crônicas, Passageiro: A Tragédia dos Não Comuns

 



Belém, 20 de novembro de 2021.


- Vejo em seus exames que sua condição está boa, sem sinais de perda auditiva.

- Que bom, doutor. Desculpe reparar, este seu quadro é bem bonito.

- Bonito mesmo, né? E bastante atual.

- Posso bater uma foto? 

- Pode sim. Trabalhas com quê?

- Sou engenheiro florestal e trabalho com comunidades rurais.

- Mas vc é petista?

- Hã?

- Você sabe que esse negócio de Comunismo não deu certo em lugar nenhum do mundo, certo? Eu já viajei à Europa e pude constatar. Fui à Polônia, conversei lá. Também fui aqui perto na Bolívia. Não deu certo também. Esse negócio é papo furado, por isso a União Soviética se lascou. A Venezuela tá lascada. E Cuba então? Nem se fala. Nunca deu certo, nunca dará.

- Doutor, vi hoje uma foto de placa pregada na parede de uma empresa que trabalha com dendê. Na placa estava escrito: "Proibido tomar água do igarapé ou qualquer outra fonte que não seja bebedouro. A Empresa fornece água potável pra você". E se a água do igarapé estiver contaminada?

- Complicado...

- É bom pensar nisso porque a água de um rio, de um igarapé é um bem comum. O que pensaria Ele ali no quadro sobre aquilo que é comum a todos?

Silêncio.

- É isso doutor? Tenha um bom dia.

Fim da consulta.