quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Sobre a medida provisória que permite a venda de créditos de carbono nas concessões florestais

 


Carlos Augusto Pantoja Ramos.[1]

 

No apagar das luzes de 2022 o Governo Bolsonaro decretou a medida provisória nº 1.151[2], que trata da alteração transitória da Lei nº 11.284, de 2 de março de 2006[3], que dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável de madeira. O propósito da MP é principalmente gerar a possibilidade de acrescentar o direito da comercialização dos chamados créditos de carbono e serviços ambientais no objeto da concessão florestal (artigo 16º, parágrafo 2º da MP nº 1.151).

Originalmente na lei 11.284, o parágrafo 2º apontava que “... no caso de reflorestamento de áreas degradadas ou convertidas para uso alternativo do solo, o direito de comercializar créditos de carbono poderá ser incluído no objeto da concessão, nos termos de regulamento...”. Na redação da nova MP, passa-se a vigorar o texto “... o direito de comercializar créditos de carbono e serviços ambientais poderá ser incluído no objeto da concessão...”. Notem que a indicação de créditos de carbono em sua origem pautava-se no processo de reflorestamento. Vale a pena pesquisar as notas das audiências públicas que discutiram em 2006 a Lei de Gestão de Florestas Públicas. Será que naquela à época o entendimento sobre os créditos de carbono era de funcionarem como prêmio para a ação de recuperar áreas desflorestadas? Fiquei a pensar.

Outra modificação é a inclusão no artigo 16 também como objeto de concessão, parágrafo 4º, “...a exploração de produtos e de serviços florestais não madeireiros, desde que realizados nas respectivas unidades de manejo florestal, nos termos do regulamento da respectiva esfera de Governo, tais como... II - acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado para fins de conservação, de pesquisa, de desenvolvimento e de bioprospecção... VI - produtos obtidos da biodiversidade local da área concedida...". É importante salientar que além do crédito de carbono, a Lei 11.284 vedava o acesso ao patrimônio genético para fins de pesquisa e desenvolvimento, bioprospecção ou constituição de coleções e que seu artigo 17º mencionava que os produtos de uso tradicional e de subsistência para as comunidades locais estavam excluídos do objeto da concessão, com explicitação no edital. Como o assunto principal e motivador da MP editada em dezembro de 2022 é a comercialização de créditos de carbono pelos concessionários da exploração de madeira em florestas públicas, a inclusão também de outros bens florestais no novo texto alarga a possibilidade de uso das florestas públicas, o que traz para mim a preocupação sobre uma tentativa de descaracterização total da Lei 11.284.

Evidentemente falamos da gestão da floresta pública, por isso seu uso precisa ser debatido quanto ao seu alcance. E por se tratar de florestas públicas, o conjunto da sociedade amazônica precisa estar presente para analisar não somente os pontos cruciais desta MP como também de avaliar os resultados da lei de 2006, conquistas, falhas e desafios. Uma marca da Lei 11.284 foi a sua construção em bases participativas. Várias organizações foram chamadas para a elaboração do Projeto de Lei sob a liderança de Tasso Azevedo e participação de lideranças técnicas históricas como Paulo Oliveira Jr., Tarcísio Feitosa, Rubens Gomes, Joci Aguiar dentre outros. Indico como fundamental a participação do Professor Girolamo Treccani na Lei 11.284, com regramento no seu artigo 6º que “... antes da realização das concessões florestais, as florestas públicas ocupadas ou utilizadas por comunidades locais serão identificadas para a destinação, pelos órgãos competentes...”. Desta maneira, o ordenamento territorial passou a ser condicionante das concessões florestais para extração de madeira em florestas públicas tendo como balizador o Plano Anual der Outorga Florestal – PAOF. Minha participação no IDEFLOR anos depois acabou por se concentrar nestes valiosos artigo e plano. E se por um lado, entendemos que é possível disciplinar a atividade florestal madeireira empresarial com arrecadação para os cofres públicos e com adoção de parâmetros mínimos que o manejo preconiza como o ciclo de corte e sobretudo que isso parta de um ordenamento territorial, por outro lado compreendemos que sem equidade e isonomia no acesso aos bens e serviços da floresta, praticamos injustiças como assim descrevo em minha Carta da Isonomia e da Equidade pela Floresta[4].

Com base nas considerações anteriores, teço algumas críticas sobre a medida provisória lançada pelo governo que está findando:

1.     Entendo que há “jabutis”[5] no texto, principalmente ao trazer para o direito das concessionárias, além dos créditos de carbono, a licença para uso de outros bens da floresta e acesso ao patrimônio genético; falamos de uma desconfiguração de uma lei que tem por propósito inicial o ordenamento da atividade madeireira em áreas públicas, gerando arrecadação para estados e municípios e com monitoramento de suas operações em uma conjuntura de inúmeros casos de extração de madeira ilegal na Amazônia;

2.     Uma vez que a sociedade amazônica, sobretudo os povos das florestas avançaram no conhecimento de seus direitos em relação à consulta prévia, livre e informada no âmbito da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho[6] e leis relacionadas no Brasil, entendo ser essencial debater com tais atores a tentativa de inserir outros bens florestais e mesmo os créditos de carbono para benefício a princípio de empresas do ramo florestal madeireiro que estão nas concessões.

3.     É preciso alertar que há casos da licença de passagem de famílias agroextrativistas para coletar determinados bens florestais como no caso extração da balata na Floresta Estadual do Paru por comunidades vizinhas como assim explica Luciana de Carvalho e Marcelo Silva (CARVALHO e SILVA, 2022)[7]. O caminho estava até então decidido: as empresas madeireiras acessariam a madeira e não outros bens florestais que seriam utilizadas por povos da floresta, principalmente quanto ao delicado uso do patrimônio genético envolvido que possui normatização própria;

4.     Sobre a comercialização de créditos de carbono previsto na MP, o texto faz menção à Lei 14.119 que trata da Política Nacional de Pagamento Por Serviços Ambientais[8]; desta forma, conforme previsto no artigo 11 da referida lei, o poder público tem o dever de fomentar a assistência técnica e capacitação para a promoção dos serviços ambientais e para a definição da métrica de valoração, de validação, de monitoramento, de verificação e de certificação dos serviços ambientais, bem como de preservação e publicização das informações. Isso significa que é imperativo que o Estado se faça presente e que a sociedade local debata e cobre por informações sobre o valor que seria pago ao crédito de carbono, o valor que se receberia, como isso seria repartido com a União, Estado e Municípios e quais os tributos deverão ser cobrados.

5.     O artigo 2º da Lei 14.119 estabelece por exemplo que o crédito de carbono seria “... ativo financeiro, ambiental, transferível e representativo de redução ou remoção de uma tonelada de dióxido de carbono equivalente, que tenha sido reconhecido e emitido como crédito no mercado voluntário ou regulado “. Para Fernando Facury Scaff, professor de direito financeiro da USP e tributarista, a incidência sobre a comercialização dos créditos de carbono, que são ativos financeiros, é a do Imposto sobre Operações Financeiras – IOF (SCAFF, 2022)[9]. O tributarista aponta que IOF representa tecnicamente incidência sobre operações (1) de crédito, (2) câmbio, (3) seguro, e (4) relativas a títulos ou valores mobiliários. Ou seja, apesar de ser em sua origem como serviços ambientais, a venda de créditos de carbono é uma operação financeira, onde deve-se cobrar o IOF. Caso contrário, poderemos estar falando do seu não pagamento como evasão de divisas? Como cobrar das concessionárias o IOF de tal modo que isso caracterize que o objeto envolvido é oriundo de uma floresta pública na qual o próprio estado é dono? Concessionárias podem deter tais créditos como se fossem títulos seus e negociá-los em um mundo altamente especulativo como é o do mercado voluntário de carbono?  

6.     A discussão sobre a inclusão ou não da comercialização de créditos de carbono por empresas concessionárias em florestas públicas que originalmente eram para fins de manejo florestal madeireiro deve ser feita com o protagonismo da sociedade amazônica e Estado para a construção das diretrizes e normatização, como foi feito em 2006.

7.     É importante lembrar aos deputados federais que provavelmente terão como pauta em 2023 a regulamentação do mercado de carbono que é imprescindível escutar os povos da floresta, os gestores públicos, os cientistas, os conselhos de florestas estaduais e conselhos de gestão de florestas públicas, os ministérios públicos e as controladorias de orçamento e tributação.

 

Não podemos esquecer que falamos de florestas públicas e não de uma nova fronteira do rentismo[10].







Notas:

[1] Engenheiro Florestal, Mestre em Ciências Florestais, estudante de doutorado do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (INEAF) da Universidade Federal do Pará, Mentor de Crédito Socioambiental do Instituto Conexsus no Marajó. Atuou como Diretor de Gestão de Florestas Públicas do Instituto de Desenvolvimento Florestal do Pará nos anos 2009 e 2010, durante a implantação das primeiras concessões florestais estaduais.

[2] BRASIL. Medida Provisória 1.151. Altera a Lei nº 11.284, de 2 de março de 2006, que dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável, a Lei nº 11.516, de 28 de agosto de 2007, que dispõe sobre a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - Instituto Chico Mendes, a Lei nº 12.114, de 9 de dezembro de 2009, que cria o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, e dá outras providências. 2022. Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.151-de-26-de-dezembro-de-2022-453738894. Acesso: 27/12/2022.

[3] BRASIL. Lei nº 11.284, de 2 de março de 2006. Dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável; institui, na estrutura do Ministério do Meio Ambiente, o Serviço Florestal Brasileiro - SFB; cria o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal - FNDF; altera as Leis nºs 10.683, de 28 de maio de 2003, 5.868, de 12 de dezembro de 1972, 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, 4.771, de 15 de setembro de 1965, 6.938, de 31 de agosto de 1981, e 6.015, de 31 de dezembro de 1973; e dá outras providências. 2006. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11284.htm . Acesso em 27/12/2022.

[4] RAMOS, C.AP. Carta da Isonomia e da Equidade pela Floresta. Publicado em 16 de novembro de 2021. Recanto das Letras. Disponível em https://www.recantodasletras.com.br/e-livros/7386776. Acesso: 27/12/2022.

[5] Segundo o jornalista Octávio Guedes, “jabuti” é um estratagema que muitos parlamentares fazem ao inserir em uma medida provisória um assunto sem relação com o tema inicial da proposta. Ver em GUEDES, O. Entenda o que é um 'jabuti' na política. Publicado em 18 de junho de 2021. Disponível em https://g1.globo.com/politica/blog/octavio-guedes/post/2021/06/18/entenda-o-que-e-um-jabuti-na-politica.ghtml. Acesso: 27/12/2022.

[7] CARVALHO, L.G. de; SILVA, M.A. da. Os balateiros da Calha Norte: a emergência de um grupo diante das concessões florestais no Pará. In: Antropolítica - Revista Contemporânea de Antropologia. Publicado em 8 de março de 2022. Disponível em https://periodicos.uff.br/antropolitica/article/view/41894/31405. Acesso: 27/12/2022.

[8] BRASIL. Lei 14.119, de 13 de janeiro de 2021. Institui a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais; e altera as Leis n os 8.212, de 24 de julho de 1991, 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, e 6.015, de 31 de dezembro de 1973, para adequá-las à nova política. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14119.htm. Acesso: 27/12/2022.

[9] SCAFF, F. F. A tributação dos créditos de carbono e dos serviços ambientais. Publicado em 17 de fevereiro de 2022. Conjur. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-out-17/justica-tributaria-tributacao-creditos-carbono-servicos-ambientais. Acesso: 07/12/2022.

[10] O rentismo é, de acordo com o economista Ladislau Dowbor, todo processo que extrai valor sem aumentar ou contribuir para a produção. Para Dowbor, quem extrai dinheiro apenas drenando o que outros produzem é um rentista, e o dinheiro extraído é “renta”. Ver em DOWBOR, L. Quem produz e quem se apropria: o poder do rentismo. Publicado em 25 de fevereiro de 2021. Diplomatique Brasil. Disponível em https://diplomatique.org.br/quem-produz-e-quem-se-apropria-o-poder-do-rentismo/. Acesso em 27/12/2022.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Sofá de napa: o fenômeno


Era uma vez um sofá. 

Era um sofá destes de napa que eu nem sei se ainda são fabricados, onde eu sempre me jogava pra assistir televisão, às vezes a TVS (hoje SBT), às vezes a Globo. 

Talvez fosse 1985 ou 1986, não recordo. Só sei que certa vez eu ganhei o raro momento de ficar sozinho em casa à noite. Num lar em que vivam meu pai, minha mãe e meus quatro irmãos, não era algo fácil de acontecer. Ahh, vejam só: iria atacar a latinha de chocolate em pó como bom gatuno de dispensa que fui.

E nesta dita noite fiquei a assistir TV sozinho, ali por volta das 21 horas. O filme? Poltergeist, O Fenômeno, de Steven Spielberg.

E assim que a película iniciou, logo percebi que não era tão boa ideia ficar em casa, solitário, de noite, vendo o desenrolar de uma trama onde espíritos tramavam contra moradores de uma casa, numa bagunça ectoplasma hostil. Muita visagem e muita misura perturbando de tudo quanto era canto aquela família, morada feita onde antes havia um antigo cemitério. Aliás, que raios eram essas construções feitas em cima de lugares sinistros! Era melhor perguntar antes de comprar: "com licença, senhor vendedor, mas esta casa está assentada onde?". Ao que o outro responderia: "nada não, no máximo um assassinato".

E desenrolou-se a história. "Tô sozinho e sou corajoso", pensei.

E no ápice do filme, com os mortos brincando de pira pra cima e pra baixo, eis que venho com minha colher cheia de achocolatado extraviada quando o tudo-de-ruim mete a cara pra fora do guarda-roupa e espanta a todos. Eu, vidrado, me sento no exato instante que o monstro urra!

Sento-me no sofá de napa que faz:

- Fuuuuuuuuuuuuuu...

...

Quando dei por mim, estava no final da primeira quadra da rua 92, e pelo jeito, corri com a colher na mão.  

Quando meus pais e irmãos chegaram, eu estava no banco de fora da casa tossindo. 

- Tudo bem Carlinho?

- Tá sim. Cof! Cof!

- Mas também? pegando friagem. Entra menino!


E assim fui dormir desconfiado do meu guarda-roupa, com as narinas cheias de pó de chocolate.




Pantoja Ramos.


domingo, 18 de dezembro de 2022

Lição Amazônica

 


Originalmente escrito em Belém, 28 de fevereiro de 2020.



Aula de Geografia lá em SP. Professor indaga:

"Alunos, o que é um estuário?".


A mocinha sentada na primeira fila levanta a mão e responde firme:

"Estuário é a embocadura de um rio, sensível aos efeitos das marés, professor".


"Correto! Alguém cite um exemplo de estuário".



A mesma aluna prontamente complementa:

"O Estuário do Rio Amazonas".


"Correto!! Decoraste bem a lição".


Enquanto isso, uma estudante olha pro céu em busca dos pássaros que sempre pousavam no pátio em busca de migalhas de bolacha. Divagava.


O professor percebendo sua falta de atenção, pergunta para tentar tirar-lhe do suposto limbo:


"Você".


"Eu?".


"Sim. Você. Descreva o Estuário do Rio Amazonas".


A estudante dobrou o olhar para a parte esquerda da cabeça, na procura de palavras até expressar:


"Bom, acho que o Estuário do Rio Amazonas é o abraço do maior rio do Mundo na gente para contar da sua alegria em aventurar-se desde lá dos Andes, se despedindo, para assim correr ao Mar que vem a cada seis horas para dizer que está tudo bem com ele".


"Você está muito equivocada, minha cara. De onde tiraste isso! Rá-Rá! Alguém tem uma pergunta pra essa viajante?".


A aluna da primeira fila, pensativa, levantou a mão:


"Você está dizendo que o Rio Amazonas é um ser vivo??!".


"Que nem a gente".


"Isso não tem lógica! Não tem lógica... Não tem... Não tem... Será?".



Primmm!!


Fim da aula.





Pantoja Ramos.

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Crônicas, Passageiro: a Passarela do PAP


Meados dos anos 1990. Eu morava no Conjunto Império Amazônico enquanto fazia a Faculdade de Ciências Agrárias do Pará, hoje Universidade Federal Rural da Amazônia. Estava ali próximo do Colégio Pedro Amazonas Pedroso, uma das melhores escolas públicas à época, o que talvez ainda seja. 

Na parada usual de ônibus do "Império" avistava de longe os estudantes do PAP, na batalha sua em passar no Vestibular, além da dura vida de coletivos e o pior de tudo, atravessar uma avenida Almirante Barroso hostil com seus automóveis Kadets, Unos, Vectras, Monzas, etc. 

E não foi por falta de aviso dos estudantes e outros passantes que uma tragédia ocorreria em uma avenida tão expressa: uma aluna foi atropelada e morta na frente do PAP, gerando forte comoção e revolta dos alunos que fecharam a Alm. Barroso por algumas horas em exigência que fosse construída uma passarela para evitar mais tristes acidentes.

E deste fechamento da principal via de acesso da capital Belém, vieram tropas de choque do governo estadual em resposta aos jovens em protesto, à época sob o mandato "tampão" de Carlos Santos que substituíra seu companheiro de chapa, Jader Barbalho, que renunciou ao cargo de governador para se candidatar a senador. Desproporcionalidade tamanha que media as forças de policiais muito bem armados, com cassetetes e gases de efeito moral e a de alunos secundaristas que no máximo traziam cadernos e cartolinas para bradar que era dever do estado construir uma passarela em segurança para a juventude que só queria estudar.

Porém a segurança e diria mais, a segurança pública agiu a partir de seu esquisito critério de lidar com a população e violentamente foram para cima dos protestos, entrando no PAP com truculência, explosões e muita, muita fumaça. De lá saíram gritos de desespero e medo.

Gritei lá do outro lado da avenida:

- Vocês são loucos??!! São só crianças!!


(respiro).


Sabem. Resolvi escrever essa crônica para lembrar a cada jovem que lutou, protestou e foi atacado pelo Estado naquele dia que sua peleja foi tão memorável em nome da amiga que agora temos sua homenagem construída em forma de passarela e que evita que outros tenham a vida ceifada. Não deixem essa história se apagar.

Quando em novembro de 2022 aqueles alunos do PAP foram intimidados por um beócio bolsonarista (redundância eu sei), eles andavam por cima de uma conquista de direitos, algo que seu intimidador talvez jamais poderia compreender. A luta justa ocorre quando não mais queremos que pessoas morram por descaso ou estupidez.

Aquele caminho erguido em ferro é solo sagrado.







domingo, 30 de outubro de 2022

Não há tempo para a ansiedade, nem para o nervosismo

Eu não posso ter medo. Mas eu não posso ser insensível se alguém sofre qualquer tipo de perseguição. Hoje, essa perseguição foi sistemática. Planejada. Gerou ferimentos. Gerou gritos de socorro. 


Fui formado em engenharia, onde muitas vezes perguntam-me: "tu és engenheiro? Não parece. Discutes coisas do social". Na verdade, eu não sei se cometo justiças, mas vejo há 25 anos as injustiças. E sei quando a perversidade toma conta de autoridades. 


Eu percebo nas entrelinhas e nos subtons (como diria Saramago) quando se defende indiretamente tal método de governo. Quando se atua para tratar toda escrotidão dos últimos 4 anos como se fosse algo relacionado a uma partida de futebol. Não. Não com quase 700 mil mortes de Covid. Não com 33 milhões de pessoas passando fome. Não com os parentes mortos ou ameaçados. Não com o racismo estampado nas manchetes.  Não com a incrível coincidência do Brasil ter 851,6 milhões de hectares e o assassino de Marielle Franco ter morado no mesmo condomínio do clã Bolsodeles. Não com o desmatamento da floresta amazônica, nossa maior empregadora, estar daqui a pouco tempo em situação de inflexão. 


Hoje eu acordei sem ansiedade, nem nervosismo. Mas hoje eu acordei com uma vontade danada de enfrentar o carnaval nazista que é o Bolsonarismo direto e indireto.

domingo, 16 de outubro de 2022

Lamberto, o Traumatizado: o ópio nosso de cada dia

Lamberto, o Traumatizado, hoje almoçou na Avenida Bernardo Saião, no tumulto de carros, ônibus, carretos, bicicletas, motos e gente pra lá e pra cá ganhando a vida nos portos e nos navios.

Bateu a fome. Sentou em um restaurante modesto, mesão de madeira para que todos almoçassem juntos, na mobilização de pratos, farinha, água, pimenta e palitos de dente. O PF era bom, bisteca, arroz, feijão e farinha. Lamberto pediu uma tigela de açaí para arrematar.

Enquanto comia, guardou o celular e antenou os ouvidos para as conversas ao lado, de cabeça baixa para não expressar qualquer tipo de julgamento. Chamou sua atenção a reclamação de uma jovem senhora, por volta dos trinta anos de luta, que alto falava para suas interlocutoras, senhoras a comer e ao mesmo tempo manejar as crianças que por ali estavam. Relatou que mataram um jovem hoje de manhã cedo por lá. Segundo a jovem líder, 2 jovens em bicicletas iriam assaltar uma pessoa num carro estacionado, mas assim que aproximaram, do carro saíram homens armados e atiraram em um dos rapazes, que logo morreu, com o outro conseguindo fugir por dentro do canal.

Ela contou que sua região era muito barra pesada por causa dos traficantes e da própria polícia. Sobre esta, disse que há 10 anos, quando estava grávida de seu primeiro filho, um grupo entrou quebrando a porta de sua casa atrás de suspeitos. Que um dos fardados estapeou forte seu rosto, mesmo ela estando gestante de 6 meses. Apesar de dizer que não tinha nada a ver com aquilo tudo, nem ela, nem sua família, por pouco não recebeu novamente um tapa. Disse que passou muito mal com esta violência, temendo complicações na sua condição de esperar um bebê.

Lamberto ficou escutando essas tragédias.

“Tragédias que vão continuar”, pensou.

Deste assunto, aquela mulher pulou para outro de que abrira mão do "seguro da colônia" para não perder seu "bolsa-família". Que em anos passados, teve seu seguro de pescadora desviado de sua conta. Que chorou na Caixa Econômica para que recuperassem seu dinheiro e assim o fizeram. Em outro tema, confirmou para as demais que tudo estava muito caro. Que só não passa fome porque pinta unha, faz chopp, que não tempo pro que é mundano. Que seu marido é barbeiro, que é carregador do porto se preciso for. Uma luta. Imensa luta.

 

Lamberto levantou-se, pagou a conta e ainda escutou da jovem senhora: “por isso que vou votar no 22, pois Lula em 8 anos nunca fez nada e ainda roubou 3 trilhões de reais... Em nome de Jesus!".

 

 

 

Sem traumas (?).

domingo, 21 de agosto de 2022

"Seu Zweede"


- Rapaz, de onde você é?

- Portel.

- Conheço bem.

- Meu pai trabalhou na Companhia Amazonas. Meu avô também.

- Como era o nome de seu avô? - Olhou desconfiando pra minha cara.

- Raimundo Ramos.

- Você é neto de Raimundo??! Rapaz, trabalhamos juntos em Portel. É... Devo estar ficando velho.


Velho, não, "Seu Zweede". Só estás na História do Manejo Florestal.


Que sigas bem em outro plano, rodeado de sumaumeiras.




Imagem de Johan Zweede: IFT.

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Crônicas, Passageiro: uma crônica para servir de flor para Manelzinho

 


Belém, pensando em Portel, 19 de maio de 2022.

 

Esta será uma crônica incompleta, desde já aviso. Sua intenção é apenas ser uma flor. Uma homenagem jogada para sempre em favor de Manelzinho, aquele que não pude conhecer, mas cuja partida me socou por dentro.  Escrevo neste ato concreto de digitar as letras para que ao rodar nos meios virtuais, possa sensibilizar alguém que imprima tal texto e quem sabe, trazer nossa atenção para o mundo real.

Mundo real que viu partir Manelzinho, o eterno garoto que veio a este plano na forma de pessoa com deficiência, com limitações para comunicar à nossa mediana civilizatória seus sonhos e vontades; incômodos e dissabores; vislumbres e reflexões. E pelo que vi de sua foto, sabia comunicar-se ao sorrir com os olhos e como é bonito ver gente assim: que sorri pelos olhos!

Nas almas boas que captei em mensagens de condolências, li a sinceridade do descrever do abandono, discriminação, exclusão e até hostilidade que sofrera Manelzinho, mergulhado no rio etílico ofertado por aqueles não o compreendiam. Em se falando de compreensão, lanço meus sentimentos profundos para a avó de Manelzinho, dona da luta tamanha em cuidá-lo, que não é fácil, aliás, é tarefa duríssima onde só o amor pode contar em segredo de onde surge a força para continuar a caminhada.

E pensando bem, esta crônica precisa ser uma roseira, com espinhos para espetar a sociedade que não se alertou do quanto Manelzinho chamava “papai” em busca talvez de uma orientação, de um guarda, de um guia, sei lá, não é isso que procuramos no firmamento quando nos defrontamos com a insegurança, o medo, a dúvida? “Pai”? Não é o que chamamos? Pois Manelzinho assim procurava e nós ignoramos.

No fim, trágico acima de tudo, implacável em primeiro pensamento, Manelzinho foi atropelado pelo caminhão do lixo da cidade, veículo que não é de correr muito e apesar disso, traz consigo todo o peso da sujeira que produzimos, todo o descarte que consideramos.

E o caminhão do lixo matou Manelzinho, muitas vezes descartado.

Não sendo eu uma pessoa que costuma rogar, pecador que sou, não posso desta vez deixar de implorar pelas pessoas de Portel, do Marajó e da Amazônia, que como Manelzinho, precisam de proteção da família, de cuidados da saúde pública, de educação inclusiva, de acompanhamento profissional para que possam dizer do seu modo o que sentem. Falo de Dignidade.

 

Deposito esta crônica em forma de flor, Manelzinho. Que tu descanses em paz.

E depois que acordares, que possas brincar céus afora com seu Papai.



terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Carta segunda sobre os créditos de carbono

 


Belém, pensando em Gurupá, 22022022.

Data ambigrama[1] (22 de fevereiro de 2022).

 

Caríssimas pessoas,

Eu continuo a preocupar-me com a mercantilização da natureza, em permanência ao que escrevi em 2018[2]. E do pouco que aprendi no primeiro caso que tomei conhecimento, desenhei na mente que seria egoísmo de minha parte não compartilhar minhas questões sobre o crescimento do mercado de carbono. Ao decidir produzir vídeos sobre o tema, logo de cara cheguei à conclusão de que não se poderia resumir as novas orientações de uso da floresta pela soma das palavras mercado+ carbono: teríamos que ser mais arrojados, a princípio tratar da variedade que seria o Pagamento Por Serviços Ambientais[3] e desta consequência, caminhar para a provocante Utopia de Justiça Climática.

Com a antena fincada na lama do arquipélago da minha cabeça, monitorei que a exclusão digital em que muitos marajoaras vivem[4] favoreceram durante os primeiros tempos da pandemia de Covid-19 que o sistema financeiro trabalhasse em Home-Office para implantar novos negócios sem a devida participação dos amazônidas, no indicar de novas especiarias organizadas pelo neocolonialismo[5]. Nem gosto de dizer “em pleno século XXI”, pois se fosse mesmo pleno, não teríamos tantos desumanos a testar a sobrevivência dos seres vivos deste planeta, seja pela barbárie, seja pela ganância, ou as duas marcas de involução juntas.

A reboque das dificuldades econômicas sofridas pela população nos últimos anos, ao ataque sistemático, calculado e mobilizado à biodiversidade amazônica e aos seus povos e ao enfraquecimento das instituições que zelam pelo bem público florestal, verificou-se a intensificação da chegada de empresas intermediadoras do mercado de carbono em comunidades amazônicas. Tais empresas vêm propondo contratos de comercialização de carbono em municípios do Marajó, principalmente nas florestas de terra-firme da mesorregião. Resolvi estudar e compartilhar a necessidade de chamar a atenção destas empresas para o respeito aos povos da floresta[6], onde reforcei meus argumentos no momento em que entendi a Lei 14.119, decretada em 13 de janeiro de 2021, que estabelece a Política Nacional de Pagamento Por Serviços Ambientais[7].

Pronto. Passou a existir uma lei. Algo para avisar sobre consequências jurídicas e judiciais. E não sendo o marco legal dos sonhos para os territórios comunitários, ao menos apontou a interligação entre a Lei 14.119 e outras políticas em seu artigo 4º:

“... Artigo 4º - A PNPSA deverá integrar-se às demais

políticas setoriais e ambientais, em especial à Política Nacional:

- do Meio Ambiente;

- da Biodiversidade;

- de Recursos Hídricos;

- Sobre Mudança do Clima;

- de Educação Ambiental;

- de acesso ao patrimônio genético, proteção e o

acesso ao conhecimento tradicional associado;

- sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade;

- ao SNUC;

- aos serviços de assistência técnica e extensão rural...”.

 Ao compreender seus artigos, voltou-me o raciocínio que eu praticava pela função que eu exercia em 2009 e 2010 em relação à importância de se fazer política florestal e de se garantir a gestão das florestas públicas e autonomia das florestas comunitárias. E na indolência das organizações que deveriam tratar de uma política de PSA antes da chegada das “caravelas”, denuncio o marasmo do Estado Paraense na fraca observância dos direitos dos povos da floresta nas atuais negociações do mercado voluntário de carbono, com agravante de fragilizar o fio condutor entre as gerações ao permitir que contratos estejam circulando entre as comunidades empobrecidas sem a chance destas terem a justa comunicação sobre os efeitos destes contratos em curto, médio e longo prazos. Milhões de reais ofertados sem a suficiente base científica florestal consolidada, com poucas informações divulgadas acerca do valor dos créditos de carbono[8], sobre os reais financiadores e seus interesses; com inconsistente oportunidade de entendimento das famílias sobre geopolítica envolvida uma vez que “quem paga a festa, escolhe a música”. E no dilema que vivemos entre a carestia e chances de ganhar dinheiro, me segue a pergunta: estaremos diante de processos indiretos de privatização das florestas na Amazônia em nome do carbono estocado ou do carbono capturado?

No que diz respeito à esta última indagação, não há como saber, pois estamos ainda no interregno, como assim analisava o sociólogo Zigmunt Bauman[9]. Segundo Bauman “... As instituições de ação coletiva, nosso sistema político, nosso sistema partidário, a forma de organizar a própria vida, as relações com as outras pessoas, todas essas formas aprendidas de sobrevivência no mundo não funcionam direito mais...”. E nessa confusão de coisas, emergem o lado mais sombrio que temos pelo medo de sofrermos com a falta de direcionamentos e suas inseguranças advindas. Em outro lado, como num estágio de negociação em meio ao luto da Humanidade por reconhecer que é mortal, o lado humano tomado pelo capital busca nos convencer que o mesmo sistema dos últimos séculos pode ser a solução da crise instalada, inclusive trazer soluções ambientais, quando o mesmo sistema é responsável direto pela degradação de florestas, rios e clima. Uma engrenagem que não mostra sinais de parar suas práticas destrutivas, a exemplo no Brasil, em que 56% do Orçamento Público da União em 2022 será destinado aos credores, deixando a migalha de 3 centavos de cada 100 reais do OGU para a gestão ambiental[10]. Cinicamente enquanto isso, mergulham bancos e empresas do agronegócio em campanhas de financiamento de proteção das florestas, novas moedas para acastelarem-se.

A partir do histórico brasileiro de abusos com os povos originários e desvirtuação de mecanismos de proteção dos recursos naturais[11], é imprescindível que se promovam debates para aprimorar a Política de PSA. Neste sentido, até exercito o chamamento do Estado Brasileiro para esta construção por uma comunidade amazônica:

“Prezados senhores e senhoras do (nome da instituição governamental como ICMBIO, IDEFLOR, INCRA, SEMAS, ITERPA, MPE, MPF, Defensoria pública, etc.).

 

Recebemos no último dia xxxx, a visita de empresas em nossa localidade para iniciar diálogo sobre o mercado de carbono.

 

Como somos sabedores que existe a Lei da Política Nacional de Pagamento Por Serviços Ambientais, Lei 14.119 de 13 de janeiro de 2021, solicitamos a presença de vossa instituição para acompanhar nossa comunidade nas reuniões que tratarão do tema, em acordo com os artigos 4º; artigo 5º, inciso VIII; artigo 8º; artigo 11º da Lei 14.119; Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e Salvaguardas de Cancun.

 

Assim sendo, nos despedimos, agradecendo desde já a atenção ofertada.

 

Atenciosamente,

...”.

 

O esperançar, verbo que me surge apesar das guerras diárias que travamos, é saber que a democracia vai se tocando que não deve ser sujeita acomodada, mas um ente vivo, que se movimenta, que se faz representar, que acredita no rosto jovem que se identifica de repente como floresta e, portanto, não pode ter preço. Justificar nossa passagem nesses bons embates é prova de vida, vida que é cíclica.

Afinal, todos nós viemos do carbono e ao carbono, voltaremos.

 

Aos mestres, escrevi.



Carlos Augusto Pantoja Ramos.



 



[1] Ambigrama é a representação gráfica de uma ou mais palavras que se lê da mesma maneira de diferentes pontos de vista ou orientações. Ver em https://dicionario.priberam.org/ambigrama#:~:text=Representa%C3%A7%C3%A3o%20gr%C3%A1fica%20de%20uma%20ou,ex.%3A%20ambigrama%20rotacional).

[2] Carta elaborada em 2018 com avaliação do processo de comercialização de créditos de carbono na Reserva Extrativista Mapuá, Breves, Marajó, Pará. Ver em https://www.recantodasletras.com.br/e-livros/7050930 .

[3] Exercitei os conceitos sobre Pagamentos Por Serviços Ambientais em https://www.youtube.com/watch?v=PkaCWlNj6fo&t=41s .

[4] Ver estudo que Ana Euler e eu elaboramos em https://www.infoteca.cnptia.embrapa.br/infoteca/handle/doc/1132328 .

[5] Nos episódios verificáveis em https://www.youtube.com/watch?v=FLY0wcH-9ek e  https://www.youtube.com/watch?v=o3VOPAcrSW8 , faço a reflexão sobre as tendências de mercado.

[6] Produzi um debate sobre este assunto no episódio https://www.youtube.com/watch?v=01-h-0kunDQ .

[7] Comento sobre a Política Nacional de PSA em https://www.youtube.com/watch?v=GuZrzMiPgUM .

[8] Apresento alguns números de valoração do crédito de carbono em https://www.youtube.com/watch?v=Q6PtCRZIBw8 .

[9] A entrevista do sociólogo Zigmunt Bauman em 2016 pode ser acessada em https://www.conjur.com.br/2016-jan-01/zygmunt-bauman-neste-seculo-estamos-num-estado-interregno .

[10] Recomendo o ótimo diálogo entre Maria Lucia Fattorelli, coordenadora nacional da ONG Auditoria Cidadão da Dívida, e a Profª Rivânia Moura, presidenta nacional do Andes – SN, que debatem o Orçamento Federal aprovado para 2022. Ver em https://www.youtube.com/watch?v=9z3fM42cw64 .

[11] Preciso falar do CAR?