quinta-feira, 26 de março de 2020

Crônicas, Passageiro: "La Sopa" para a Humanidade


Belém, pensando em Bogotá, na Bahia, no meu bairro e em toda a Terra, 26 de março de 2020.


Em 2019, no março mais frio que já passei na vida, estava eu ainda percebendo a Colômbia, cujos trabalhos de consultoria voltados para o açaí me proporcionaram conhecer este magnífico país da América Latina. Num portunhol improvisado, conversava com as pessoas, prestava atenção aos lugares, adaptava-me nas ruas de Bogotá, 18 graus para este marajoara que tremia enquanto procurava um lugar para almoçar que tivesse preços mais populares.

Encontrei um pequeno restaurante onde estava à porta um elegante senhor de terno, gravata e sapatos sociais, de aparência calma e idade que eu chutaria entre 70 e 75 anos. Lembrei-me do professor Manoel Tourinho. Só que era uma versão de quase 2 metros de altura.

Quando avistei a placa das comidas, vi que os preços estavam ótimos. Entrei. O alto ancião chegou-se a mim e balbuciou palavras que não pude entender a não ser as palavras "la sopa". Ele perguntou novamente:

- La sopa, caballero?
- Não senhor, eu não quero sopa.
- Por favor, la sopa, caballero?
- Não, não, eu quero comer carne.


A senhora dona do estabelecimento se aproximou, captou que eu era um estrangeiro naquela dificuldade de tentar explicar o que eu queria para aquele grande homem, que calmamente sorria para mim.

- Caballero, buenos días, este caballero quiere que le compres sopa.
- Ele quer que eu compre uma sopa? Ele tá pedindo uma sopa para mim? 
- Sí.

Eu estava espantado por conta daquele homem bem vestido me pedir comida. Que preconceituoso fui.

- Está Bien, le compraré la sopa.

Ele se curvou para me agradecer, apertou minhas duas mãos e assim foi para uma mesa no canto do pequeno restaurante comer com toda calma aquela sopa que julguei ser tão quentinha, tão quentinha, que aqueceu em mim continuar saber mais sobre ele.

- Perdon, ¿este hombre no tenía Seguridad Social (Previdência Social)?
- No, no, en Colombia todos pagan su pensión. Eres privado (a Previdência é privada) y el no puede pagarlo.


E agora, enquanto escrevo estas linhas, penso em toda parte da humanidade que passa dos 60 anos, muitos sem ter a quem recorrer nestes difíceis tempos de Covid-19 que nas estatísticas mostra-se implacável com os idosos e frágeis de saúde. Penso naquele cavalheiro que deve estar no frio de Bogotá a enfrentar dois invisíveis assassinos: o Coronavírus e a Mão Invisível do Mercado. 

Penso em minha mãe, de 66 anos, que jovem enfrentou e superou um coma causado pela eclâmpsia. Que enfrentou e superou um câncer de útero há 15 anos e que agora em março enfrentou e saiu (hoje, inclusive) da UTI depois de uma infecção generalizada. Agora ronda um Coronavírus espalhando-se pela Bahia, onde ela está. 

Penso nos meus amigos e amigas veteranos de luta por direitos, todos eles, todas elas, que espero que a vida de alimentação saudável dos rios e igarapés e brio lhes seja fortaleza.

Penso no senhor que sempre avisto fazendo obras aqui no Bairro e que não se recolheu conforme as recomendações porque precisava trabalhar.

São por eles que não saio de casa e cumpro a quarentena.

Por toda a pobreza e miséria que combato, não tenho dúvidas ao esclarecer para aqueles que dizem: "devemos pensar na renda das pessoas que precisam ir trabalhar".

- Ei! Não jogue o povo de encontro ao vírus! Incentive o Povo contra os Banqueiros!

Renda básica é uma necessidade para todos que pode ser perfeitamente obtida pelos gestores.

Peço uma sopa quentinha para uma Humanidade doente e precisando de carinho.






 

sexta-feira, 20 de março de 2020

O Meteoro


Salvador, a caminho de Belém, 18 de março de 2020.



O astrônomo certamente sabe que um dia virá um meteoro.

O Meteoro que nos fulminará.

Mas existe um outro Meteoro.

Este, interno da Terra, para nos confrontar.

Aquele nascido de nossa falta de amor.

Aquele nascido de nossa violência à terra.

Lá vem o Meteoro.

Um Meteoro que impacta a consciência de que podíamos tê-lo evitado.

E nem precisaríamos de telescópios de alta tecnologia para vê-lo.

E sim, a visão da alma coletiva reprimida.

Chegou o Meteoro, Li.

Não o Meteoro do pessimista que se veste de Apocalipse com seus cavaleiros.

Nem o Meteoro otimista que se intitula tão inteligente que pomposo afirma que "sairemos desta com toda certeza" sem a empatia aos que dormem nas calçadas.

Mas às pedras que sabem que nos atiramos uns nos outros.

Se não conscientes, a primeira pedra no meio do caminho.

O Meteoro realista que só será parado se transformarmos nossa conduta.

Passou o Meteoro deixando-nos um novo Setembro.

Deixou a conduta da fina flor da solidariedade.

E saudade.

E prestação de contas dos negligentes e tacanhos.

Lá, longe, o Meteoro.

O Meteoro Vírus se foi ou terá sofrido uma mutação, resultado de nossa teimosia?

E na microscopia da humildade aprendida, acredito na rainha-menina que o tempo dirá Fortaleza.

Para enfrentar o Meteoro.

Somos orbitais e libertos ao mesmo tempo.

Não ilhas, apesar das paredes.

Pantoja Ramos
Publicado no Recanto das Letras



segunda-feira, 2 de março de 2020

Crônicas, Passageiro: Eggs.

Belém, pensando em Gurupá e na Índia, 2 de março de 2020.



Certa vez deram-me a tarefa de atuar como intérprete durante a missão que a agência holandesa ICCO realizou em Gurupá. Ocorreu em 2004. Naquele tempo eu arranhava bem o inglês falando e escrevendo (e fui deixando dessa língua por chateação, sei lá, a entendo opressora mas isso é outra história) naqueles tempos em que trabalhava na ONG FASE. A missão contava com um senhor da Holanda, dois de Papua Nova Guiné e um senhor da Índia.

Eu os acompanhava e mandava ver no imperfeito inglês que aliás todos tinham. Não deram trabalho algum, com exceção do Indiano. Era um Hindu da gema, ops, é pecado falar em gema neste caso, uma vez que ele não comia nada de origem animal. Nada. Sua religião não permitia. Em Gurupá, mesmo com camarão e peixe à vontade, ele não podia comer. Respeitamos obviamente até então.

O problema é que o senhor com o passar dos dias começou a ter fome e as plantas locais não o satisfaziam. Nem com açaí ele se deu. "Caramba, o que faço?", perguntava enquanto sentia a pressão por apoiá-los no intercâmbio e quem me conhece, sabe que me esforço muito para que as pessoas fiquem bem. Pelo menos, tento.

Como o Indiano já estava sofrendo de fome e eu vendo-o ali quase desfalecido, resolvi tomar a atitude! Fui na vendinha de café com pão (a mesma que eu peguei o dono de lá coçando a costa com um pão, mas isso é outra História) e trouxe um pão-bengala para o pobre homem. Ele comeu o pão todo e suas energias voltaram. Bom trabalho, Carlos! Rapaz esperto!

Quando saímos para visitar mais uma instituição da República Independente de Gurupá (isso é outra História) o Hindu mirou-me espantando:

"Do que é feito o pão daqui???".

"De trigo, de fermento, de ovo...".

"O quê???? Ovo! What??? Não! Não! It's not possible! Eggs! You! You! Você manchou Minha Alma!!".

"Oh God! Fiz cagada!".

O Indiano ficou revoltado. Não falou com mais ninguém nos dias que se passaram. No dia da partida, os demais me abraçaram e me elogiaram bastante, mas o Hindu olhou-me com o fogo de condenação, quem sabe talvez pedindo a Shiva que me punisse.

Não tive dúvidas depois disso: sou um pecador de todas as religiões.

Ô Glory!