sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Fábula Azeda




Quibdó, 15 de dezembro de 2019.



Era uma vez uma jabota conhecida como Rabeta. Mal-humorada, avessa a amizades, quando respondia, era só na patada. Vivia no seu casco e deste lugar quase nunca saía. Praticamente achava-se que Rabeta não comia, tal era a sua discrição em comer as marias-mole e as goiabas-do-mato que se anunciavam ao seu redor. 

Rabeta tinha raiva do mundo.

Os animais em geral a viam perto do velho jambeiro, árvore que marcava que em certo tempo humanos moraram ali. O macaco-de-cheiro puxava conversa:

- Bom dia Dona Rabeta!

- Quem disse? - respondia lá de dentro do casco.


Cumprimentava o jacaré:

- Boa tarde Rabeta.

- Tu provas? Te sai.


Tentava ser gentil a onça:

- Quer prosear?

- Te sai. E não vem que meu casco é duro ou você já quer perder o outro dente?

- Ó jabota casca grossa - e partia a onça passando a língua no buraco do antes dente canino.

Em geral os bichos desistiam de conversar com Rabeta e desta maneira esta conseguia seu objetivo: ficar na sua, quieta, mastigando as folhinhas e a raiva que tinha do mundo. 


Ainda assim, havia a Nara, a ave Guará que todo dia a visitava.

- Olá Rabeta, tudo bem?

- "Tudo" e "bem" juntos não existe. Te sai.

- Credo, Rabeta, só quis dizer Bom dia.

- Não será.

- Tá, como estás?

- Mastigando.


E Nara assuntava e falava, falava, descambava a contar histórias sobre camarões que comeu, dos caranguejinhos que lhe escapavam, da fofoca e críticas por puro despeito às araras, "aquelas coloridas que se achavam"; dos tatus que erravam os buracos de suas casas.

Rabeta, lá dentro do casco, mastigava. Não dava trela.

Só que Nara não desistia de sua amizade.

- Rabeta, olha que eu trouxe pra você: é folha de jambu que eu roubei de uns humanos. Tá até com tucupi.

- Me treme o beiço. não quero.

- Rabeta, olha essa flor de tajá pra colocar por cima do teu casco.

- Vai chamar mamangá pra me ferrar. Não quero. Te sai.

- Rabeta, achei um jabuti bonitão pra ti.

- Pra comer minhas marias-moles? Tô dentro!

- Quer conhecer??

- Não. Tô dentro do meu casco! Te sai.

- Rabeta, tu reparaste como a chuva tá pesada esse ano?

- Não quero. 

- Não quer a chuva?

- Não quero papo.


Deste modo seguia o curso da boa relação de Nara (na concepção unilateral desta) à amiga Rabeta.  

Rabeta mastigava.

Um dia, enquanto Nara inspirada falava em seus mínimos detalhes sobre a farra dos catitus no marizal da vizinhança, não percebeu que um humano se aproximou e vap, pegou-a pelos pés e a ensacou, provavelmente para lhes arrancar as bonitas penas alaranjadas como o pôr do sol. 

Rabeta mastigava sua raiva cotidiana e nem reparou do movimento que se fez lá fora de seu casco. E como o silêncio pairou de repente, pensou: "a doida deve ter ido embora cansada de tanto falar, égua! Devia ter nascido periquito de tanto falar!".

Silêncio ecoou.

Até Rabeta estranhou.

Devagar meteu a cabeça pra fora. 

Tudo parado, sequer uma estridulação de grilo. 

- Te sai? 

E voltou pra dentro.

No outro dia, Rabeta acordou tarde. Pudera, seu despertador matinal não tinha chegado ainda.

- Viu? De tanto não ser bom o dia, a doida da Nara não veio perturbar.

E mastigou sem graça.


Os bichos foram se aproximando de Rabeta. Um a um.

- Rabeta? Bom dia.

- Ihh! Lá vem vocês.

- A gente não sabe como te dizer...

- Primeiro aprendam a falar!

- É que a Nara tá na mão dos humanos... 

- Dos humanos?

- Vão tirar as penas dela pra fazer fantasia das festas deles.

- O quê??

- Sentimos muito.

- Sentem? Sentem? Vocês não sentem nada! Não sentem quando a família de vocês é pega por esses monstros que nos cozinham! Nos matam aos poucos! Meu pai, meus irmãos, minha mãe morrendo se debatendo na panela quente!! Eu vi o pé deles se mexendo! Eu vi tudo pequenina que era, debaixo daquele pedaço de lenha! Todos assados! Comidos no sumo do limão! E não foi por fome daqueles humanos! Foi por gula!! Gula!! Tavam todos gordos! Aquela senhora babando pelas ovas da minha irmã! Sentem?? Não! Vocês não sentem!

- Sentimos muito. Nara é uma boa amiga.

- E ainda é! Vocês não entenderam a história da panela?? Mesmo cozinhando, um jabuti não desiste!


E Rabeta foi pra junto do rio na velocidade dela.

- Não me apressem! Tenho que me concentrar, cambada!

E tirou seu casco, imenso casco de jabota que tinha e jogou no rio.

- Sobe todo mundo!

Todos subiram no casco,

- E agora?

- Agora os calangos ali fazem o trabalho: bora!

E como um motor de popa os calangos juntos deslocaram rapidamente o casco de Rabeta pelos igarapés com os bichos da vizinhança até chegar na barraca dos caçadores que mantinham Nara presa na gaiola de madeira roliça.


Assim que o casco parou na margem, a bicharada num desatino de todos os sons invadiu a barraca, mordendo, arranhando, fazendo misuras para os caçadores que saíram correndo. Era tatu, arara, catitu, onça, mutum numa confusão danada. Até cocô de macaco-prego voou. O maior deles ainda tentou pegar na espingarda, mas Rabeta pulou na sua orelha e deu a dentada, digna dos jabutis.

O homem gritava, gritava, atirava a esmo e chorava de dor.

Rabeta segura na orelha do marmanjo até este bater com a cabeça num acapu e desmaiar de dor.

A guariba cantou:

- Solta!!

Pronto. Rabeta largou o infeliz.

Nara, libertada pelos macacos, já estava no casco de Rabeta, que corria (no seu ritmo) pelada em direção à margem.

Todos no casco, os calangos acionaram as pernas. O jacaré veio ajudar. A Rabeta empinou e porfiou com os pássaros.



No outro dia de manhã, agora já no normal começo de um dia de algazarra dos animais, Nara pousou para prosear com a amiga:

- Muito feliz de tá livre!!! Bom dia amiga Rabeta!!


Rabeta, lá de dentro, admitindo só pra si a saudade que teve da companheira e também percebendo que deveria mudar seu comportamento, meteu a cabeça pra fora e um indisfarçável sorriso amarelo a fez balbuciar:

- É... pode ser que seja...

- O que você disse??

- Te sai.






Pantoja Ramos.






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