segunda-feira, 19 de março de 2018

Crônicas do Corte: o que a Andiroba ensina






Belém, 19 de março de 2018.







A andiroba (Carapa guianensis Aubl) tem me dado muitas lições.



Aprendi que o óleo de andiroba vem sendo usado milenarmente e que alguns povos indígenas utilizavam-no para mumificar a cabeça de seus inimigos[1]. Desde então, suas propriedades foram sendo descobertas e sua utilização se expandiu. 



O óleo de andiroba é muito usado também na massoterapia. Tem ação cicatrizante e anti-inflamatória, que se potencializa quando massageado, relaxando os músculos e aliviando dores musculares e inflamações[2]. Minha bisavó Margarida[3], que era parteira em Portel, sempre carregava sua caixinha cheia de unguentos, na qual estava o óleo de andiroba para "puxar" a barriga das gestantes. Eu, curioso em plenos 6 anos de idade, queria saber o que elas (minha bisavó, a grávida e as outras mulheres) tanto conversavam dentro do quarto, quando perguntava, levava bronca. Foi assim que aprendi que as mulheres têm segredos e respeitar isso é regra de ouro.



Aprendi que o óleo de andiroba, misturado com óleo de copaíba num chumaço de algodão ajuda na cura das gargantas inflamadas. Que o diga dona Cândida, senhora muito conversadeira e bondosa que eu gostava, mas que tinha um dedo da grossura de um cabo de vassoura. Não adiantava o menino de 4 anos correr pra debaixo da cama, me achavam e aí eu sarava na marra sentindo o gosto amargo do óleo de andiroba pra combater os estreptococos da goela. Acho desnecessária a recomendação do não consumo via oral do óleo andiroba, pois pode “magoar” o fígado, afinal quem é o doido que faz isso?? Por outro lado, apesar de reclamar da planta, quando aos 13 anos saía do campo de futebol (não esqueço do campinho de nome "sangue de areia" em Monte Dourado) manquejando da canelada que tinha dado na perna seca do meu adversário (já reparavam que canela de gente magra é dura pra caramba??), o óleo de andiroba fomentado pela minha mãe ou pela minha tia me recuperava para outros baques futebolísticos. Que ingrato fui contigo, andirobeira.



No mercado nacional, a maior aplicação do óleo de andiroba é como um repelente natural contra insetos. E pela sua ação inseticida, é muito usado na produção de velas a fim de espantar insetos; e para fazer sabão, ajudando no tratamento de coceiras e picadas causadas por estes. Nas minhas andanças em 1999 na região do Lontra da Pedreira, Amapá, tempos do mestrado, conheci a história de uma senhora de um rio chamado Ipixuna que fazia vela com o bagaço da andiroba. Na época, o Instituto Estadual de Pesquisas do Amapá - IEPA pediu ao Instituto Osvaldo Cruz para estudar as propriedades daquele produto artesanal. Quando percebi, lá estavam as velas nas prateleiras dos supermercados agora vendidas por uma empresa e nenhuma citação ou reconhecimento do uso tradicional da senhora do Ipixuna entrevistada durante o surto de malária na época que testemunhei. Aprendi que é necessário discutir a origem dos produtos para que seja feita justiça aos habitantes da floresta quando houver a sua comercialização[4].



No mesmo ano (1999), a andiroba era a espécie florestal mais aproveitada para fins madeireiros no Estado do Amapá[5]. Anos mais tarde, em 2003, seria a terceira colocada nas várzeas de Gurupá na demanda por madeira para a construção civil. Levada a discussão para as mulheres do rio Jaburu de que as andirobeiras estavam escasseando nas classes de diâmetro maiores pela intensa procura das serrarias[6], elas convenceram aos maridos de que o óleo era a melhor saída para aquela espécie florestal e não a madeira. Anos depois, a andirobeira caíra para nono lugar entre as espécies demandadas pelos extratores de madeira locais[7]. O açaí parceiro ajudou a aliviar esta pressão pelos frutos ganhando maior espaço na renda das famílias. Aprendi que o uso múltiplo é a melhor saída para o manejo florestal. Aprendi que as mulheres organizadas decidem em favor da natureza.



Como hidratante, o óleo de andiroba é mais indicado para quem tem cabelos cacheados, crespos e muito volumosos, pois proporciona brilho e maciez. Ele também ajuda a recuperar pontas quebradiças e espigadas, deixando-as com um aspecto brilhoso e saudável. Para quem tem cabelo oleoso, o ideal é utilizá-lo somente nas pontas do cabelo para não ficar seboso. 


E combate o piolho.


Como os anos 1980 foram dominados (e sobrevoados) por piolhos!

Mães, avós, pais, tios, irmãos catando as crianças e adolescentes nas portas de casa de frente pra rua, na vergonha de quem era catado (por isso a manha das moças em jogar todo o cabelo pro rosto para não se mostrar quando passava o quem sabe pretendente? Hummm). Óleo de andiroba a auxiliar na retirada das lêndeas. Um catar de mãe, uma massagem no couro cabeludo. Um sono... 


Em 2010, a andiroba pela primeira vez era valorada oficialmente pelo Estado do Pará. Segundo o IDEFLOR, para planos de manejo madeireiros que desejassem explorar andiroba em florestas públicas, passou a ser imperativo pelo setor madeireiro pagar aos cofres do Estado R$33,43 por cada metro cúbico extraído da árvore de andiroba em pé[8]. Ali me convenci que este valor era muito baixo quando comparado ao que a mesma árvore pode gerar de receita em óleo, como estudou Marina Londres no mesmo rio Jaburu, de cerca de 90 kg de sementes por hectare[9], aqui calculo em 18 litros por hectare, ou seja, uma renda bruta de R$558,00/ha (sendo eu conservador no preço pago por litro em R$31,00).  Considero o óleo de andiroba um Bem e um Serviço da Floresta (BSF)[10] que não é fácil precificar.




Hoje acompanho a extração de óleo de andiroba, seja por meio de maquinários, seja por meio da extração artesanal, em iniciativas que procuram uma nova institucionalidade para o uso e valorização dos recursos florestais. Percebo que a memória está naquela massa escorrendo óleo na luta pela sua sobrevivência. Reconheço a importância da história entorno da andiroba, parteiras, repelentes, mulheres, mato, gargantas, canelas, piolhos, assoalhos, fomento, debates, leis, justiça, direitos, evolução.




Sim, evolução. Melada de andiroba. 

Pode não ser cheirosa como as rosas, mas nos cura das batidas da vida.

Ficamos fortes.












[4] Recomendo as leituras: a) BRASIL. Lei 13.123. Dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13123.htm. Acessado em 29 de maio de 2017; b) Dourado, S. A Lei N.º 13.123/2015 e suas Incompatibilidades com as Normas Internacionais. In: A “Nova” Lei N.º 13.123/2015 no Velho Marco Legal da Biodiversidade: Entre Retrocessos e Violações de Direitos Socioambientais. / Eliane Cristina Pinto Moreira (Org.); Noemi Miyasaka Porro (Org.); Liana Amin Lima da Silva (Org.). - São Paulo : Inst. O direito por um Planeta Verde, 2017. 280 pp.:
[5] ITTO. Curso de disseminação e treinamento nas diretrizes e critérios da ITTO: Fase II, Estágio 2.
Macapá, 1999.




domingo, 18 de março de 2018

Lamberto, o Traumatizado: Enxada

Lamberto , o Traumatizado, brincava com a pequena neta Maria Aneci, enquanto a mãe da menina, Shana (outra Traumatizada)  ensinava o já idoso Bom Colares a mexer no tablet. O velho senhor se divertia com a novidade.  Leram juntos um texto indicado por Lamberto de autoria da jornalista Eliane Brum sobre a hidrelétrica de Belo Monte, enquanto passava o dedo quase a arrancar a tela do aparelho. Senhora Brum descrevia como vivem hoje os ribeiros na cidade de Altamira, removidos de suas antigas moradas após a finalização da barragem. 

Bom Colares lembrou da história de uma grande amiga guatemalteca, amizade dos tempos de andanças quando jovem pela América Latina. Contou que a amiga era lavradora e tinha na enxada o seu maior orgulho até que empresas e governo vieram anunciar que uma barragem seria construída para o progresso de sua região. "Mas jô não pode daqui sair. Para onde vou se jô só conoco ser campesina... ", disse Bom Colares num espanhol cheio de erros e até engraçado. 

A mulher do campo foi convidada a ir embora. Foi morar na cidade. Passou fome. Passou frio. Passou vergonha. Conheceu a pobreza material e da dignidade. Não soube-se mais notícia dessa triste mulher, disse Bom Colares. 

Um dia, os seguranças avistaram chegar próximo do grande portão que oferecia o principal acesso à barragem e seus escritórios de engenharia uma campesina. Como a senhora trazia algo que eles logo não reconheceram, lá de dentro mas de prontidão das armas gritaram :

"Que quieres, mujer??? ". 

A campesina respondeu :

"Jô posso entrar?? ". 

"Que trazes aí?? "

"Una azada ". Bom Colares traduziu agora acertadamente como enxada. 

"Retorna para tu casa. Aqui não te é lugar ". 

Seis meses depois, a senhora já fragilizada pelo sofrimento das ruas pára novamente em frente ao portão da barragem. 

"Jô posso entrar?? ". 

Outra negação, o que era de se esperar. 

E assim a cada semestre, às vezes menos ainda a velha camponesa chegava com sua enxada pedindo para passar pelo portão. NÃO!  Sempre a resposta. 

Meses, anos, décadas. 

Novos seguranças, jovens ainda, substituíram os antigos que guardavam o portão. Na sexta-feira da primeira semana de trabalho se deram cedo do dia com aquela anciã, trêmula tanto nas pernas, quanto nas mãos que traziam a enxada. Sua voz tremida indagou :

"Jô posso entrar??". 

"Trazes una azada?"

"Si".

Os novatos acharam graça, conversaram sobre os riscos que ela poderia representar e da oportunidade de saírem daquela chata rotina. Abriram os portões. 

A anciã quase arrastando a enxada chegou ao local calculado como o meio da barragem. Olhou para baixo, lembrou das canoadas que dava no rio e viajou temporalmente para a sua posse lá na frente em um pomar do paraíso que vivia. Veio na memória as frutas, o cheiro da aurora, a brisa que embalava sua rede, os cantos de pássaros que a ninavam. Ergueu a enxada e com a experiência de saber lidar com a gravidade, não força, mas jeito, deu a primeira cavada no cimento duro. Abriu um pequeno buraco. Outra enxadada. Outra. Outra. Os guardas que até então tinham achado a cena da velhinha curiosa caíram na função de impedir as cavadas da camponesa. Pularam em cima dela... 

Pronto. 


"Vovô Colares, e o que aconteceu??? E sua amiga?? E a barragem??  ", agoniados perguntaram Maria Aneci, Shana e Lamberto. 

"Não sei. É uma lida pra vocês terminarem...". 









Sem Traumas.