Lamberto , o Traumatizado, brincava com a pequena neta Maria Aneci, enquanto a mãe da menina, Shana (outra Traumatizada) ensinava o já idoso Bom Colares a mexer no tablet. O velho senhor se divertia com a novidade. Leram juntos um texto indicado por Lamberto de autoria da jornalista Eliane Brum sobre a hidrelétrica de Belo Monte, enquanto passava o dedo quase a arrancar a tela do aparelho. Senhora Brum descrevia como vivem hoje os ribeiros na cidade de Altamira, removidos de suas antigas moradas após a finalização da barragem.
Bom Colares lembrou da história de uma grande amiga guatemalteca, amizade dos tempos de andanças quando jovem pela América Latina. Contou que a amiga era lavradora e tinha na enxada o seu maior orgulho até que empresas e governo vieram anunciar que uma barragem seria construída para o progresso de sua região. "Mas jô não pode daqui sair. Para onde vou se jô só conoco ser campesina... ", disse Bom Colares num espanhol cheio de erros e até engraçado.
A mulher do campo foi convidada a ir embora. Foi morar na cidade. Passou fome. Passou frio. Passou vergonha. Conheceu a pobreza material e da dignidade. Não soube-se mais notícia dessa triste mulher, disse Bom Colares.
Um dia, os seguranças avistaram chegar próximo do grande portão que oferecia o principal acesso à barragem e seus escritórios de engenharia uma campesina. Como a senhora trazia algo que eles logo não reconheceram, lá de dentro mas de prontidão das armas gritaram :
"Que quieres, mujer??? ".
A campesina respondeu :
"Jô posso entrar?? ".
"Que trazes aí?? "
"Una azada ". Bom Colares traduziu agora acertadamente como enxada.
"Retorna para tu casa. Aqui não te é lugar ".
Seis meses depois, a senhora já fragilizada pelo sofrimento das ruas pára novamente em frente ao portão da barragem.
"Jô posso entrar?? ".
Outra negação, o que era de se esperar.
E assim a cada semestre, às vezes menos ainda a velha camponesa chegava com sua enxada pedindo para passar pelo portão. NÃO! Sempre a resposta.
Meses, anos, décadas.
Novos seguranças, jovens ainda, substituíram os antigos que guardavam o portão. Na sexta-feira da primeira semana de trabalho se deram cedo do dia com aquela anciã, trêmula tanto nas pernas, quanto nas mãos que traziam a enxada. Sua voz tremida indagou :
"Jô posso entrar??".
"Trazes una azada?"
"Si".
Os novatos acharam graça, conversaram sobre os riscos que ela poderia representar e da oportunidade de saírem daquela chata rotina. Abriram os portões.
A anciã quase arrastando a enxada chegou ao local calculado como o meio da barragem. Olhou para baixo, lembrou das canoadas que dava no rio e viajou temporalmente para a sua posse lá na frente em um pomar do paraíso que vivia. Veio na memória as frutas, o cheiro da aurora, a brisa que embalava sua rede, os cantos de pássaros que a ninavam. Ergueu a enxada e com a experiência de saber lidar com a gravidade, não força, mas jeito, deu a primeira cavada no cimento duro. Abriu um pequeno buraco. Outra enxadada. Outra. Outra. Os guardas que até então tinham achado a cena da velhinha curiosa caíram na função de impedir as cavadas da camponesa. Pularam em cima dela...
Pronto.
"Vovô Colares, e o que aconteceu??? E sua amiga?? E a barragem?? ", agoniados perguntaram Maria Aneci, Shana e Lamberto.
"Não sei. É uma lida pra vocês terminarem...".
Sem Traumas.
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