Lamberto, o Traumatizado e sua neta Maria Aneci (agora uma pré-adolescente) seguiam no ônibus naquela grande cidade, naquele imenso calor das 3 da tarde, naqueles tempos hidrofóbicos. Trânsito lento, engarrafado, sem mais preferência de congestionamentos em horário de pico. No Brasil, tudo está em momento de pico.
No trânsito de 3 tempos, o motorista do ônibus esperava a licença luminosa para prosseguir. O motor quente não deixava apenas ele estressado, todos ali estavam, no calor vindo de todos os lados. Lamberto reparou o cartaz do candidato a deputado estadual que enquanto vereador desta capital votara contra a implantação de ar-condicionado nos coletivos. Sorria o candidato daquele papel a ironizar os usuários de coletivos.
De repente, ouve-se forte movimento fora do ônibus de uma moto arrancando em alta velocidade. Seu condutor acabara de fazer uma tentativa de assalto a um carro, frustrada. Assustara-se com uma viatura policial próxima, escondida entre os veículos parados no sinal e afoito, acelerou. A moto tenta cruzar rapidamente o canteiro que divide as pistas de ida e volta, quando é surpreendida por uma kombi que saíra de uma ruazinha para a avenida principal. Com a aceleração alta posta pelo assaltante em sua fuga, tenta desviar bruscamente a moto da Kombi e neste desequilíbrio, choca-se com a parede de uma casa, deixando estirado o motoqueiro, rosto já ensanguentado pela colisão.
Todos do ônibus viram a cena, estupefactos. E mais estupefactos ficaram ao ver sair do carro que seria o alvo do assalto um homem, bem vestido, que tranquilamente saiu de seu luxuoso carro, atravessou a pista ao encontro do agora semimorto assaltante. Levava algo na mão. Uma arma. Chegou perto do moribundo, que contorcia-se vagarosamente de dor, peito pra cima, no cimento duro daquela tarde e sem cerimônia, disparou 2 tiros na cabeça do caído. Assim fez, assim voltou-se para seu carro, caminhando. O semáforo abriu. Muitos testemunharam e passaram pela cena. Até a viatura passou, indiferente.
Maria Aneci começa a chorar desesperadamente banco ao lado de Lamberto. Soluçava. "Meu Deus" e botava as mãos no rosto, amparada por seu avô.
"Chora não, menina", uma voz ecoou dentro do coletivo. A princípio todos ficaram tocados.
"Ele matou aquele homem".
Os rostos mudaram.
"Tem pena dele não, pequena, eles não tem pena da gente", falou uma senhora que sentava próxima de Aneci. A terça parte dos passageiros concordaram com ela.
"Mas como assim? Um estava caído se contorcendo e o outro veio e atirou!", insistiu a menina.
"Tu não sabe de nada menina, tem é que matar mesmo! Eu faria a mesma coisa!". A terça parte aplaudiu o homenzarrão que gritou da parte de trás do ônibus.
"Mas não é certo matar!".
"O que tu sabe hein moleca??? Sabe de nada, inocente".
Gargalhadas.
Dois terços do ônibus ficaram calados, não sabiam o que dizer. Uma moça resolveu opinar: "a gente chegou nesse ponto? Pai do Céu? Onde vamos parar? Tudo se resolvendo na bala?? A gente não é bicho!".
"Cala a tua boca aí, tu também não sabe de nada!".
Maria Aneci em prantos tentou pela última vez argumentar: "que mundo é este com morte e todo mundo aplaudindo a morte? Vô Lamberto, isso era assim no seu tempo?".
Lamberto não tinha o tempo dele. Eram simplesmente os tempos.
A moça que concordava com Maria Aneci começou a ser hostilizada. Lamberto falou baixinho para que ela descesse junto com ele e a neta.
Puxaram a cordinha para a próxima parada.
Antes de descer do coletivo, conduzindo com todo cuidado Maria Aneci e a moça esclarecida em direção à porta aberta, Lamberto sentenciou para aqueles passageiros em alto e bom som:
"Agora sei porque soltaram Barrabás!".
Desceram em meio a xingamentos.
O ônibus partiu. Logo adiante entrou num túnel... bastante escuro.
Sem Traumas.
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