Belém, 4 de novembro de 2019, dia após o Enem.
O ano era de 1992. Escola Estadual Santa Maria de Belém, próxima à Praça Batista Campos, menina dos olhos do Governador Jader Barbalho como aquela que seria o melhor colégio público do Pará, pelo menos nas suas falas matinais no rádio "na ordem de...". Eu, recém chegado do Jari, olhos centrados para passar no Vestibular, agora morava em uma "República" para abrigar alguns estudantes jarilenses na capital.
Aula de Redação. Professor conhecido na praça como um dos mais requisitados daquela época. Alunos do terceiro ano, ou "Convênio" como assim eram chamados os vestibulandos. Exercício estilo narração. Tema livre. Escrevi sobre algo que não recordo mais. O professor convidou à mesa cada aluno para dar a nota e fazer um comentário. Na minha vez, recebi nota oito e um comentário: "está bom". Voltei até aliviado daquela consulta com um homem de voz grossa e feições severas.
No final da aula, o professor bradou: "acho que vocês deveriam fazer um curso técnico e não universitário. Aqui ninguém tem condições de passar no vestibular". Com essa frase, terminou a sessão e um grande silêncio pairou na sala. Mal se escutava o pisar de meus colegas saindo para o corredor. Era um luto. Mas não tinha morrido ninguém. Ou havia? Dali em diante, ampliei em mim o sentido da palavra LUTO.
Tentei reforçar os estudos no período da manhã, aceitando depois de muita relutância a oferta de meu pai de pagar a mensalidade do cursinho do colégio Ideal. Assim, de manhã estava no colégio particular e à tarde no Santa Maria de Belém. Só voltava para o Conjunto Maguari à noite. Mal dormia. Mal comia. Sequer fui assaltado dada a minha aparência plebeia de estudante lascado e faminto. Acabei com um princípio de pneumonia e estafa física, de um corpo de gafanhoto e mais olhudo do que o normal. Sou até hoje grato ao abacate com farinha e ao caribé de Dona Lucila que muito me valeram enquanto tomava os remédios.
No Ideal, participei de uma aula de redação com o dito professor do Santa Maria. Uma ode ao uso do termo Motivacional: "vamo lá pessoal, vamo lá, todo mundo aqui afiado pro Vestibular". Em nada aparentava o taciturno ser que agourou minha turma.
Sim, minha turma. A da tarde. A do colégio público que em certo momento só tinha aula três dias na semana. A dita super escola pública em que os professores tinham dificuldade de receber seu suado salário.
Recuperado fisicamente, não voltei mais ao Ideal. Só saía para o Santa Maria. Preferia estar trancado no quarto estudando.
Comi livros.
Comi abacate com farinha.
Estudei deveras a tabela periódica. "BEnedito COmeu GALinha e INtalou-se". Testei redações. Próclise, ênclise, mesóclise. Deus! Pra quê tanta burocracia no verbo?!! Macaco Rhesus. Os tigres asiáticos. Fóton. Antologia poética de Castro Alves. Báskara.
Fui cantar uma moça e como cortejo descrevi todo o sistema digestivo, desde a ação das glândulas salivares, passando pelo ácido clorídrico até o bolo fecal e esfíncter (pensei na oratória do vigente Presidente, ops!). A moça achou que eu era estranho. Talvez.
Voltei-me às enciclopédias. Barsa, Mirador, Enciclopédia do Estudante,Vademecum do Saber. Mania que meu pai incutiu em mim.
Assumi o que meu amigo Rogério acusava: "tu só sabes ler enciclopédia. Leia outra coisa, rapá". E passei a ler outros estilos. Poemas. Crônicas.
Passei no Vestibular.
Formei-me em Engenharia Florestal.
Enveredei nas aspirações campesinas.
Escrevi esta crônica.
Perdoei ao professor de Redação. Por favor perdoe-me por tais linhas.
Procuro questionar e trincar a vidraça do sistema em que vivo.
Aqui estou.
Vinguei meus amigos!
Luto.
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