quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Bem Viver Marajó 2017: a cidadania crescerá em nosso território?

Rio Tajapuru, Breves. Em 2017, é preciso avançar  em políticas públicas.Nenhum Direito a menos. Foto: Carlos Ramos



“...A História é um profeta com olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será...

As Veias Abertas da América Latina
Eduardo Galeano



Caríssim@s,

     Recebi a boa provocação de nosso amigo João Paulo Carvalho para fazer uma tentativa de análise de conjuntura sobre o Marajó em seus diversos aspectos de vivência e sobrevivência de sua população. Como escrevo este texto em Almeirim (vindo da luta digna de comunidades tradicionais pelo reconhecimento fundiário de seus territórios contra o grande empresariado), não poderei estar participando da reunião final de 2016 do Colegiado de Desenvolvimento Territorial do Marajó – CODETEM, no dia 05 de dezembro, na espera de poder ao menos estar na manhã do dia 06 de dezembro junto com os colegas que lutam por dias melhores em nossa terra.


     Primeiramente é preciso reforçar o quão nocivo e cínico (pra não dizer calhorda) foi a aprovação no Senado Federal do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) dos gastos públicos por 20 anos, no fatídico dia 29 de novembro, novo marco para os anais da História: o dia em que o Estado oficialmente desconectou-se da Nação Brasileira. Não que isso não ocorresse antes, pois o Marajó é testemunha e sofredor das inconstantes e muitas vezes não efetivas formas de diminuir nossa pobreza que resulta nos baixos IDHs que possuímos[1]. Só que temos agora um caso interessante de institucionalização da intenção de empobrecer. Isso mesmo, de prestar o desserviço de manter níveis ridículos de investimento nas áreas de saúde, educação e saneamento básico, itens fundamentais para uma boa qualidade de vida e persistentes na carência marajoara. A desconexão governamental (em suas três esferas) é provada quando se tem um já percentual alto de destinação do Orçamento Geral da União de 2014 (45%) e 2015 (42%) para pagamento de juros e amortizações da Dívida Pública para a credores principalmente da iniciativa privada como os bancos, de conhecimento do Executivo, do Judiário e do Legislativo há pelo menos uma geração, ao que será punido outra geração à frente minimamente com esta nova (mas de mentalidade velha) PEC. Para os 16 municípios do Marajó, resta novamente apertar o cinto com uma envira, já que muitos não terão dinheiro nem para comprar um cinto.



A Escola de Formação da FETAGRI Marajó 2016 realizou várias palestras sobre análise sobre a conjuntura nacional. Foto: FETAGRI.



       Zygmunt Bauman, o filósofo polonês que aponta a atual forte liquidez nas relações humanas, corajosamente indica a impotência de governos federais e estaduais de diversos países diante da altíssima dependência ante às grandes empresas nacionais e transnacionais[2]. Nosso Marajó em 2012 recebeu a famosa frase do Governador Simão Jatene que “não poderia avançar muito na área social”, o que deixou surpreso nosso bom Dom Luiz Azcona pela sinceridade diante do não engajamento governamental para apoiar nosso território em soerguer-se. Como pode um gestor público admitir isso? O Pará é campeão em isenções fiscais para a classe empresarial (o que contradiz a capacidade real do Estado em apoiar o Marajó ao ampliar para mais 15 anos as milionárias isenções fiscais de empresas como a Albrás - como investigou o nada isento mas-vale-a-pena-estudar-o-caso Diário do Pará[3]). Por outro lado, a juventude regional tem sido massacrada em seu ensino médio nos últimos anos nestes rincões, salvo (e a salvo) os jovens que estudam no Instituto Federal Tecnológico (IFPA Castanhal e Breves), numa atitude de Estado quase que intencional de não desenvolver a região. Pior, tem sido uma gestão com ideologia para os mais abastados, típico da linha de raciocínio dos estilos conservadores. Novamente na Esfera Federal, apesar de uma certa decepção do que poderia ter sido executado do Plano Marajó[4], é justo avaliar como positivos os avanços nas áreas de assistência social e ordenamento fundiário nos últimos 15 anos. Do lado do Estado do Pará, resultados pífios nestes aspectos,por exemplo. Os últimos assentamento agroextrativista estadual e território quilombola foram criados em 2001.


Mapa participativo dos conflitos fundiário de Breves, algo que perigosamente cresceu em 2016. Foto: Carlos Ramos.



      Por falar em conservadorismo, a onda desta maresia chegou prontamente nos nossos tapiris, fincando a ideia de que a esquerda não deve ser a mesma dos últimos 50 anos, desde Brasília até cá. Na verdade, o mundo todo tem esta reflexão. Até Gurupá e seus 20 anos de gestão petista disseram que é hora de reinventar a esquerda, serenamente admitido por lideranças com quem tenho conversado a respeito. Como diria um radialista gurupaense, “Bom Dia Gurupá, Bom dia Brasil, Boa Noite Japão!!”, momento exato de renovação. Mas, com que cara?


     Também é preciso mencionar no argumento de que precisamos nos mexer sobre o fato que em 2017, praticamente não haverá recursos orçamentários para o Programa Territórios da Cidadania, o que se soma ao desmantelamento do Ministério do Desenvolvimento Agrário[5]. Por isso, caros e caras marajoaras, é necessário decidir se o Colegiado de Desenvolvimento Territorial continuará dependente do apoio federal (que convenhamos nem foi tanto apoio, e sim mais garantir a oportunidade de estar no palco das disputas de políticas públicas) ou perecerá na percepção de que não pode mover-se sem ter um ente federativo que o escute. É bom lembrar que o senhor sentado na cadeira de presidente da república (estas duas palavras propositadamente por mim escritas com letras minúsculas) e sua trupe de dois anos de mandato (se não caírem antes, oxalá aconteça!) não escondem a clara intenção de retirar direitos adquiridos da população no máximo que puder. Se é verdade o que reflete Boaventura de Sousa Santos, professor da Universidade de Coimbra e ativo militante do Fórum Social Mundial, de que “o poder só é democrático quando é exercido para ampliar e aprofundar a democracia”[6], receio termos voltado aos anos 1980 neste aspecto, pois se golpeiam-se a cada dia conselhos e participações populares; várias institucionalidades retrocederam como a negação da mulher na gestão ministerial; mesmo escutar o clamor do campesinato sobre as ameaças e mortes advindos dos conflitos fundiários é algo agora negado neste confirmado estado de exceção[7].  Daqui a pouco se a coisa não parar, voltaremos a ver o fura-dedo e o muçum na vala nos rondando, coisas tenebrosas dos anos 1980.


     É nesse estado de espírito que instigo os colegas do CODETEM a se mobilizarem e sobretudo, pensarem uma nova estratégia de transformação sócio-ambiental-econômica à margem do Status Quo, cujo formato não está definido, porém em visível momento de construção. Uma transição riquíssima em artes, em análises conjunturais e conceitos que forçam as lideranças a estudarem mais o Mundo e o Marajó, não necessariamente nesta ordem. De minha parte visualizo (apesar de mencionar em outros escritos que poderíamos ter ultrapassado a Era da Indústria Predatória no Marajó[8] – dos anos 1950 até 2005, limitado pela criação das reservas extrativistas e projetos de assentamentos agroextrativistas) a retomada da intimidação aos territórios rurais marajoaras pelo Grande Capital. Eduardo Galeano em sua magnífica obra As Veias Abertas da América Latina teoriza que é na boa fase de um país capitalista que as grandes empresas usurpam e rapinam os recursos naturais dos povos tradicionais; na crise econômica se afastam temporariamente. Como explicar então que na nossa dita crise nacional, o agronegócio perigosamente tem reaparecido? Não sei a resposta, talvez o mestre estudioso das Américas tenha se enganado nesta sentença. No entanto, quando penso que enquanto passamos por esta crise institucional, os bancos privados “charlam” seus bilhões de reais de lucros, então deve ser no financiamento bancário aos grandes projetos que se mantêm apoio para o novo atropelamento de vidas. E aí Seu Galeano acerta mais uma vez. Quem anda financiando o CAR Grilado em Breves e Chaves? Quem oferece condições de investimento para os estudos de pesquisa petrolífera em Salvaterra? Quem garante o dinheiro para os portos de transbordo de soja em Ponta de Pedras? Quem tem o dinheiro hoje fácil nas mãos? Por outro lado, tonta, a sociedade civil organizada ainda está nas cordas tal qual um lutador entendendo de onde vieram tantos socos.



Casas do Programa Nacional de Habitação Rural nos Quilombolas de Bacabal, Salvaterra organizada pela própria associação local. Mobilizar é preciso. Foto: Haroldo Júnior.


     Nas cidades, nos furos, florestas de terra-firme e campos do Marajó as condições de vida tornaram-se mais difíceis. Não estranho a vinda de salvadores da pátria com suas empresas milagrosas a espalhar empregos e carteiras assinadas, claro que num debate de “flexibilização” dos direitos trabalhistas em troca do dito emprego. Ah, quantas horas-extras virão! Quantos subterfúgios surgirão para acumular o que já é altamente acumulado! Fui criado em uma CompanyTown (Cidade-Empresa) como Monte Dourado, local em que escrevo agora, na memória um pai que tive trabalhador que muito suou para entregar seu salário no supermercado... da mesma empresa!! Também não será surpreendente a chegada do super agronegócio a dar a reviravolta econômica! Mas em Cachoeira do Arari não é bem assim. Em Portel as madeireiras não desenvolveram as pessoas assim, assim como dizem. O problema é não acreditar nos recursos locais de Bem Viver. Do próprio Marajoara construir organizadamente a sua trajetória, que pena, sempre nos retiram a chance. Vez ou outra aparece um mago do saber que atrapalha tudo, no querer ser a salvação, acaba por escravizar-nos. O pior é quando dinastias dominantes de certos municípios marajoaras se mantem no poder ou ressurgem para "precariar" seus habitantes.


Feira Agroecológica de Portel como alternativa de geração de renda e fornecimento de alimentos saudáveis. Foto: STTR de Portel.




     Se o Equador conseguiu derrubar a especulação vampira da sua dívida pública e aprovar uma constituição nacional de caráter “intercultural” e “plurinacional”, reconhecendo em peso os povos tradicionais daquele país[9]; se o teko porã dos guaranis se harmoniza com a natureza; se a filosofia africana do ubuntu – “eu sou porque nós somos” - dita a forma de trato interpessoal, por que nós viventes do Marajó misteriosamente ao longo dos séculos auto reconhecidos como território não podemos construir uma nova forma de crescimento? Para os citados acima, o Bem Viver é o caldo que os une, pode ser que nos una também. Resgatar a antiquíssima leitura da ética (a arte do viver bem) pode não ser somente a alternativa de nossa população, mas a de toda a Humanidade. Se o capitalismo está em crise, a esquerda também está, ora pois. Se me pego pensando que para comer tenho que ter aquele papel-moeda, pois sem ele passo fome, algo está profundamente errado...


     Nesse intuito, recomendo às lideranças do CODETEM refletirem que nunca mergulhamos no mesmo rio, como diria Heráclito, então este Rio Marajoara que nos leva devido às mudanças das marés, mudou de canal, e quem sabe, nos leve às nossas raízes de conhecimento e antepassados. A ciência de cuidar da água para bebermos, de possuir outra matriz energética, de defender nossos territórios com atitude, de olhar a floresta como bens e serviços e não produtos madeireiros e não madeireiros[10], de praticar a agroecologia, de educar e alimentar nossos jovens de maneira comprometida podem ser sinais, mesmo que utópicas, de sermos cidadãos mais dignos e justificáveis. Isso requer mobilização. Uma nova mobilização, CODETEM, para se alcançar resultados. Testemunhei fundos florestais organizados ajudarem a transformação social de comunidades, ninguém me contou. Em Portel, em Curralinho, em Chaves. Seria uma sintonia, um “transmimento de pensação” com o que deseja muita gente espalhada pelo planeta para uma nova civilização?[11] 


Eu também vi governantes paraenses em uma reunião fechada vomitarem de suas bocas que não gostam dos territórios tradicionais reconhecidos fundiariamente. Ninguém me contou. Ao ver o Cadastro Ambiental Rural ser utilizado em vários casos para a grilagem ou ser direcionado para somente os lotes individuais, fazendo-se bico de negação para os CARs coletivos, minha certeza aumentou sobre aqueles amantes da não cidadania.


Entrega do CAR em Ponta de Pedras a partir da mobilização feita pelo STTR local, com base na posse mansa e pacífica. Foto: Carlos Ramos.


Trata-se de uma diástole e sístole tal qual um coração, o individualismo e o coletivo brigando para sempre por suas posições em destaque. O DIA-bólico (a não harmonia) e o SIM-Bólico (a harmonia) como diria Leonardo Boff em sua obra O Despertar da Águia trocando de posições, naquilo que afeta homens e natureza. Ai da Humanidade que tanto degrada a Casa Comum, Mãe Terra, acusa o Papa Francisco I em sua iluminada encíclica Laudato Si[12].


Uma alternativa para os precariados e precariadas é olhar o vizinho e desejar o seu Bem Viver, como a si mesmo.

Acreditar no jovem.

Dar igualdade de gênero para que mulheres estejam firmes nas tomadas de decisões.


Exercitar a Alteridade: não é esta a base do Cristianismo?


Marajó, é preciso saber viver.


Para Bem Viver, precisamos nos mexer.



Almeirim, 04 de dezembro de 2016.

Pantoja Ramos.






[1] Índice de Desenvolvimento Humano
[4] O Plano Marajó é um documento que resume as ações do governo federal para a região, criada em 2008 e retomada em 2013. Ver mais em http://www.sudam.gov.br/index.php/component/content/article?id=616:governo-federal-inicia-implementacao-do-plano-marajo
[7] Em dezembro de 2016, o Governo Temer extinguiu a Ouvidoria Agrária Nacional, espaço fundamental de encaminhamentos e resoluções sobre os conflitos fundiários no Brasil. Ver em http://alertasocial.com.br/?p=2176
[10] Incomoda-me muito os termos madeireiros e não-madeireiros, parece que a floresta ou cai ou não cai. Prefiro referir àquilo que a floresta fornece como Bens e Serviços Florestais - http://www.recantodasletras.com.br/e-livros/5624741.

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