quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Thiago de Mello - entrevista a um dos maiores poetas da Amazônia


Thiago de MelloE-mail
Fonte: 
http://www.almanaquebrasil.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6009:o-animal-mais-ilustre-que-a-natureza-criou-se-transformou-num-grande-desumano&catid=12906:literatura&Itemid=28
  

"O animal mais ilustre que a natureza criou se transformou num grande desumano."
Ele é um dos mais respeitados poetas da atualidade, com obras traduzidas para 30 línguas. Exilado durante o regime militar (1964-1985), morou no Chile, Argentina, Portugal, França e Alemanha. De volta ao Brasil, escolheu a cidade em que nasceu, encravada no meio da floresta amazônica, para viver. “Em vez de ir estudar em Oxford, decidi morar em Barreirinhas”, diz. “Não estou lá para ensinar, mas para aprender com a própria floresta e, sobretudo, com o homem que vive nela e vive dela”.

Autor de cinco livros dedicados à preservação da região, entre eles o livro Amazonas, Pátria da Água (Gaia/Boccato, 2008), Thiago não mede palavras para condenar a ação nociva do homem sobre a natureza. O escritor conclama cada um a fazer sua parte: “É preciso trabalhar pelas crianças que ainda vão nascer”.


Para você, que vive no meio da floresta, qual é a gravidade da situação da Amazônia?
A comunidade científica internacional, muito especialmente o organismo chamado Painel Internacional de Mudanças Climáticas das Nações Unidas, em seu terceiro relatório, adverte não só os poderosos que se pretendem donos do mundo, mas também cada pessoa filha da Terra a fazer sua parte. No dia 13 de março caiu uma geleira, uma imensa plataforma de 20 quilômetros, na Antártica. Parecia eterna e desabou. O mesmo calor que derrete o Kilimanjaro e as neves que pareciam eternas na Cordilheira dos Andes ameaça cruelmente a vida da floresta amazônica. Minha preocupação não é só em relação à floresta, o maior manancial de vida do planeta, tão cruelmente devastada e degradada pelos madeireiros perversos, pelos empresários opulentos, pelos criadores de gado e soja. É também em relação à própria existência do ser humano.

É possível imaginar uma boa saída para isso?
Há tempos eu fiz uma opção entre a utopia e o apocalipse. Optei pela utopia. Há aqueles que se satisfazem com a degradação, com a devastação, com a morte, com a ruína. A floresta é um ser vivo que o próprio planeta respira. Com lástima e perplexidade eu cito como exemplo a posição do País mais poderoso do planeta, os Estados Unidos. Eu trago grande perplexidade com a obstinação daquele país tão poderoso em se manter na indiferença com o resultado da emissão de gases tóxicos, como o gás carbônico, o etano, o óxido nitroso. E os cientistas há tempos vêm alertando. Primeiro foi o efeito estufa, as chuvas ácidas. Depois veio a abertura da camada de ozônio. A natureza é tão boa conosco! É preciso trabalhar pelas crianças que ainda vão nascer. A comunidade científica mundial avisa, com comprovação objetiva da realidade, que o aumento da temperatura chegou a um grau irreversível. Isso vai causando seus efeitos ao longo deste século, que termina com a desgraça do próprio planeta e dos seres que vivem nele.

Como você define sua escolha pela utopia?
A minha posição é de esperança. Acho que o sonho e a utopia devem ter os pés e todo o corpo fincados na realidade. Mas eu tenho a esperança de que, a cada dia, o maior número de pessoas se conscientize de que é preciso fazer a sua parte. Tenho cinco livros em prosa e verso sobre a preservação da floresta amazônica. Eu falo de preservar a vida. Nos anos 1970, estive exilado na Europa. Eu nasci na floresta, sou filho da floresta. Mas durante muitos anos, como escritor e diplomata, vivi longe de lá. Meus alunos de literatura latino-americana e professores das universidades, tanto da França quanto da Alemanha, sabiam muito mais do que eu, que sempre estudei sobre a floresta. Eles tinham os dados de satélite, sabiam o número de hectares devastados, do genocídio dos índios, dos problemas de terra. Eu, então, em vez de ir estudar em Oxford, decidi morar na terra onde nasci e onde estou até hoje, há cerca de 30 anos. Eu não vou lá para ensinar, mas para aprender com a própria floresta e, sobretudo, com o homem que vive nela e vive dela, o chamado ribeirinho, que mora à beira do rio mais caudaloso e mais extenso do planeta, que dá vida à floresta.

Qual deve ser o papel do governo na luta pela preservação?

Eu consagro minha vida a causas muito difíceis. A principal é a construção de uma sociedade solidária. Ou seja, a eliminação cada dia mais extensa e intensa das grandes diferenças sociais, da terrível desigualdade que existe entre uma minoria de poderosos que têm tudo e querem ter cada dia mais, e uma legião de deserdados, os chamados miseráveis, que nada têm nem podem ter. Eu não vou fazer nesse momento nenhuma referência ao que me consterna muito, que é a concessão de bolsas pelo governo. Mas o governo do Brasil tem que, em primeiro lugar, tomar medidas muito completas através do Ministério do Meio Ambiente, entregue a uma mulher extraordinária, minha querida amiga Marina Silva, com todo o ardor, vigor e alta consciência que ela tem da necessidade de preservar esta floresta. A verdade é que cada dia mais os poderosos, os grandes empresários, além da cobiça internacional que tradicionalmente existe sobre o verde amazônico, aumentam a devastação. Como se o boi e a soja fossem mais importantes do que o ser humano e a grande biodiversidade da floresta. Cada árvore que cai é uma grande quantidade de vida que se extingue. O pior é que, com a floresta desabada e queimada, acabam as riquezas e virtudes de vegetais que nem sequer foram estudados ainda. Nosso povo precisa se conscientizar de que pode e deve a cada dia fazer sua parte.

E o que se pode fazer?

Tudo que é consumo de energia vem dos combustíveis fósseis: petróleo, gás natural, carvão mineral. A queima desses combustíveis produz esses gases todos e gera energia. Então, se tu desperdiças a água, deixa a luz acesa na sua casa, gasta gás em excesso, estás gastando energia. Mas vai chegar um momento, eu tenho certeza, em que todos os países vão economizar, vão plantar mais árvores. Na Suécia, estão plantando muito mais árvores do que aqui. Com a Mata Atlântica já acabaram, não tem mais nem 10% do que tinha. Como é que eu vou dizer para São Paulo que é preciso reduzir o número de automóveis? Eu soube que agora o rodízio pode ser duas vezes por semana. Já é uma boa medida, está certo. Mas a cada vez aumenta o número de carros que entram em São Paulo, assim como nas outras cidades do Brasil. Eu tenho conversado com motoristas: “Você sabe que seu cano de descarga está fazendo mal à vida das crianças? Está fazendo mal à vida daqueles que já estão doentes? Está fazendo mal à própria respiração? O ar que tu respiras está contaminado”. Eles dizem: “Ah, é nada”. É igual os caboclos da floresta de onde eu vim. A região amazônica é a menos consciente do grande perigo que a cada instante a floresta está correndo. Quando eu advirto lá, eles dizem: “Essa mata não acaba nunca, tem mata demais, Deus é grande”.

Ainda é possível salvar a Amazônia?

Até uns cinco anos atrás, aonde eu chegava para fazer palestra, conferência, congresso ou recital, eu terminava dizendo: “Faça a sua parte para preservar a floresta amazônica”. Hoje não é mais “preservar”, é salvar o que pode ser salvo. Mas me perguntam: “Você é alarmista?”. Não. Eu acredito na ciência. A ciência não mente, a ciência não brinca. Um instante que me comoveu muito foi o anúncio do terceiro relatório de simulações de mudança climática, na Inglaterra. O cientista Raymond Bradley terminou de ler chorando. O cientista ama a vida também, é gente como tu, como eu, como qualquer outro. O animal mais ilustre que a natureza criou, o humano, se transformou num grande desumano, cruel, feroz, que com gás, com fogo e com ingratidão devora a vida da floresta.

Fala-se muito em consciência ambiental. É algo que veio para ficar ou uma onda passageira?

Não pode ser passageira. Ainda é tempo de fazer alguma coisa. Os governantes são os principais responsáveis pelo esforço para que os povos de cada país participem do trabalho. Mas é muito ruim, neste estágio do processo civilizatório, com o avanço da ciência e da tecnologia, que cada pessoa hoje queira ter seu carro. A quantidade de gás carbônico que sai do cano de descarga do teu automóvel...

Você tem carro?
Eu não tenho carro; tenho canoa, tenho barco. O carro é um feroz inimigo da vida do planeta. Mas eu tenho a esperança de que, no dia em que uma parcela ponderável do povo se conscientizar das consequências do aquecimento da Terra, que já estão acontecendo – as inundações, a elevação do nível do mar, as grandes chuvas, os vulcões, as caídas das geleiras, tudo isso –, algo vai mudar. Mas é preciso que haja um trabalho conscientizador. Eu me empenho, como membro de um grupo chamado Grupo de Estudos Estratégicos do INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia). Acontece que não é só a nossa floresta que sofre. A questão é sobre a vida dos seres, a vida da humanidade. Em toda a minha obra – quase 30 livros de verso e prosa –, eu escrevo sobre a vida do ser humano. O maior prêmio que um escritor pode receber é o apreço de leitores desconhecidos, que, com a leitura de uma página de um livro ou de um poema, ganham força para acreditar na beleza da vida, no milagre do amor e no respeito à beleza da própria condição humana. A arte não deve apenas ter um objetivo estético, deve ter também uma finalidade ética. Eu trato de fazer a minha parte, com a minha palavra, escrita e falada.

É esse o dever do escritor?
Eu acho que o dever do escritor, seja com seu conto, seu poema, seu romance, é servir à vida. No Brasil, se está perdendo cada vez mais a ética. Há uma devastação da floresta, mas também uma devastação de valores morais, com a violência, o desrespeito à vida humana. As crianças é que são cada vez mais atingidas pelo desrespeito e pelo desamor. Há uma grande crise de amor. Eu conheço companheiros de 60, 70, 80 anos que são jovens, cheios de esperança, querendo fazer coisas para mudar; assim como conheço universitários, colegas de 25 anos, que já envelheceram, só pensam em enriquecer. Estamos na vida para servir aos outros. Para isso, é necessário que o escritor consiga cada vez mais uma linguagem acessível a um número maior de pessoas. Não somente escrever para aqueles iniciados, que têm curso de Literatura e de Letras na universidade. Vale o mesmo para os cientistas, que não devem somente escrever com suas terminologias complicadas. Todos nós que usamos a palavra falada e escrita devemos ter uma linguagem acessível, para que ela penetre e crie a consciência de que cada um pode fazer a sua parte.

Como você define sua atuação?

Eu me dedico à construção de uma sociedade mais justa, limpa e solidária para nós que vivemos nesta parte do planeta. Trabalho muito pelo que chamo de integração cultural da América Latina. Sem que o povo conheça a vida dos países da América Latina, jamais haverá uma integração política e econômica verdadeira. Somos países que mal nos conhecemos. Eu fui adido cultural da Embaixada do Brasil em três países da América Latina. Como acho que a arte – no meu caso, a literatura, a poesia, o romance, o conto, seja o que for – é um instrumento de comunicação poderoso de aproximação, trato de fazer minha parte, traduzindo escritores, particularmente poetas da América Latina. Entreguei recentemente os originais da primeira antologia de poetas da América Hispânica que vai sair no Brasil. É uma antologia pioneira. Se tu vais a uma livraria procurar antologias de poesia francesa, inglesa ou russa, eles te dão quatro, cinco de cada. Mas da América Latina não há nenhuma. Eu mesmo já traduzi cinco livros de Pablo Neruda, de quem fui grande amigo quando vivi no Chile, de Mário Benedeti, de Jorge Luis Borges.

Você segue fazendo caminhadas solitárias pela floresta, declamando Manuel Bandeira e Joaquim Cardozo?
Quase todo dia e quase toda noite também. Ainda ontem eu declamei para um grupo de amigos o poema Última Canção do Beco, de Manuel Bandeira, de quem mereci frequentar a intimidade de sua ternura. Um deles me pediu para lembrar um poema de Neruda, Puedo Escribir los Versos Más Tristes Esta Noche. Eu disse a ele que queria dizer um poema mais alegre, e não apenas lembrar as coisas tristes. Última Canção do Beco é um dos poemas de amor mais belos que existem. Eu tive um filho, a quem dei o nome de Manuel, o Manduca, meu querido filho, compositor, músico, poeta, que morreu há três anos. Ele declamava o poema para um beco onde morou, no Rio de Janeiro: “Beco das minhas tristezas, das minhas perplexidades, mas também dos meus amores, dos meus dons, és como a vida, que é santa apesar de todas as quedas”. Com o beco ele aprendeu a amar a vida cada vez mais, e amar também a tristeza humana. Termina aqui o dever e a missão de cada um que chega à Terra. Cada criança nasce para ajudar a vida a ser mais culta, a ser melhor.

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