sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Crônicas do Corte: Mata-calado

Jatobá. Imagem: G. Ferreira


Crônicas do Corte: Mata-calado[1]


Belém, 09 de novembro de 2017.

Gracialda Ferreira[2]
Carlos Augusto Ramos[3]




Eis que na tarde do dia 9 de novembro de 2017, Gracialda Ferreira contou-me a história do Mata-calado:


“Em uma floresta no meio da Amazônia, um grupo de identificadores de plantas vindos de outra região do Brasil passaram a semana toda trabalhando em um inventário florestal. Aproveitaram para colher seiva de jatobá (Hymenaea courbaril L.) que seria usada em um momento de lazer, vejam só: como cachaça (a seiva do jatobá após a fermentação tem teor alcoólico). Após sete dias, a seiva armazenada já estava fermentada e logo o grupo de trabalhadores, conhecedores das plantas, se organizaram para um churrasco, com este aperitivo. Enquanto três deles se arrumavam, o quarto preparou o fogo e colocou a carne para assar. Quando este foi tomar seu banho, os demais iniciaram a degustação da seiva, mas quando o rapaz que foi tomar banho retornou estavam seus companheiros ali mortos. Tinham se enganado e colhido a seiva de MATA-CALADO (Stryphnodendron paniculatum Poepp. & Endl.), árvore da Amazônia com as características do tronco muito parecidas com o jatobá, com seiva altamente tóxica que acabou por vitimar fatalmente aqueles que ironicamente eram pessoas conhecedoras das árvores”.


Trágico.


Depois desta história, professora Gracialda continuou me alertando da importância de aprofundar-se o aprendizado da Botânica em sua teoria e prática. Na aula que tive, percebi que as instituições que tratam do manejo florestal na Amazônia esqueceram (ou negligenciaram?) de conhecer de fato as espécies florestais trabalhadas, principalmente no setor madeireiro.


Carapanãs me zunam no ouvido! Quer dizer que existem vários planos de manejo florestal madeireiros por aí afora que não fazem a mínima avaliação taxonômica (taxonomia – na biologia é o ramo responsável pela identificação e classificação de todos os animais e plantas que habitam a Terra, com base nas diferentes características que possuem[4])! Imagino processos de certificação florestal que também falham neste aspecto, concessões florestais, etc.

Imagem de folha e fruto de Jatobá: G. Ferreira



Para entender a confusão acima, basta perguntar no mato para um conhecedor de plantas ou mateiro: “qual árvore é esta? ”.


O outro responderia: “Louro”.

“Qual Louro? ”.


Se ele conhecer bem a região vai apontar “Louro-vermelho”. Beleza, segue o inventário. Comumente segue-se sem coletar-se folhas, cascas, etc., para saber se é mesmo Ocotea rubra Mez. Pode existir naquela mata uma espécie de louro ou outra planta parecida a enganar até mesmo os mais experientes, como no caso do Mata-calado.


O problema é que o setor florestal madeireiro tratou as riquezas que trabalham como garimpo. E todo garimpo junta o que há de mais danoso numa região, ambientalmente falando, no cúmulo do capitalismo. Ganância. É um problema tão complexo que não basta acusar técnicos e mateiros, o que não resolve, mas sobretudo educar, dar condições às instituições de ensino e pesquisa de estarem juntos nesse aperfeiçoamento das pessoas, luta diária mesmo. O acadêmico respeitando o conhecimento tradicional. O conhecimento tradicional agregando outras formas de conhecimento. Entretanto, difícil é este país que sequer olha o ensino médio, o que diria da especialização e qualificação dos identificadores botânicos e engenheiros florestais neste quesito. Momento de refletir e assumir a posição de transformar a maneira como manejamos a floresta para fins madeireiros, com zelo a cada espécie utilizada. Flávio Santos, da UNICAMP, que estuda os efeitos do manejo florestal madeireiro atualmente praticado em estados como o Pará comenta: “Manejo sustentável é, sem dúvida, muito melhor do que a terra arrasada pelo desmatamento generalizado... Só que dizer que isso é sustentável, não dá para afirmar.[5].


Na medida que buscamos conhecimento e saímos de nossos muros universitários, vamos de encontro à verdade que a mata sempre nos falou, mas que surdos, negligenciamos enquanto sociedade.


Professora Gracialda alerta: “...E dessa forma estamos nós a cada dia matando a biodiversidade, trocando, algumas vezes ingenuamente e outras (a maioria das vezes) espertamente mata-calado por jatobá, mogno por andiroba, gato por lebre ... parece que é uma ação sem consequências, mas dessa forma vamos matando a cada dia nossa cultura, nossos recursos florestais, nossa Amazônia. O que é sustentabilidade se achamos que não é importante conhecer as espécies antes de determinar seu uso?”.

Boa pergunta, professora.


Boa pergunta.


Mata-calado a floresta.






[1] Texto “bolado” numa rodada de conversa após reunião no IEB sobre o Plano de Manejo Florestal Comunitário da Associação dos Moradores da Gleba Acuti-pereira, ASMOGA.
[2] Engenheira florestal, Doutora em Botânica pelo Instituto Jardim Botânico do Rio de Janeiro - JBRJ.
[3] Engenheiro Florestal, consultor socioambiental

Um comentário:

  1. Parabéns Carlos e Gracialda!Esse dueto tem que continuar nos presenteando com outros textos maravilhosos. Excelente parceria!

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