sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Crônicas, Passageiro: Epifania



Macapá, 13 de fevereiro de 2019.

         Não bebo. Mas já fiquei embriagado, porre mesmo. Tinha quatro anos de idade. Quem mandou aquela garrafa de cerveja fica ali exposta? Meu pai estava na alta prosa com seus amigos e não percebeu que eu matava minha curiosidade sobre aquela bebida tão procurada por aqueles senhores. Não sei se esvaziei uma garrafa, mas o efeito veio. Somou-se esse ato assim às primeiras lembranças que tenho: de entregar a mamadeira caminhando para meus pais aos dois anos, de viajar na carroceria do caminhão de mudanças do Jurunas para o Telégrafo, em Belém; e no meu primeiro e único porre (e aproveitando a deixa, quais são as suas três primeiras lembranças, leitor ou leitora? Ponha a mão no queixo e puxe pela memória).    
         E chorei. Muito. Minha mãe contou-me mais tarde que me colocaram embaixo do chuveiro pois eu estava tonto por demais. Enquanto a água caía na cabeça eu, soluçando, gritava: “Eu tô nervoso! Eu tô nervoso!!”. A única coisa que conseguia expressar naquele mundo girando. Esse trauma, mais a leitura do livro de Ajax Silveira intitulado O Drama do Alcoolismo (que meu pai comprou, sendo eu, no entanto, aquele que leu), juntamente com os finais de semana complicados de gestão de ébrios fizeram-me desistir ao longo da vida de beber álcool. Como exceção, em ano que surge a oportunidade, tomo uma taça de vinho, mais pela simbologia do Natal e analisando o efeito benéfico do vinho para o coração. E até nisso sou cabreiro, pois uma crise renal em 2007 teve o vinho como suspeito. Eu sei, eu sei que foi falta d´água no corpo, mas olha o que é uma desconfiança!
         Confesso, Epifania é algo que às vezes busco para fugir dessa dura realidade que vivencio junto com vocês. E já que não bebo, viajo na mente e contemplo a natureza, seja a total, seja na lupa de uma concentração para a natureza humana. Livrar-se para religar-se em algo Superior, exercício quem sabe no caminho de uma espiritualidade que essencialmente traga o Amor, a Serenidade e a Bondade da Vida, deixados os partidarismos religiosos de lado. Arrisco em comparar que assim como a Sociedade é maior que governos, Espiritualidade é maior que religião. Putz! São essas minhas viagens que dão uma vontade braba de beber água-que-passarinho-não-bebe! Paro, porém, quando lembro de minha possível pré-predisposição para um etílico sem controle. Melhor deixar quieto. Transmutar, eis a cuíra!
Na noite de 7 de fevereiro de 2019, foi diferente. Fui provocado a escrever uma nota técnica sobre o RADAR COMUNITÁRIO, método de Diagnóstico Rápido Participativo (e Mobilizador) que temos trabalhado desde 2015, cuja figura esquemática de resultado, construído participativamente, apresento a seguir:
Trecho da Nota Técnica sobre o RADAR COMUNITÁRIO.


         Durante a escrita desta recente nota técnica, eis que em algum momento tive que recorrer à minha dissertação de mestrado de 2000 para buscar um argumento que ali se encontrava. Não a visito muito, até torço o nariz. Não vou muito com a cara do Carlos Augusto do mestrado. Mirei os olhos no que me importava e sem querer avistei a seguinte figura:

Trecho da Dissertação de Mestrado de Carlos Ramos. 


        E brigados o Eu de hoje com o jovem Carlos de 25 anos de idade, resolvemos sentar pra conversar sobre gráficos. Enquanto ele me explicava a ideia de tentar explicar um diagnóstico socioeconômico por meio de um triângulo, eu o interrompia vez em quando para que ele me deixasse também falar, alertando que de nada valeria tal construção de desenho sozinha. Que muitos teriam que construir juntos o quadro da realidade em formato de infografia para quem sabe, haver uma mudança. Passamos também a falar sobre sua briga com o orientador.
“Tu devias ser menos arrogante”.
“Arrogante? Ele queria impor a sua vontade na minha dissertação! Eu sabia o que tava fazendo! ”.
Difícil falar com este jovem, vou te contar! Ele continuou:
“Mas voltando pra cá, e se a gente fizesse um sistema de notas para perguntas relacionadas a estes parâmetros e resumir num desenho para todos verem? ”.
“Não vejo novidade aí”.
“Tá, pode até ser nada de fenomenal, mas vou deixar assim mesmo”.
"Teimoso. Mas e se todos não ficassem apenas olhando, e sim, participando deste auto-retrato da comunidade?
"Tu achas possível?"
"Não só acho, como entendi de onde veio a ideia. Veio de você, rapazote. Vou pegar seu triângulo, vou desfiar cada um desses três indicadores, potencial humano, natural e externo para outros que possam ser melhor entendidos pelas comunidades, naquilo que elas acham fundamental para o bem-viver. Algo que seja livre até na composição dos indicadores, na reflexão conjunta do que deve ser levado em consideração num território".
Nesta conversa, viajei para o ano de 1999 e revi todo o quarto de trabalho, a cadeira velha, o computador pé-duro 486, sendo o Pentium um sonho distante de consumo. A mesa do computador? Um improviso usando a velha cômoda (que eu chamava com um nome mais antigo ainda: penteadeira), que possuía 3 espelhos com dobradiças que ao se disporem uma diante da outra, forjavam imagens infinitas nesta maravilhosa lei da física que é a reflexão.  A visão psicodélica de centenas de Carlos (até onde eu podia contar) brincando de olhar a cada dos outros inutilmente, pois eles também se mexiam simultaneamente. Penteadeira do menino Carlos de 8 anos que já reparava que o fermento da marca Royal tem no rótulo desenho do fermento da marca Royal e lá no fundo outros, outros até se perder a vista. E nos espelhos paralelos, conseguia finalmente ver meu pescoço por trás. Égua! Só orelha! Mas eis que de repente vejo o Carlos do mestrado quase que dormindo sobre a dissertação, mexida, remexida e “transmexida”. Levantou a caneta e começou a rabiscar um triângulo, reparou o que podia ser o ideal, nota 10 e o que seria o pior, nota 0. Começou a dar nota para seus indicadores a partir de seus subitens, um 2, um 6, um 5, etc. Deu nota ao potencial natural, ao potencial humano e ao potencial externo. Porém, estava solitário nesse exercício, ninguém em casa pois as filhas e a esposa tinham saído.  Queria a interlocução e as centenas dele conversaram lá do espelho. Só que isso não vale. O que vale mesmo é ter agora muitas pessoas de verdade construindo um hexágono, o RADAR COMUNITÁRIO sem dono, sem rumo, mas querendo o bem de todos, o sossego.
Carlos do Mestrado e o caduco de hoje fizeram as pazes. E tu, leitor ou leitora, já te acertaste com o teu Eu de ontem? Conheces a ti mesmo?

Quanta viagem! E nem bebi! Já pensaram se eu bebesse??


E chegando o carnaval, vai com calma. Aprenda a percorrer a vida como aconselha a Carreta Furacão:

- Siga em frente, olhe para o lado...









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