domingo, 24 de fevereiro de 2019

O manejo florestal do pau-mulato: o anti-ensaio científico - Texto de 2005











Gurupá, 02 de Setembro de 2005*.

Carlos Augusto Ramos


O pau-mulato, cujo nome científico é Calycophyllum spruceanum Benth., pertence à família Rubiaceae, classificada na cadeia sucessional das florestas tropicais como oportunista, heliófila...peraí. Parou. Vamos mudar o rumo dessa prosa. Do jeito que estava, ficava claro que eu ia de encontro aos padrões acadêmicos da vida. Sei que o leitor ou leitora deve ter passado ou ainda passará pela experiência de elaborar algum artigo para uma revista de ciência e saibam que não vou avacalhar com todo o sistema de pesquisa vigente e sua padronização redacional. Não é o caso. É importante o garbo para redigir uma investigação científica.

Entretanto, minha indagação é: já pensaste transformar seu estudo em uma forma simples e didática para que todos tenham mais chance de entender o que você quer dizer. Já avaliou a sua intenção real de devolver à sociedade o que aprendeste e pesquisaste? Alguém que você gosta muito entenderia o seu recado? Alguma tia, daquelas que encontras no típico almoço de domingo, captaria a vossa mensagem, ó renomado guru?

Eu mesmo tenho tentado escrever artigos e ensaios que seguem as normas de escrita acadêmicas. Sinto-me limitado por não conseguir escrever de forma complicada, ou prolixa, como diriam alguns colegas. De tanto andar em comunidades na Amazônia, fiquei por demais “avexado” em redigir para gente simples entender. Feitas tais considerações, vamos voltar ao tal pau-mulato.

Pois é, o mulateiro é uma árvore de várzea, mas não sei ainda porque  cargas d’água o sujeito em grande quantidade só aparece nas áreas que correm junto ao leito do rio Amazonas, principalmente na região que vai do município de Alvarães à Costa Amapaense, na foz do Grande Rio Amazonas. Deve ser alguma coisa relacionada ao vento, já que suas sementes são verdadeiros pozinhos e as correntes de ar mais fortes as jogariam longe. O interessante é que não se encontram a mesma quantidade (são raros indivíduos) entre Belém e Breves ao longo do rio Pará, onde também venta muito. Será que o estreito de Breves isola essas árvores?

Voltando a falar das flores e lembrando Geraldo Vandré, a floração do mulateiro ocorre praticamente o ano inteiro, de fevereiro a dezembro, pelo menos no que pude notar. Não, não fiz uma experimentação de repetições e mais repetições para chegar a uma média ponderada. Apenas enxerguei durante seis anos de andada de voadeira, barco ou a pé na lama varzeira o período no ano de florada.

Percebi que as árvores entregam suas pequeninas sementes para que o vento-carteiro as entregue no piso da mata. E assim elas ficam guardadas, dormindo embrulhadas pelas folhas dos pracuubais e açaizais, acalentadas pelo canto do quiquió, ouvindo as estórias das cutacas e tremendo o trovão. Mas por que temer? Às vezes alguns têm que tombar para outros vinguem, pois cada um tem o seu trabalho para mostrar a esse mundo e dessa maneira cai a pracuubeira, atravessada pelo raio fulminante dos céus. Um clarão na floresta se forma e o sol esperto estica-se ao solo, despertando as preguiçosas sementes de pau-mulato para a vida. “Vamu levantá!”, ralha o astro-rei.

A nova planta surge para ser reta, de tronco liso, não por capricho, mas para trocar de casca a todo o momento que se desenvolve. Será que pensa que é camarão para trocar de casca pra crescer? E vai subindo deixando galhos e galhos para trás, rápida, objetiva, procurando luz. Se tiver alguém querendo lhe roubar o sol, procura vencer. Nessa luta, pode perder para a embaúba que a sufoca com sua copa de folhas em forma de palma da mão. Ambas sabem que sua missão é ficar logo desenvolvidas para dar sombra e permitir que um filhote de pracuúbeira se meta entre eles, para quem sabe, no futuro, ser porruda e forte como aquela que tombara em tempos passados. A vida vai assim trocando os papéis na várzea estuarina.

Os adultos paus-mulatos tornam-se poderosos e lá se vão parar nas motosserras dos homens, virando tábua, frechal, até móvel. Quem mandou espichar veloz e com cerne resistente? O marupá também é ligeiro, mas seu interior não é tão maciço. O Angelim é madeira-de-dá-em-doido, porém vagaroso. Eis o mulateiro abastecendo as cidades de Santana, Gurupá, Afuá, Mazagão, Belém e outros logradouros. Seja em tora, seja serrado.

Então alguns ribeiros perceberam que seria bom manejar a espécie desde pequeno. Viram que nas suas roças abandonadas, grelavam inúmeras plantinhas do dito cujo e aí ficou a dúvida: por que não acostumar essas árvores a se comportarem retas desde cedo e espaçados entre si? Pensaram que seria uma maneira de aproveitar as capoeiras. É o que vem ocorrendo.

Primeiro deixam as plantas se engalfinharem por espaço e luz por uns  dois anos, retirando apenas as que não interessam, fazendo uma primeira seleção entre elas a partir do crescimento. Se ainda miúdas você dá liberdade por demais, com espaçamentos, ficam mal acostumadas e desde então começam a esgalhar pra tudo quanto é lado, querendo parecer com outro membro de sua família, o café. A disputa é necessária. Você só precisa livrá-las da sombra de alguma outra árvore ao redor.

Dois anos em diante, começam-se os primeiros espaçamentos. Dois passos de uma arvoreta para outra é o bastante. Alguns produtores têm aproveitado para colocarem mudas de açaí aqui e ali. Como são amigos de copa rala, não incomodam um ao outro em repartirem a mesma senhora, a luz. Seis anos. É hora de um novo desbaste. De dois passos para quatro. Opa, aumentou o espaço, coloca-se o cupuaçu, o cacau, até cana. Isso eu aprendi com o seu Lauro, grande trabalhador lá do rio Jaburu. Assim temos uma área antes jogada ao léu em reserva produtiva de madeira, que consorciada com o açaí e frutíferas, ajuda a valorizar ainda mais a posse do cidadão. De quebra, garantirá estoque de pau-mulato em área já determinada, não tendo que procurar tantas outras árvores na mata.

Agora, se não tens paciência para esperar de doze a quinze anos para as árvores chegarem no ponto de abate, saiba que – segundo a engenheira florestal Sheyla Leão – pode-se aproveitar a casca que o mulateiro solta durante o seu crescimento para venda, fornecendo matéria-prima para empresas de cosméticos e remédios. Alguns trabalhadores de Gurupá venderam seiscentos quilos de casca a cinco reais o quilo, gerando uma receita de três mil reais no ano de 2005. Pronto, seu apressado!


Finalmente, caríssimos e caríssimas, o importante é que você use a mata da melhor forma possível, diversificada e sem modismo, por favor. Chega de ciclos! Borracha, ouro, juta, madeira e palmito foram corridas humanas que somente humilharam os amazônidas de fato, como se só tivéssemos um produto de cada vez para ser ofertado pela natureza. Balela do mercado! Fanfarrões do capitalismo! Sejamos alternativos, geniais, sem perder a simplicidade como os caboclos e ribeirinhos desses rios afora.



Publicado originalmente na página Recanto das Letras.


(*) Texto do ano de 2005, quando dos trabalhos de Carlos Augusto Ramos na ONG FASE Gurupá. Foto da Oficina de Manejo Florestal de Pau-Mulato, Ilha de Santa Bárbara, Gurupá-Pa. Agosto de 2001. Foto: Carlos Ramos.
(*) Pessoas na foto (se minha memória não falha e obrigado à Arikeyla Torres pela ajuda) - Benedito, Romualdo, Benedita, Joel, Ozinaldo, Maria Jose,  Benedito, Sílvio, Andrezinho (agora deve estar Andrezão rsrs), Manoel do Carmo, Ricardo Júnior e Francisca.



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