Belém, 10 de março de 2019.
Lamberto, o Traumatizado, estava na clínica, aguardando a recuperação de Maria Aneci, que estava acometida de vômito e diarreia. Lamberto passou a manhã ao lado da neta até sua filha Shana (outra traumatizada), chegar para substituí-lo.
"Como ela está?".
"Ela já foi medicada e vai ficar aqui tomando soro. Segundo o doutor, ela já vai melhorar".
"Graças aos céus. Pai, vá pra casa, almoce e depois te mando notícia quando a gente for sair daqui. Só vai lá na recepção pegar o cartão dela que eu acabei esquecendo. Traz pra mim? Ahh, aproveita, vai na cantina que fica no mesmo andar e traz uma coxinha e um suco de laranja pra mim".
"Tá bom. Já volto".
Após pegar o cartão, Lamberto se dirigiu à pequena cantina dentro daquela clínica. Pessoas sentadas, comendo salgados, bolos, doces e tudo o que fosse necessário para enganar a fome naquelas quase 12 horas. Lamberto pediu os salgados quando a televisão jogou sua chamada anunciando o que viria no Jornal Hoje sobre a crise humanitária na Venezuela, enquanto quatro pessoas conversavam alto para as outras ouvirem.
"Tá vendo? Tá vendo?? Tipos desse, aliado do PT, tomam o poder e dá nisso, fome, fome e mais fome! Tem que ir lá tirar ele na marra!".
A única mulher na mesa não concordou. "Ei cara, até parece que tu vive nos anos 1990! Tu não lembras da falsa história das armas de destruição em massa?? Tinha um cara escroto no poder sim lá no Iraque, mas no final das contas, era tudo pra ter o controle do petróleo dos caras. Tu não reparas a coincidência?".
"Tem é que tirar esses corruptos e botar o exército pra tomar conta. Aí sim, tu vai ver ordem em todos esses países daqui da América do Sul!".
A moça valente continuou:
"Tu não lembras dos anos 80? Quanta gente morreu na Nicarágua, Paraguai, Chile por causa desses falsos salvadores da pátria?? E nem te digo da corrupção desses doidos! Tu não ouviste falar das torturas??".
"Que tortura que nada, coisa inventada pela Grande Mídia!".
"E a perseguição nos anos 70?? Tu sabes disso? Tu falas da Grande Mídia contra, mas ela foi quem mais se deu bem com isso aqui no Brasil...".
Um outro da mesa se meteu na conversa já alterado:
"Acho que tu concorda com esse Maduro. Tu deves achar que o Lula não merece ser preso também, né?? Acho que tu é comunista!".
A moça ironizou:
"Pronto! Bateu os anos 60! Ahhhh, estamos cercados de comunistas no Brasil que irão comer as criancinhas, ahhhh a gente já vive num quase socialismo com bancos comendo metade da nossa grana, ahhhh, meu Deus".
O último que faltava falar, exprimiu voz baixa mas ameaçadora:
"Cuidado ao mencionar Deus, tu pode ser castigada...".
Lamberto com a coxinha e o suco de laranja na mão raciocinou e antecipou a moça, balbuciou palavras ao passar pela mesa: "Inquisição? Século XV? Torquemada??"
Disse o que disse e seguiu adiante.
Antes da porta do elevador fechar, reparou naquelas palavras animalescas babadas e olhares coléricos por três das quatros pessoas daquela mesa em sua direção. Grunhiam como Australopithecus. A moça corajosa sorria e balançava a cabeça para Lamberto. Segundos de cumplicidade.
No crachá dela, de funcionária daquela clínica, estava escrito: Luzia.
Aquela que tinha evoluído.
Sem traumas.
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