Carlos Augusto Ramos[1]
“Esta terra
é desmedida
e devia ser
comum,
Devia ser
repartida
um toco pra
cada um,
mode morar
sossegado.
Eu já tenho
imaginado
Que a
baixa, o sertão e a serra,
Devia sê
coisa nossa;
Quem não
trabalha na roça,
Que diabo é
que quer com a terra?”
A Terra dos
Posseiros de Deus – Patativa do Assaré
Hábito que tenho ao ler normas e
leis é focar nas regras, nos parágrafos, nos imperativos, proibições, autorizações, deveres e
direitos, no limite de minhas capacidades por não ser da área do Direito.
Normal, pois é o que interessa na maioria das pessoas, na objetividade de ver
quem ganha e quem perde nos marcos legais que se estabelecem. Nesse sentido, entendo
que é um marco a nova lei de terras do Estado do Pará, lei n° 8.878, de
8 de julho de 2019, que dispõe sobre a regularização fundiária de ocupações
rurais e não rurais em terras públicas do Estado Pará e que revoga a lei
n°7.289, de 24 de julho de 2009; e o Decreto-Lei n°57, de 22 de agosto de 1969.
Para fugir do trivial e diante do
nosso quadro político desde 2016, passei a prestar mais atenção nos conceitos das leis. Observo que ganham espaço nos últimos anos entrelinhas, tons, subtons e eufemismos que delicadamente entretecem
perversidades no Estado de Direito, minando-o e legitimando violações na
Constituição, ferindo-a, num passo posterior de violência física, muitas vezes
sem o agredido saber de onde veio a justificativa da retirada de seus antes
entendidos direitos. Assim é o congelamento dos gastos públicos por 20 anos
(agora 19 anos, ufa!) pelo Governo Federal[2]; assim é o subjetivo termo “sob forte emoção” para um policial atirar em alguém,
de acordo com a proposta de pacote anti-crime do Ministro da Justiça (?); assim
é a prisão de uma pessoa por “atos indeterminados”. A cobra aprendeu a não ser objetiva: subjetivamente ela se arrasta em direção às suas presas.
E seguindo essa reflexão de definições
e conceitos, reparei no artigo n° 5, da Lei 8.878, no seu entendimento sobre legítimo
ocupante de áreas rurais:
“... pessoa física ou jurídica
com ocupação consolidada (em exercício de atividade agrária) ou que
pretendam exercer atividade agrária em terras do Estado...”.
Interessante é jogo de
significados das palavras legítimo (fundado, amparado na lei, legal;
ditado, justificado pelo bom senso, pela razão, justo, razoável), ocupante (que
ocupa neste caso a área pública) e pretendam (que não está na área
pública, porém intenciona estar ou possuir). Instigador é pensar nisso a partir
do monitoramento que as entidades do movimento social do Marajó (principalmente
FETAGRI[3]
e CPT[4])
fazem do Cadastro Ambiental Rural – CAR, um registro eletrônico ambiental que
não dá direito à posse, contudo, tem gerado muita balbúrdia (situação confusa;
trapalhada, complicação). Para Moreira (2017), na natureza jurídica do CAR, a
lei prevê claramente que “o cadastramento não será considerado título para fins
de reconhecimento do direito de propriedade ou posse...”[5].
Porém, denúncias do Grupo Carta de Belém (2018)[6]
apontam para o uso do CAR de má fé como um instrumento de grilagem e promoção de conflitos:
“Os erros de inscrição e
validação no sistema de cadastramento não foram corrigidos, agravando-se
conflitos fundiários devido à confusão realizada pelo CAR entre a análise
ambiental e de posse e propriedade de terra... a situação é ainda mais grave
para os casos em que os povos e comunidades tradicionais não tem oportunidade
de inscrever-se no CAR e de manter a sua inscrição válida no sistema”.
Na própria página da internet, o
Serviço Florestal Brasileiro admite que existem na Região Norte do Brasil, 97
milhões de hectares de áreas cadastráveis para o CAR, porém, com 145 milhões de
hectares cadastrados[7].
No Marajó, por exemplo, o monitoramento até 2018 apontava para 61,3% da mesorregião
marajoara cadastrada no sistema CAR, maior que a área destinada, hoje em 41,9%
(Ramos, 2018[8]), com
casos conflituosos envolvendo este registro eletrônico. Já estou acostumado com
a frase “CAR não legitima posse”, mas na dura realidade da desinformação e
truculência nos interiores do Pará, garimpa-se legitimidade não por meio de bom
senso ou justiça. É a mentira, “mentirando, mentirando”, como diz um sábio que
conheci, numa situação que não é, dizendo-se que não é, mas nos fatos, gente e
empresas pretendentes da terra pública cadastrando, cadastrando, expulsando até[9].
Algo que instrumentalmente me recorda a Pós-Verdade[10].
São pontos como os anteriormente
referidos que me deixam grilado. Um incômodo... aquela palavrinha, pretendam...
No conceito, no entendimento pelo Governo Estadual. A brecha que periga romper a
barragem das más intenções de especular sobre a terra (o fundiário), a água (os
aquíferos de água doce, maiores do mundo na Amazônia) e o ar (créditos de
carbono nas bolsas de valores sem o conhecimento das comunidades). Tudo
executado na surdina por aprovar na Assembleia Legislativa Paraense em primeiro
e segundo turno de um único dia tal lei, mesmo com todas as ponderações dos
perigos de agravar os conflitos no campo e aumentar ainda mais os índices de
desmatamento.
Um grilo me sonda a mente.
Um gafanhoto voa para a mata.
Baratas Kafkianas da Pós-Verdade.
[1]
Engenheiro Florestal, consultor socioambiental, ganhador da Medalha Qualidade
de Vida Ambiental no Pará, outorgado pela Assembleia Legislativa do Estado
do Pará em 2017, a mesma ALEPA que aprovou a Lei de Terras do Pará em 2019 sem
escutar os clamores da sociedade sobre seus riscos ambientais e de geração de violência. Menciono pela ironia que passou a ser este prêmio para mim.
[2]
Ler a Emenda Institucional 95 de 2016.
[3]
Federação dos Trabalhadores Agricultores e Agricultoras no Estado do Pará.
[4]
Comissão Pastoral da Terra, regional Marajó.
[5]
MOREIRA, Eliane. 2016. “Cadastro Ambiental Rural: a nova face da grilagem na
Amazônia?” Sítio da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de
Meio Ambiente. Belo Horizonte, 7 jul. Disponível em: http://www.abrampa.org.br/site/?ct=noticia&id=230
. Acesso em: 10 de julho de 2019.
[6]
Grupo Carta de Belém. 2018. Denúncia: Invisibilização dos Povos e Comunidades
Tradicionais no CAR. Disponível em https://www.cartadebelem.org.br/site/denuncia-invisibilizacao-dos-povos-e-comunidades-tradicionais-no-car/
. Acessado em 10 de julho de 2019.
[9]
Recomendo a leitura da notícia https://www.brasildefato.com.br/2017/04/12/cadastro-ambiental-e-usado-para-legalizar-grilagem-na-ilha-de-marajo/.
[10] Pós-verdade
é um neologismo que descreve a situação na qual, na hora de criar e modelar a
opinião pública, os fatos objetivos têm menos influência que os apelos às
emoções e às crenças pessoais.
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