terça-feira, 20 de junho de 2017

Marajó, Reserva da Biosfera/ Parte 2 – Nunca Somente “Complementares” e Sim Principais, Florestas do Marajó

Açaizal na Ilha Santana, Ponta de Pedras.


“As águas e as florestas
Sustentam nossas vidas
E digo a vocês que elas
São nossas riquezas queridas
...
Há muito vivemos assim
Da pesca, coleta e extração
Tudo de forma sustentável
Pra não haver devastação
...
Cada um fazendo sua parte
Em busca de um ideal
Talvez a “terra prometida”
Em um mundo mais igual...”.
Eliana Barbosa / Ex-aluna da Casa Familiar Rural de Gurupá/ Minha Historinha de Vida.



Carlos Augusto Ramos[1]


Caríssim@s Daniel, Odivan, Gracionice, “Trevoada” e Porfíria,

Ainda temos a sorte, a Providência, temos sim. O Marajó de seus 10,4 milhões de hectares, distribuídos em 16 municípios onde vivem 541 mil[2] habitantes possuem fortuitamente a estrutura natural para aqui arriscarmos dizer que são protegidas pelas florestas.

Florestas de Igapó.

Florestas de Várzea.

Florestas de Terra-Firme.

Florestas de igapó-várzea-terra-firme, alta, baixa, restingada, bambo, tesa, baixão, de gruta, num sem fim.


Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)[3] apontam que a área florestal na mesorregião marajoara é predominante, cujo desflorestamento (perda de floresta até o ano de 2015 segundo o INPE) somam 383.710 hectares (trezentos e oitenta e três mil, setecentos e dez hectares), o que equivale a 4% do total da região, segundo o filtro que fizemos para o Marajó. Assim, a quantidade de área florestada e desflorestada no Marajó por município é:

Área Desflorestada até 2015*
MUNICÍPIOS
ÁREA TOTAL (hectares)
% DO MUNICÍPIO DESFLORESTADO ATÉ 2015
ÁREA DESFLORESTADA (hectares)
% FLORESTAL DO MUNICÍPIO
AFUÁ
837.300
1,34
11.230,00
98,66
ANAJÁS
692.200
2,55
17.660,00
97,45
BAGRE
439.700
4,68
20.590,00
95,32
BREVES
955.000
5,67
54.140,00
94,33
CACHOEIRA DO ARARI
310.200
2,37
7.340,00
97,63
CHAVES
1.308.500
0,74
9.690,00
99,26
CURRALINHO
361.700
5,59
20.230,00
94,41
GURUPÁ
854.000
1,31
11.230,00
98,69
MELGAÇO
677.400
2,37
16.050,00
97,63
MUANÁ
376.600
2,67
10.060,00
97,33
PONTA DE PEDRAS
336.500
1,55
5.230,00
98,45
PORTEL
2.538.500
6,82
173.020,00
93,18
SALVATERRA
104.400
10,91
11.390,00
89,09
SANTA CRUZ DO ARARI
107.500
0,00
0,00
100,00
SÃO SEBASTIÃO DA BOA VISTA
163.200
7,59
12.380,00
92,41
SOURE
351.300
0,99
3.470,00
99,01
Total
10.414.000
-
383.710
-
Média

4

96



O que poderia ser uma boa notícia (e não deixa de ser) a quantidade “discunforme”[4] de floresta ainda mantida só não é maior que a preocupação do avanço nos últimos tempos do desmatamento na região, cuja principal frente vem do chamado “Arco de Belo Monte”, que marcha ameaçadoramente da Transamazônica, por dentro do município de Pacajá aos fundos de Portel e Bagre; e do sentido oeste-leste de Anapu para Melgaço e Portel. De lá emergem verdadeiros “hunos” que rememoram o triste uso do “correntão”[5] para desmatar como o que vem ocorrendo no Projeto de Desenvolvimento Sustentável Liberdade em uma velocidade assustadora[6]. Em muitos casos, o uso de má fé do Cadastro Ambiental Rural tentou dar legitimidade à muitas pessoas que sequer viviam por lá[7]. Deste modo, a rica Floresta de Terra-Firme de Melgaço, Portel e Bagre está sob ameaça, agravada pelos milhares de hectares de florestas empobrecidas pela atividade madeireira nos últimos 40 anos.


Aliás, a floresta depredada ou degradada é algo que não possui a mesma profundidade de debate em relação às áreas desmatadas (até compreensível dada a diferença na paisagem natural), mas é algo real, histórico, cotidiano e algumas vezes insensível no dia a dia das autoridades federais, estaduais e municipais[8]. Em Portel, lideranças comunitárias das Glebas Estaduais Acangatá, Acuti-pereira, Alto Camarapi e Jacaré-puru[9], lamentam que a exploração madeireira tenha causado tantos danos aos estoques florestais nos cerca de 271 mil hectares de florestas públicas em que vivem, incentivados certamente pela desinformação e descaso do poder público sobre o valor dos recursos naturais.   


Mapa do Instituto de Desenvolvimento Florestal e Biodiversidade do Estado do Pará sobre o histórico de exploração madeireira de 1984 a 2014 nas Glebas Estaduais Acangatá, Acuti-pereira, Alto Camarapi e Jacaré-puru, no município de Portel. Aguça a nossa curiosidade de estudar a relação exploração madeireira x pobreza.



Gurupá pela história de seu movimento social em proteger os recursos florestais é uma salvaguarda na terra-firme e um exemplo com iniciativas de manejo e proteção da floresta a partir da adoção dos planos de uso dos recursos naturais[10]. Lembro que em 2008, Pedro Alves, conhecido como “Pedro Tapuru”, falou-me da possibilidade de Gurupá, ao contrário de outros lugares, ao invés de perder, ter ganhado a áreas florestais. De acordo com Pedro (hoje gestor pelo ICMBIO da RDS Itatutpã-Baquiá), estimou-se à época que entre 1999 e 2008 o território gurupaense crescera em 1% em áreas verdes, naqueles mapas mostrados a mim no contínuo monitoramento que fazia. Não foi um trabalho acadêmico, porém, foi uma pista valorosa. Seriam então municípios “verdes” Gurupá, Afuá, Chaves e Santa Cruz do Arari? Não sei, o que dizem é que Paragominas é o primeiro no Pará com este mérito. Merece?


Nos furos e ilhas marajoaras, a floresta é pujante bem verdade, conservada e parceira das famílias agroextrativistas, com toda generosidade da andirobeira, do pracaxizeiro e miriti a ajudar seus habitantes. Plantas nobres que nos ensinam que a floresta é uma boa mãe e sendo um dos seus filhos prediletos, o açaí, um verdadeiro guerrilheiro (sim pois guerrilheiros tem causa, neste caso enfrentar a carestia) que nos livrou da fome, apesar dos coronéis e mandatários quando a terra deixou de ser do nativo, na chegada dos portugueses.  Mata que resistiu bravamente aos ciclos do corte de ucuúba, pracuúba e palmito da Era da Indústria Predatória que se instalou no Marajó entre 1950 e 2006[11]. De uma capacidade notável de se recuperar e que oferece nova uma chance para que cresçamos junto com ela, Nova Era, de uma Nova Biosfera.


Pois bem alimentam, curam, benzem, constroem e até ofertam beleza as florestas do Marajó. Patrimônio natural e conhecimento humano que necessita ser valorizada, defendida e respeitada acima de tudo. A Lei 13.123 de 2015 do Governo Federal que trata do acesso ao patrimônio genético e conhecimento tradicional dos povos e comunidades da floresta regrediu em termos de reconhecimento de direitos da população mais pobre na hora de vender um produto florestal. Por incrível que pareça, é mais correto atentar para as leis internacionais de proteção do conhecimento tradicional como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho do que a própria lei brasileira, que não torna obrigatória a consulta livre, prévia e informada das famílias quando iniciados processos de comercialização envolvendo empresas e governos. A liderança Ewésh Yawalapiti Waurá da etnia Yawalapiti/Waurá (no livro A “Nova” Lei N.º 13.123/2015 no Velho Marco Legal da Biodiversidade: Entre Retrocessos e Violações de Direitos Socioambientais, de Eliane Moreira, Noemi Porro e Liana da Silva), assim resume o dever de se fazer a consulta às comunidades:


“...tem que se consultar necessariamente os povos que habitam aquela região, não simplesmente ignorar a comunidade, até porque, se não são identificáveis, não significa que aquilo não seja de ninguém só porque não houve registros ou publicação em artigos...”.[12]



Então é importante dizer aos agroextrativistas: a Organização das Nações Unidas (ONU) aponta ser um dever dos governos e empresas consultar as comunidades da floresta se estas desejam ou não comercializar seus produtos, e se desejam, como será feita esta relação de modo a proteger o conhecimento e o patrimônio natural existente, numa relação ganha-ganha, alertando que a memória e bem-viver não tem dinheiro que valorize.


Se temos então um território tão original, porque não o reconhecê-lo no devido patamar que lhe é justo? O planeta precisa do Marajó pela natureza que possui e por abrigar a foz do maior dos Rios. O Marajó precisa de ajuda para ser consagrado enquanto riqueza natural e história, já que regionalmente as autoridades estaduais não parecem ter isso ainda claro, haja vista o projeto de lei enviado à Assembleia Legislativa de 31 de maio de 2017 para que a pecuária seja considerada “atividade tradicional” no Marajó e o extrativismo e a pesca artesanal apenas “complementares”, apesar dos rios e matas zelarem pelas famílias há gerações e gerações, num tempo tão longe de nossas vistas modernas que se embrenha nas lendas como a do açaí (ou Iaçá). 

  

Projeto de Lei enviado à Assembleia Legislativa do Estado do Pará



Para reforço dos argumentos de temos um Estado que vira as costas para a floresta e seus habitantes, além do PL acima, foi publicada pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade  - SEMAS  - a Instrução Normativa n°2, de 16 de junho de 2017, que mantém o peso dos tratores Skidders sobre a floresta. Resolve que a UPA única (a extração de uma só vez num único ano em planos de manejo legais, contudo imorais) não será mais permitida, mas a mudança é nada substancial, pois diz que “...para PMFS cuja área da UMF seja de 501 a 1500 hectares, a área deverá ser dividida em, pelo menos, 02 (duas) UPA’s, com áreas equivalentes, e para áreas superiores a 1500 hectares, mas que não possibilite completar um ciclo de corte, a área deverá ser dividida em, pelo menos, 03 (três) UPA’s, admitindo-se para primeira UPA metade da área e as duas restantes com áreas equivalentes...” [13]. Significa dizer que o ciclo de corte mais uma vez será amplamente escanteado e mantém-se o perigo de relação empresas x comunidades para em menos de 3 anos empobrecer a floresta, rápido, certeiro, enquanto a espera fica para os jovens pagarem[14]. Cuidado Bagre, Portel, Melgaço e Gurupá...


O texto do projeto de lei pró-pecuária e a instrução normativa pró-madeireira-sem-manejo em suas intenções falam por si. Convém analisar o que simbolicamente elas tratam neste Estado tão incongruente com seus recursos naturais, qual a verdadeira mensagem.

No contraponto, a floresta marajoara em seus 10 milhões de hectares (“mina” de mata) e séculos fala por si e por nós.

Nós falaremos por ela?


A “Marajonosfera” é uma Reserva Planetária da Vida.

Marajó, oxalá, Reserva da Biosfera.


Açaituba, Afuá (texto iniciado), 16 de junho de 2017.






[1] Engenheiro Florestal, consultor socioambiental.
[2] Segundo estimativas do IBGE - http://www.cidades.ibge.gov.br/
[4] Medida cabocla no estuário amazônico para expressar grande quantidade; o mesmo que “mina” ou “murrada”.
[5] O “correntão” é um método de desmatamento utilizando dois ou três tratores interligados por uma grande corrente rente ao solo. É uma forma de desmate implacável, transformando a região de ataque num terreno desolador em pouco tempo.
[6] Dados de monitoramento do mês de junho produzidos pelo IMAZON em 2016, apontaram para 45 focos de calor no sul do Portel, que somadas as suas áreas apontam para 5.222 hectares de desmate, o que nos reforça o argumento de tendência de formação do Arco do Desmatamento de Belo Monte - Instituto do Homem e do Meio Ambiente. IMAZONGEO. 2016. Disponível em http://www.imazongeo.org.br/relatorioBasicoVersaoImpressao.php?categoria=municipio&codCategoria=1505809  . Acessado em 29 de dezembro de 2016.
[7] Em maio de 2017, a Operação Liberdade da Polícia Federal deflagrou nos municípios de Pacajá/PA e Redenção/PA, a investigação de diversos crimes de invasão de terra no PDS Liberdade, extração ilegal de madeira, falsidade ideológica, receptação qualificada, ameaça, dentre outros - http://www.pf.gov.br/agencia/noticias/2017/05/pf-investiga-invasao-de-terras-da-uniao-no-para .
[8] Na opinião dos pesquisadores Lilian Blanc, Joice Ferreira, Marie-Gabrielle Piketty, Clément Bouurgoin, Valéry Gond, Bruno Herault, Milton Kanashiro, François Laurent, Marc Piraux, Ervan Rutishauser e Plinio Sist, “na Amazônia brasileira, a simples divisão entre área florestada e desmatada, utilizada convencionalmente para mapear o estado da Amazônia, não reflete a realidade da situação florestal”. São áreas segundo os pesquisadores que acompanham as regiões colonizadas desde 1960, cujos recursos florestais e fauna foram amplamente explorados. Apontam que nestas florestas degradadas foi alterada profundamente a estrutura e a função destas a partir da perda de sua biomassa, diminuição da altura do
[9] O decreto estadual 579 de 30 de outubro de 2012 destinou estas glebas para uso das comunidades tradicionais locais, num primeiro passo importante de regularização fundiária.
[10] Mesmo em Gurupá com sua vanguarda de organização social, a relação empresa e comunidades quilombolas para o manejo florestal madeireiro instalada em 2011 tem causado debates sobre a sua sustentabilidade socioambiental.
[11] A partir da análise dos sistemas agrários anteriores feitas por Armando Souza e Denise Schaan e as experiências de campo deste autor permite-me exercitar a indicação de um novo período histórico no Marajó. A partir de 1950, o processo de extração dos recursos naturais em terras marajoaras se intensificou, com destaque para a indústria madeireira e do palmito, cujo ápice e decadência nos anos 2000 marcariam um Sistema Agrário da Indústria Predatória que, como o próprio nome já indicaria, seria marcado pela falta de planejamento e sobre-exploração dos recursos naturais, favorecendo pequeno grupo de pessoas sem grandes preocupações em relação aos estoques florestais existentes e com as com os habitantes dos municípios onde atuavam. No exercício que continuamos, a Era da Indústria Predatória termina com a criação das Reservas Extrativistas e Projetos de Assentamentos Agroextrativistas do INCRA a partir de 2006, primeira vez desde o sistema agrário indígena que a terra é de quem trabalha na terra. Assim nasceria a Era do Agroextrativismo (mas será?), aqui contemporâneo – ver Nota Técnica Fundos Florestais Comunitários no Marajó: gerando economia e autonomia - Disponível em http://www.recantodasletras.com.br/e-livros/4760368
[12] Moreira, E. C. P.; Porro, N.M.; Silva, L.A.L da. A “Nova” Lei N.º 13.123/2015 no Velho Marco Legal da Biodiversidade: Entre Retrocessos e Violações de Direitos Socioambientais. / Eliane Cristina Pinto Moreira (Org.); Noemi Miyasaka Porro (Org.); Liana Amin Lima da Silva (Org.). - São Paulo : Inst. O direito por um Planeta Verde, 2017. 280 pp.:
[14] Na exploração de UPAs únicas por empresas quem extrai se serve do melhor do estoque florestal existente, demorando-se 30 anos para a recuperação do volume de madeira original. Ou seja, em uma comunidade que possui relação com uma empresa madeireira com mais de 1.500 hectares envolvidos, poderá se ter a licença para extrair madeira (sim, porque isso é o que a SEMAS aprova, licenças para se derrubar árvores, completamente diferente do que preconiza o manejo florestal) para que em 3 anos o contrato termine. Com isso, um jovem de 15 anos desta comunidade passará boa parte de sua vida economicamente ativa sem ter madeira para fins comerciais. É justo a decisão de hoje interferir numa geração inteira? Nossa opinião é que isso configura um crime socioambiental com o Governo do Estado do Pará sendo cúmplice.

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