Caríssim@s,
Eis que achei um texto publicado em O Liberal em 2002. Como não encontrei na internet, resolvi publicar aqui.
De um Carlos jovem e esperançoso. Que nem hoje.
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Zé Trindade, Rio Marajoí, Gurupá-Pa. Foto: FASE, 2002.
Por que manejar o açaí?[1]
Carlos Augusto Ramos[2]
O açaí (Euterpe
Oleraceae Mart.) é a palmeira de maior destaque em importância socioeconômica
nas várzeas que ocorrem ao longo do rio Amazonas e afluentes, sobretudo
naquelas localizadas em áreas de influência flúvio-marinha[3].
Possivelmente, sua utilização pelos ribeirinhos remonta desde os tempos
pré-colombianos. Os frutos do açaizeiro têm servido de base de alimentação para
milhares de pessoas, in natura ou em forma de vinho, contribuindo para
manter a população regional longe do estado famélico que caracteriza outras
partes do país, apesar da pobreza latente do interior amazônico.
Outro
produto do açaizeiro bastante demandado é o palmito, cujo destino é abastecer
os supermercados das grandes cidades, sendo normalmente pouco apreciado nas
regiões de extração. A crescente procura por fábricas e marreteiros[4],
aliada à falta de informação e conscientização dos ribeirinhos, tem diminuído
os estoques de açaí, a ponto de desencadear distúrbios no padrão de vida de algumas
comunidades que exploram a palmeira.
Rio Marajoí, Gurupá-Pa. Foto:FASE, 2003.
Recordo-me
de minha passagem pela vila do Lontra da Pedreira, na segunda metade dos anos
90, como sendo um exemplo emblemático das conseqüências negativas do não
planejamento no uso dos recursos naturais. Distante cerca de 70 Km de
Macapá-Ap, a localidade fora “brindada” com a instalação de uma “palmiteira”, o
que praticamente esgotou em menos de cinco anos, o antigo e farto açaizal de
uma área de aproximadamente 3.000 ha, pertencente à comunidade. Assim, os habitantes
foram forçados a comprar frutos e vinho do açaí de outras localidades, uma vez
que este é imprescindível à dieta local. Ou seja: acrescentaram um item
“importado” à sua cesta básica pela exploração sem planejamento de uma de suas
maiores fontes de alimentação. Atualmente, os comunitários do Lontra da
Pedreira, educados por essa dura lição, têm se esforçado para recuperar seus
açaizais e reverter esse quadro, corroborado pela falência da fábrica de
palmito. Casos como estes, infelizmente, tem aumentado muito nos últimos tempos
nas regiões estuarinas do rio Amazonas.
O
histórico dos planos de manejo de açaizais nativos tem mostrado a predominância
de planejamentos voltados quase que exclusivamente para o aproveitamento do
palmito, com operações de plantio ou condução da regeneração natural, seguida
do corte raso das palmeiras selecionadas para corte e transporte da
matéria-prima até o seu destino final que são as fábricas. Mesmo em regime
comunitário, os planos de manejo de açaizais seguem esta lógica. A extração dos
frutos, por ser uma atividade bastante corriqueira e sem danos aparentes ao
meio ambiente, não justificaria a apresentação de um plano ao IBAMA, com toda a
burocracia e as exigências documentais existentes.
Essa
postura de relativa indiferença da sociedade e dos órgãos ambientais quanto à
inexistência de planos de manejo de açaizais preferenciais aos frutos é digna
de preocupação. Se pensarmos que entidades como o IBAMA são limitadas em termos
de pessoal para avaliar e fiscalizar tantos projetos que surgiriam para manejar
frutos e palmitos em pequenas áreas, poderia soar como loucura a proposta de
cada comunidade amazônica venha a exercer o bom uso de seus açaizais através de
documentos protocolados em um órgão federal. Entretanto, a idéia da existência
de pequenos produtores florestais parece ser bem mais razoável do que a
perspectiva de grandes grupos de supermercado empreendendo grandes projetos na
Amazônia – um filme que a maioria de nós já assistiu e não gostou. Neste
sentido, o cada vez maior desapego aos recursos naturais e o êxodo dos
habitantes locais para as periferias das cidades próximas talvez sejam fortes
argumentos a favor do manejo florestal comunitário dos açaizais direcionados
preferencialmente para frutos.
A
utilização dos frutos é mais vantajosa, tanto econômica, quanto social e
ecologicamente, do que o uso simplesmente do palmito para os ribeirinhos. Ao
contrário da receita bruta de apenas R$250,00 obtidos com o corte de 1000
“cabeças”[5],
estudos tem apontado que o manejo florestal pode aumentar a produção de frutos
em até 30%, gerando uma renda bruta média de R$ 470,00 mensais[6], já
incluídos a venda do palmito retirado daquelas estipes mais velhas e com a
produtividade frutificativa em declínio, que são abatidas para a maior entrada
de luz na mata. Os custos são mínimos. Tal receita está acima da média de
municípios estuarinos como Gurupá, que têm uma renda média mensal familiar de
dois salários mínimos (R$360,00)[7].
Rio Jupatituba em Breves-Pa. Foto: FASE, 2003.
Ecologicamente,
o manejo florestal preferencial aos frutos de açaí é benéfico por manter uma
quantidade bem maior de estipes na área, sem forçar a resiliência da floresta,
o que não ocorre em casos de manejo exclusivamente para palmito. Garante também
a alimentação de pássaros e mamíferos locais e evita a incidência maior de
plantas invasoras e espinhosas. Finalmente, nos aspectos sociais, o aumento da
produção de frutos e de vinho é uma segurança maior para a subsistência da
comunidade e previne problemas como o ocorrido na vila do Lontra da Pedreira.
Durante a
vistoria do IBAMA-Ap ao plano de açaizais nativos da ilha de Santa Bárbara,
aprovado em 30 de Novembro de 2001, com a ajuda da FASE Gurupá, um dos técnicos
vistoriadores levantou questionamentos sobre a pequena área estabelecida para o
manejo (em média 3 ha por posseiro) e o direcionamento dado mais aos frutos do
que ao palmito, o que não garantiria, em tese, um grande retorno econômico –
uma das bases que as atividades sustentáveis preconizam. A reação da comunidade
foi bastante serena. Seus objetivos vão muito
além do que simplesmente ganhar um documento de comprovação do bom uso da mata:
eles querem se tornar produtores florestais, organizando sua produção e
aplicando o que foi estabelecido no plano de uso da comunidade[8].
Desejam também recuperar o estoque de açaizais, impactado pela exploração
desenfreada do palmito em tempos atrás.
Curso de manejo de açaizais e de pau-mulato, Ilha de Santa Bárbara, Gurupá-Pa. Foto: FASE, 2001.
O exemplo
da ilha de Santa Bárbara demonstra que a organização voltada para o manejo de
frutos de açaí pode ser uma oportunidade de inserir as comunidades tradicionais
no âmbito das discussões sobre o futuro da Amazônia. A exploração sustentável
deste e de outros produtos florestais, regida pelo zoneamento da floresta em
áreas de manejo específico para cada recurso, assegura a otimização do uso da
terra, valorizando-a e oferecendo ao ribeirinho motivos para não mais deixá-la,
a não ser que seja para os filhos e netos.
[1] Texto
escrito e publicado em O Liberal em 2002.
[2]
Engenheiro Florestal, MSc., pertecnente ao quadro da Federação de Órgãos
para Assistência Social e Educacional (FASE), atuando no Projeto Demonstrativo
Gurupá, no desenvolvimento do manejo florestal comunitário, no município de
Gurupá, Estado do Pará.
[3]
Delas fazem parte, segundo os professores Rubens Lima e Manoel Tourinho, ambos
da Faculdade de Ciências Agrárias do Pará - FCAP), as Várzeas da Costa
Amapaense, Várzeas do Estuário Amazônico, Várzeas do Rio Pará e Várzeas do
Nordeste Paraense e Pré-Amazônia Maranhense.
[4]
Marreteiros são comerciantes que visitam as localidades ribeirinhas
periodicamente, comprando os frutos e palmito de açaí, camarão, etc., e
vendendo víveres sempre a preços bem maiores do que os oferecidos na cidade
aproveitando a falta de alternativa dos ribeirinhos pelo isolamento.
[5]
Utilizando como média por cabeça de palmito, o valor de R$0,25.
[6] Estimativas
do autor com bases nas experiências em Gurupá. Preço médio da lata (14 Kg):
R$2,00 (moda de preços ao ano).
[7] Segundo
Hermes da Costa Viana, Presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de
Gurupá, informação pessoal.
[8] O plano
de uso é o conjunto de regras gerados pelos próprios ribeirinhos para o uso
racional dos recursos florestais, pesqueiros e agrícolas.
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