domingo, 29 de outubro de 2017

Crônicas do Corte: É Necessária Uma Nova Certificação Florestal Para a Amazônia

Sementes de Andiroba, Rio Jaburu, Gurupá-Pa. Foto: FASE.



Belém, 29 de outubro de 2017.


Carlos Augusto Ramos[1]



Em setembro de 2015, escrevi sobre a certificação florestal[2], voltando-me para a certificação FSC (que significa em inglês Forest Stewardship Council e em português Conselho de Manejo Florestal), cuja sede internacional localiza-se em Bonn, na Alemanha[3]. Sua correspondente no Brasil (FSC Brasil) tem como missão “difundir e facilitar o bom manejo das florestas brasileiras conforme Princípios e Critérios que conciliam as salvaguardas ecológicas com os benefícios sociais e a viabilidade econômica”[4].

Nos dois últimos anos, venho pensando sobre a estrutura de garantia dos mercados em obter produtos florestais advindos do atendimento dos princípios e critérios apontados pelo FSC, a maior certificadora no mundo deste gênero. Cruzei pensamento com a capacidade de resposta aos questionamentos de comunidades da floresta amazônica sobre esta certificação dada às empresas que atuam adjacentemente. Raciocinando também sobre a preponderância[5] (esta é melhor palavra pelo seu significado) da extração de madeira, dos atores envolvidos em suas câmaras (econômica, ambiental e social) e dos plantios de eucaliptos, recomendo um caminho que leve a uma nova certificação florestal.

Mas calma. Permitam-me explicar que não trago considerações oito ou oitenta sobre o tema.

Para o GreenPeace (entidade conhecida pela sua forte pegada ambientalista), o FSC é o principal padrão de certificação responsável de florestas, atuando em 80 países, em 5 continentes. Informa esta organização que até 2013, 7% das áreas florestais do mundo - cerca de 180 milhões de hectares (aproximadamente o mesmo tamanho da Indonésia) – eram certificadas pelo FSC[6]. Os pequenos produtores e comunidades gerenciavam naquele momento 24% de todos os certificados de manejo florestal do FSC.

No Pará, a Associação Comunitária de Desenvolvimento Sustentável do Rio Arimum (ASCDESRA) e a Cooperativa Mista Agroextrativista Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (COOMNSPRA), rio Arimum, em Porto de Moz, são iniciativas comunitárias que mostram ao público através da certificação FSC que é competente para realizar o manejo comunitário madeireiro de suas florestas. O aperfeiçoamento da logística de manejo florestal é um dos principais resultados que o processo de certificação promovera nesta comunidade, com ressonância em toda a Reserva Extrativista Verde-Para-Sempre. Tecnicamente, o manejo florestal da comunidade de Arimum é exemplo a ser seguido, inclusive pelas inúmeras empresas paraenses que possuem planos de manejo florestais madeireiros aprovados legalmente, mas imorais quanto ao impacto que causam.

A certificação FSC tem suas qualidades e ajudou muitos países a disciplinar o uso de suas florestas e promover o reflorestamento como no caso da Índia[7]. Então por que outros sistemas de certificação florestal são necessários se este megaconsórcio funciona há décadas? É simples: Por ser mega e preponderante (lá vai eu encasquetar com esta palavra novamente).

Estabelecido há quase 20 anos, o FSC é amplamente reconhecido como o padrão de certificação global mais alto para o manejo florestal. Contudo, como este vem crescendo rapidamente, cresce também as falhas de interpretação dos padrões que exige, o que resulta em um número crescente de certificados sendo concedidos a operações controversas de manejo florestal. Um alerta desta problemática é o que ocorreu na Floresta Nacional de Saracá-Taquera, no rio Trombetas, Oeste do Pará, onde Ministério Público Federal no Pará (MPF/PA) ajuizou ação civil pública contra empresas madeireiras e instituição certificadora, acusadas de não cumprir as regras do selo FSC conforme previsão[8].

Casos existem em Almeirim[9] e no Espírito Santo[10] que eu testemunhei onde a certificação florestal FSC não dialogou em qualidade com o contexto local e não teve os devidos cuidados no quesito respeito a povos e comunidades tradicionais. Também há situações em que empresas madeireiras certificadas em determinadas áreas são bastante questionadas pela população rural em outros rincões. São reclamações de relacionamento com o morador tradicional da floresta e até mesmo de operações de manejo transgredidas com tal gravidade que deveriam ter tratamento sumário de cancelamento do selo verde[11].

Como toda monocultura é uma afronta à natureza, seja de planta, seja de gente[12], eis que o FSC está a passos largos (a não ser que façam uma profunda reflexão) na homogeneização de ditames que não são da realidade apropriada dos meios de vida locais. Por tal, surge a necessidade de construir formas mais regionalizadas e de uso múltiplo da floresta que digam como deve ser o manejo florestal, seja comunitário, seja empresarial. Seria tolice pensar em eliminação do FSC, mas é preciso opções para competir, orientar, ser alternativa, o que forçaria o FSC a também a se aperfeiçoar. Como não levar em conta que o açaí, maior representante comercial no Brasil entre os produtos de origem vegetal[13], precisaria de uma avaliação de qualidade e princípios feitos principalmente pelo território que o produz? Uma vez que os marajoaras disseram NÃO à pecuária como principal atividade tradicional de sua região e SIM às suas formas tradicionais de uso da floresta (onde o açaí tem destaque)[14], tenho a intuição que é possível uma certificação participativa, territorial e de caráter mais holístico, como já ocorre em outros lugares do país[15].

Dos estudos que faço, aprendo todos os dias que se por um lado, outras certificações de origem como a orgânica afunilam de tal forma seus reconhecimentos a ponto de encarecer e até mesmo elitizar quem é certificável, por outro observo que há um movimento de valorização daquilo que é regional e histórico como no exemplo dos Engenhos de Farinha de Mandioca de Santa Catarina[16], uma maneira também de “autocertificação”. Além disso, no enriquecimento do debate, outras certificações internacionais parecem entender que existem princípios universais a serem seguidos pelo mercado, com peso significativo ao respeito aos povos e comunidades tradicionais. A SA8000 segue este norte, tratando-se de “...norma voluntária que se baseia em Convenções da OIT - Organização Internacional do Trabalho, na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, e na Declaração Universal dos Direitos Humanos[17]”. Cabe também um destaque para a International Analog Forestry Network, na tradução algo como Rede Internacional de Silvicultura Analógica, de sede na Costa Rica, que visa restaurar a produtividade de terras degradadas e construir novas fontes de renda e alimentos para as populações locais. A IAFN também colabora com agricultores familiares e comunidades para manter e restaurar suas florestas e melhorar sua renda e subsistência, inclusive com certificação de produtos[18].

As referências mencionadas anteriormente são apenas uma mostra das oportunidades existentes para motivar construções sobretudo amazônidas de certificações territoriais, na prerrogativa de dizer aos mercados nacionais e internacionais sobre nossas capacidades de proteger nossos recursos naturais e conhecimento tradicional. Com a aprovação da Lei 13.123, de 20 de maio de 2015, que fragiliza o debate sobre a proteção do patrimônio genético e conhecimento tradicional associado, é tempo de movimentar e articular para a defesa de territórios amazônicos.

Mais do que consumidores, precisamos de parceiros conscientes do que se compra e do que se vende, na relação justa das coisas e consequências. Diariamente vigilantes.

Antes do que altas certificações externas, precisamos que o local e as instituições envolvidas entendam os produtos florestais como bens e serviços da vida e que não se apresse o fechamento de negócios sem uma devida e consistente discussão.

Mais do que consultores de alto gabarito, precisamos de lideranças comunitárias e técnicos articuladores fazendo este trabalho de esclarecimento à sociedade e evoluindo a ciência florestal.

É necessário ofertar procedência dos frutos de açaí, do óleo de andiroba, da madeira manejada, do pescado, etc., a partir da voz local. Até então eu, ignorante que sempre sou, apontava o decreto fundiário e o GPS como ferramentas de segurança da terra. Hoje vejo que um paneiro de açaí que alimenta uma família, uma tapioca feita para uma criança merendar na escola e uma tábua de pracuúba que empareda uma casa também são instrumentos de defesa de territórios.

É mister enriquecer o manejo florestal através de múltiplas formas de uso e de agentes verificadores também diversos, democratizando os meios de comunicação para que as informações cheguem ao maior número de pessoas sobre as ações praticadas.  

Tenho certeza que todos ganharão, até mesmo o FSC, com as lições e aprendizados que irão surgir.


Então, trabalhemos para isso. Abicorados.



 


[1] Engenheiro Florestal, Consultor Socioambiental; e-mail: pantojaramos@gmail.com
[5] No dicionário http://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/preponderancia/ - Estado ou condição de preponderante; hegemonia, predomínio, supremacia.
[9] Ver o ótimo texto de Rogério Almeida em https://apublica.org/2015/02/empate-no-jari/
[14] Numa grande mobilização no Marajó, entidades ligadas à Igreja e Sindicato dos Trabalhadores Rurais articularam um abaixo-assinado contra o Projeto de Lei 107, que estabelecia a pecuária como principal atividade tradicional no Marajó. Foram 6 mil assinaturas de punho. A PL foi arquivada.
[15] Um exemplo é a Rede EcoVida de Agroecologia, no Rio Grande do Sul, onde os agricultores em vez de dependerem de grandes auditorias, conseguem seus selos de alimento orgânico fiscalizando uns aos outros. É um processo baseado em confiança, sem hierarquias — e potencialmente econômico. Enquanto a certificação por auditoria chega a R$ 3 mil anuais por agricultor, a participativa fica na média de R$ 80 - http://www.organicsnet.com.br/2012/06/rede-ecovida-e-a-certificacao-participativa/ .

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