sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Crônicas do Corte: E o Serviço Florestal Brasileiro foi parar no MAPA...




Carlos Augusto Ramos[1]
Pollyanna Coêlho de Sousa[2]


O Serviço Florestal Brasileiro (SFB) até o final de 2018 era uma unidade vinculada ao Ministério do Meio Ambiente. Desde a sua criação em 2006, por meio da Lei 11.284 de Gestão de Florestas Públicas, tem objetivado “a missão de promover o conhecimento, o uso sustentável e a ampliação da cobertura florestal, tornando a agenda florestal estratégica para a economia do país”[3].

Um dos pilares iniciais do SFB foi a implantação das chamadas concessões florestais, contratos que permitem a exploração de madeira por empresas em florestas públicas. Tais permissões só ocorrem após passarem por um processo licitatório em que prevalecem o melhor preço pago ao Estado Brasileiro pela extração da madeira em pé, melhor plano de manejo florestal e melhores estratégias de beneficiamento dos produtos florestais madeireiros e geração de empregos nos lugares onde é implementado. Ao contrário do que se previa, tendo por base as denúncias de que poderia ser uma maneira de privatização da floresta,  gerou um amplo debate e operacionalização do uso florestal promovido pelo Estado Brasileiro. Antes da lei 11.284, as empresas entravam em qualquer área pública, exploravam, criavam o conflito e se retiravam, quase nada a deixar em termos de arrecadação para os cofres públicos. Não que isso não ocorra hoje em dia, porém, é matéria resolvida na lei que toda exploração madeireira empresarial em florestas públicas sem plano de manejo e sem gerar arrecadação é crime ao meio ambiente e ao tesouro[4].

Hoje cerca de 1,018 milhões de hectares estão destinadas para 12 concessões federais em regime de manejo florestal que respeita os ciclos de corte[5]. Em 2017, segundo o relatório de monitoramento do SFB, arrecadaram-se 6 milhões de reais[6] de um total de 174 mil metros cúbicos explorados, valores repartidos entre a União, Estados e Municípios.  Para se ter uma ideia de escala de valores, no mesmo ano de 2017, o município de Portel-PA, Marajó, segundo estudos do IBGE/PEVS[7], movimentou cerca de 217 milhões de reais a partir da comercialização de 990 mil metros cúbicos de madeira em 2016.  Quanto poderia arrecadar Portel se considerado o Imposto Sobre Serviços[8]? Quanto desse volume de madeira (990 mil metros cúbicos) vem de áreas particulares? Teriam madeira de florestas públicas? Se comprovado que sim, que houvera exploração indevida em florestas públicas, qual é a dívida destas empresas ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal, que recebe os recursos da exploração em florestas públicas?

Infelizmente, alguns processos de outorga florestal culminaram na assinatura de contratos com empresas para a exploração de madeira falhando em casos como da Floresta Nacional de Caxiuanã no Pará[9] e Flona Saracá-Taquera[10] quanto ao reconhecimento do uso legítimo da terra e dos territórios das comunidades tradicionais locais. O artigo 6º da Lei 11.284 é até hoje um dos mais valiosos da Lei 11.284 em termos de defesa de direitos dos povos e comunidades tradicionais, o qual deve ser observado e respeitado[11]. Não é justo que comunidades destas Florestas Nacionais que vivem há gerações não tenham seu Contrato de Concessão de Direito Real de Uso como no caso das famílias de Caxiuanã, enquanto que em curto prazo empresas recebem sua concessão florestal.

Em se tratando de comunidades tradicionais, além da Gerência Concessões Florestais, outra importante gerência era abrigada no SFB: a de Florestas Comunitárias. Este departamento lida com a maior área somada de florestas públicas, onde vivem comunidades tradicionais em suas reservas extrativistas, florestas nacionais, territórios quilombolas, reservas de desenvolvimento sustentável, projetos de desenvolvimento sustentável e projetos de assentamentos agroextrativistas, abrigando territórios tradicionais reconhecidos pelo Decreto 6.040/2007. Tal decreto instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais[12].  Nas Florestas Comunitárias, que somam 136 milhões de hectares, vivem cerca de 2 milhões de agroextrativistas, agricultores familiares e assentados da reforma agrária[13].  Apesar do contingente de habitantes e da abrangência, ficou esta gerência relegada à um segundo plano dentro do SFB nos primeiros 5 anos de sua criação.

O resultado mais substancial no período da Gerência de Florestas Comunitárias, como incentivadora da política florestal no país, foi a publicação do Decreto nº 6.874/09, que instituiu o Programa de Manejo Florestal Comunitário e Familiar, que conceitua esta categoria de manejo como sendo “a execução de planos de manejo realizada pelos agricultores familiares, assentados da reforma agrária e pelos povos e comunidades tradicionais para obtenção de benefícios econômicos, sociais e ambientais, respeitando-se os mecanismos de sustentação do ecossistema”.  Este marco legal permitiu que iniciativas comunitárias como as da COOMFLONA, Flona Tapajós, Santarém-PA[14], e da ACDSRA[15], Reserva Extrativista Verde Para Sempre, Porto de Moz-PA, tivessem a oportunidade de receber amparo institucional e de divulgarem ao mundo que o manejo florestal comunitário madeireiro é viável economicamente para as famílias locais, cuja relação e cuidados com a floresta são bem mais presentes do que a relação fria de negócios tratada pelas empresas.  

Com a publicação em 2012 do Decreto 12.651, conhecido como o Novo Código Florestal e de sua regulamentação por meio da Instrução Normativa MMA nº 2 de 5 de maio de 2014 , é criado o Cadastro Ambiental Rural - CAR, assim descrito na página do SFB como o “registro público eletrônico de âmbito nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais, com a finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais referentes à situação das Áreas de Preservação Permanente - APP, das áreas de Reserva Legal, das florestas e dos remanescentes de vegetação nativa, das Áreas de Uso Restrito e das áreas consolidadas, compondo base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento...”[16].  De gestão do SFB, até 30 de novembro de 2018, a unidade verificara o cadastro de 5,5 milhões de imóveis rurais no Brasil, totalizando uma área de 469.763.245 hectares inseridos na base de dados do sistema SICAR[17].

Com a nova função e tendo como diretriz a sua prioridade de execução e gerenciamento, o Serviço Florestal Brasileiro passou a ter o CAR como carro-chefe, mais uma vez relegando-se a um segundo ou terceiro plano as atividades da Gerência de Florestas Comunitárias. Mesmo o diálogo sobre esta importante ferramenta ambiental com as comunidades tradicionais na Amazônia não foi satisfatório, haja a vista: a) a dificuldade de homologação no sistema do Módulo Povos e Comunidades Tradicionais para se fazer CARs Coletivos; b) o número de casos de grilagem de terras utilizando o CAR em áreas comunitárias, denunciados por várias entidades da sociedade civil, pesquisadores, membros do Ministério Público e jornalistas[18]; c) os primeiros casos de uso do CAR para especular sobre créditos de carbono[19]. Interessante notar que os números do SFB comprovam que dos 93 milhões de hectares de áreas cadastráveis na Amazônia, 142 milhões foram cadastrados no sistema, uma diferença a mais de quase 50 milhões de hectares que pode ser a chave do entendimento das causas que ajudaram no aumento dos conflitos agrários na região nos últimos anos.

Suas câmaras de diálogo, sobretudo a Comissão de Gerência de Florestas Públicas e o Conselho do Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal permitiram o debate para que houvessem avanços na política florestal no Brasil. Não se avançou a contento como se esperava talvez por falta de uma melhor comunicação com o público em geral e mesmo com parceiros institucionais como o ICMBIO e INCRA, mas lá estava o SFB, com suas ferramentas e espaços para serem ocupados pela sociedade.   Estando agora no MAPA ou, sem rodeios, politicamente nas mãos da Bancada Ruralista com seu fundamentalismo agrotóxico, como fica a discussão entorno das florestas brasileiras? Terá ironicamente o SFB o mesmo destino das milhões de árvores derrubadas pela ala mais vil do agronegócio ganancioso que não se mostrou capaz de mudar seus conceitos e práticas? Nem campanhas “agropop-tech-tudo” conseguiram apagar suas irresponsabilidades.


E agora? O que fazer?


Após a “ressaca” por tal mudança repentina e inimaginável há pouco tempo - e é preciso entender que tal ressaca deve ser imediatamente superada – chega-se a um novo momento, que deve ser de calma, reflexão e atitudes. Ficar chorando e hostilizando os simpatizantes do novo governo só irá fortalecer ainda mais as forças malignas que rondam nossos recursos naturais que perceberam sua real chance de decidir a vida de milhões de pessoas e de toda biodiversidade brasileira em nome lucro máximo para poucos.

Antes de tudo, é necessário que se tenha um olhar sem preconceito para o MAPA enquanto instituição e missão. Existem iniciativas importantes que devem ser ressaltadas com relação a recuperação de áreas degradadas, que também é um dos papéis do SFB. A Lei 10.711 que instituiu o Sistema Nacional de Sementes e Mudas, o Registro Nacional de Sementes e Mudas e a Instrução Normativa 56/2011 são exemplos de regulamentações do MAPA que vão de encontro ao processo de recuperação florestal, pois garante a procedência ao ato de plantar. Mesmo que hajam críticas atuais de que a burocracia do MAPA dificulta a vida dos produtores, é importante reconhecer que é melhor ter algo para criticar do que não ter elemento algum para enquadrar os grandes produtores agrícolas quanto aos impactos causados por estes nas áreas de preservação permanente, além de ser uma tentativa de regularizar e fortalecer este ramo florestal – reposição/plantio florestal.

Outro exemplo da interação que o MAPA pode ter com o setor florestal e até da Gerência de Florestas Comunitárias são as regulamentações que versam sobre a produção e comércio de produtos da sociobiodiversidade como a castanha do Brasil, desde o extrativista até o exportador no cuidado e obediência às normas de proteção à esta espécie da flora brasileira ameaçada de extinção[20], ressaltando também que existem regulamentos para o comércio das demais espécies vegetais, como o cumaru, por exemplo.  Uma vez que o SFB está no MAPA, terá a unidade de política florestal a autonomia para trabalhar no fortalecimento de sua missão e ainda unir esforços com os profissionais do novo ministério que os abriga? Será apenas uma inerte sala misturada na imensidão de setores do Ministério?

Sobre a implementação do Cadastro Ambiental Rural e passagem para a próxima etapa, de inscrição dos cadastrados ao Programa de Recuperação Ambiental - PRA, terá a nova ministra da agricultura pulso firme, autoridade e respeito para agir de acordo com ética e responsabilidade, por exemplo, na execução do cancelamento sistemático dos CARs de má fé espalhados em todo o país, principalmente na Amazônia? Será cumprida o imperativo de se recuperar os milhões de hectares das margens dos rios e igarapés desmatados pela pecuária e agricultura? Atenderá o MAPA/SFB à birra do agronegócio que deseja ganhar mais terra do que já tem[21], desejosos da flexibilização das Unidades de Conservação, Territórios Quilombolas e Terras Indígenas? Perguntas aqui feitas para serem usadas como parâmetro de monitoramento por todos nós.


E referindo-se à participação popular, e se apostássemos no Serviço Florestal pela Sociedade Brasileira?  É esperança possível de virar realidade desde que abandonemos as irresponsabilidades cotidianas com o meio ambiente e que nos mobilizemos para pressionar e moldar as instituições responsáveis. A História está convidando mais uma vez para lutar contra atos de ignorância e violência contra a natureza. Como grita Chico Science na música “Todos estão surdos”,


Você que está aí sentado, levanta-se
Há um líder dentro de você
Faça-o falar...



O jogo não acabou com a eleição e com a posse dos novos mandatários. É apenas o começo de um processo de rejuvenescimento da massa. Temos a obrigação de sermos melhores que os nossos antepassados que deram suas vidas pelas nossas liberdades individuais e coletivas. As pessoas indignadas de hoje utilizam as redes sociais para mostrar sua insatisfação com a realidade, mas para obtermos resultados, temos que fazer com que estes protestos transbordem das redes sociais para as ruas.


Para os rios, para os igarapés.

Para as estradas de seringa.


Para as varridas.


Para os singelos atos de plantar.


Para ato de zelar e contemplar.


Para a discussão nas mesas de jantar das famílias. Que se sirva no prato o nosso amor comum por tantas florestas, tão acolhedoras ao mesmo tempo do imaginário, do real e o do sonho de vidas passadas, vidas presentes e vidas futuras.






[1] Engenheiro Florestal Consultor Socioambiental.
[2] Engenheira Florestal, MSc, especialista em manejo florestal de produtos não madeireiros.
[4] Diante da dificuldade de se adequar às normas da Lei de Gestão de Florestas Públicas, e não raras vezes para fugir da obrigatoriedade de pagar pelo uso da madeira em pé, algumas madeireiras passaram a tentar a sorte nas áreas comunitárias, pressionando lideranças a aceitarem suas propostas. O líder comunitário Antônio Izídio Pereira, de Vergel-MA, acabou sendo assassinado por suas denúncias à exploração madeireira ilegal e grilagem na sua região, episódio classificado pela Anistia Internacional como um caso clássico de “falha sistêmica do Estado brasileiro” - https://jornalggn.com.br/noticia/morte-de-lider-rural-no-maranhao-e-falha-do-estado-diz-anistia.  
[5] As concessões permitem que as explorações madeireiras usem o método de ciclo de corte, de 30 a 35 anos para se voltar para a primeira área de exploração. Interessante notar que o Estado do Pará aprovou muitos planos de manejo madeireiros sem ciclo de corte, naquilo que se chama Unidade de Produção Única – UPA Única, cujos efeitos são danosos à floresta e à geração que não verá por 3 décadas o estoque florestal madeireiro pela retirada em um só ano. Carlos Ramos analisou este trato prejudicial às comunidades florestais em https://meioambienteacaiefarinha.blogspot.com/2013/05/qual-o-manejo-florestal-comunitario-que.html .
[8] O ISS é imposto municipal cobrado sobre a movimentação de veículos que transportam a madeira, no caso as balsas, no valor de 1% a 5% da Nota Fiscal movimentada. Num exercício simplório de balcão, podemos estimar que se pagos aos cofres municipais, de 2 a 10 milhões de reais poderiam chegar à prefeitura municipal para investimento na população portelense. Quanto o município arrecada?
[9] Fiz registro neste Blog da reinvindicação das comunidades de Caxiuanã - https://meioambienteacaiefarinha.blogspot.com/2015/09/duvidas-das-comunidades-de-caxiuana_8.html
[11]Segundo o artigo 6º da Lei de Gestão de Florestas Públicas “...Antes da realização das concessões florestais, as florestas públicas ocupadas ou utilizadas por comunidades locais serão identificadas para a destinação, pelos órgãos competentes, por meio de: I - criação de reservas extrativistas e reservas de desenvolvimento sustentável, observados os requisitos previstos da Lei no 9.985, de 18 de julho de 2000; II - concessão de uso, por meio de projetos de assentamento florestal, de desenvolvimento
sustentável, agroextrativistas ou outros similares, nos termos do art. 189 da Constituição Federal e das diretrizes do Programa Nacional de Reforma Agrária; III - outras formas previstas em lei...”.
[12] Sem dúvida este é um marco legal histórico que deu visibilidade aos vários grupos culturalmente diferenciados que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua sobrevivência.  Por impedir a especulação fundiária e de projetos agrícolas de larga escala, não é à toa que a Bancada Ruralista se mobiliza para derrubar tal avanço no reconhecimento dos povos e comunidades tradicionais  - https://www.brasildefato.com.br/2018/08/21/bancada-ruralista-arma-mais-uma-ofensiva-contra-povos-tradicionais/ .
[14] A Cooperativa Mista da FLONA Tapajós (COOMFLONA) teve sua origem com o Projeto de Apoio ao Manejo Florestal Sustentável na Amazônia (PROMANEJO) - https://www.facebook.com/pg/coomflona/about/?ref=page_internal
[15] O manejo florestal praticado pela comunidade Arimum é gerenciado pela Associação Comunitária de Desenvolvimento Sustentável do Rio Arimum - ACDSRA e Cooperativa Mista Agroextrativista Nossa Senhora do Perpétuo Socorro – COOMNSPRA - http://arimum.blogspot.com/2015/10/associacao-e-cooperativa-que.html
[19] Moradores da Gleba Estadual Jacaré-puru em Portel tem relatado à Comissão Pastoral da Terra e Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Portel o caso da visita de instituições estrangeiras oferecendo relações comerciais relacionados à venda de créditos de carbono.
[20] A Castanheira é uma árvore protegida por lei. No parágrafo 29 do Decreto Federal Nº 5.975 de 30 de novembro de 2006, estabelece-se que “... não são passíveis de exploração para fins madeireiros a castanheira (Betholetia excelsa) e a seringueira (Hevea spp) em florestas naturais, primitivas ou regeneradas...”.
[21] No Atlas do Agronegócio 2018, constata-se que o Brasil é o 5º maior concentrador de terra entre os país do mundo. O Brasil tem 45% de sua área produtiva concentrada em propriedades superiores a mil hectares – apenas 0.91% do total de imóveis rurais - https://br.boell.org/pt-br/atlas-do-agronegocio.





4 comentários:

  1. Muito rico esses teus comentários, temos que acordar desse comodismo e lutar pelos recursos das nossas florestas, não podemos mas ser mero espectadores da realidade.

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    1. Muito agradecido, Verônica. Tens razão, não podemos ser acomodados. A guerrilha se faz de várias formas, até plantando uma árvore.

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  2. Um tostão!!!!! Rico e animador! A luta precisa recomeçar!

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