Caríssimos,
Belém, 22 de janeiro de 2012.
Outro dia viajando no trecho Chaves-Afuá, noroeste do Arquipélago do Marajó, reparei que dois passageiros conversavam sobre a safra do açaí. Sentado no assoalho da proa do barco, ouvia sua troca de idéias da quantidade de frutos de açaí sendo vendidos por onde passavam e como isso havia, segundo eles, “quebrado” o grande corte de palmito na região em que viviam. Enquanto falavam, vieram-me aquelas lembranças de minha passagem nas localidades que repartiam os municípios de Gurupá e Melgaço, no começo dos anos 2000.
Eram tempos decisivos para o manejo de açaizais no rio Marajoí, onde lideranças locais como Zé Trindade, Ermínio, Lage, Simar, Adonias consolidavam a luta de não mais vender palmito sem que houvesse manejo. Era já a herança da luta iniciada de pessoas como seu Edgar, Agapito e outros trabalhadores rurais nos anos 1980 e 1990 que transformaram aquele rio em destaque regional de produção de rasas de açaí, enfrentando os patrões. Tais discussões incentivadas pelas associações comunitárias do Marajoí sobre os recursos naturais, com assessoria do sindicato dos trabalhadores rurais de Gurupá e da ONG FASE deram a base para a criação da hoje Reserva Extrativista Gurupá-Melgaço, com seus 145.000 hectares de floresta conservada.
Lembro-me nas oficinas de inventário e manejo dos açaizais nativos. Como aprendiz em lidar com a mata de várzea, entendi que só trocando informações com os trabalhadores rurais poderia ter alguma chance de prestar uma boa assessoria. E assim manejamos considerando que todos eram diplomados, eu, na teoria e os agroextrativistas, na vida.
Em tese pensava no padrão de espaçamentos entre touceiras de açaí (comecei com espaço de 3 metros) e na sua quantidade de estipes, logo visto na prática em algo mais complicado de se fazer simplesmente pela floresta de várzea não o permitir por suas inúmeras “repontas” de buçu, murumuru, virola e outras espécies. Como conseqüência o contingente de estipes em suas diversas idades na touceira ficariam variáveis conforme o bom senso a partir do uso de um determinado espaçamento. Até brincávamos como sendo uma formação de futebol: 4 x 3 x 3 no campo e 3 x 3 x 2 na quantidade de estipes por touceira (três perfilhos, três filhotões e 2 produtivos). Neste momento todos passavam a ser técnicos de futebol e de manejo, com os comunitários buscando suas próprias conclusões. O importante no geral era entendermos que touceiras muito próximas e com grande quantidade de estipes jovens diminuíam a produção de frutos de açaí pela competição por luz solar e nutrientes.
Hoje penso que devíamos discutir e aprimorar como fazemos o uso florestal. A homogeneização da mata de várzea pela conversão em açaizais tem surgido nas rodas de discussão sobre o açaí, o temido monocultivo, tão perigosa prática já demonstrada em vários exemplos como a não mais apropriada para a Amazônia e sua floresta.
Na Ilha de Santa Bárbara (bem no meio do caminho entre Santana e Gurupá), em inventário feito por uma equipe a qual eu fazia parte, encontramos em método de amostragem passando pelos vários ambientes como pracuubais, murumuruzais e açaizais uma densidade de 190 touceiras/hectare. Em mesmo exercício realizado para filhos de agricultores no município de Cametá, achamos média de 600 touceiras por hectare, o que chamou a atenção e reforçou a idéia que este município juntamente com Abaetetuba e Igarapé-miri podem ter priorizado notadamente o açaí em relação a outras espécies graças ao boom econômico causado pelas exportações de frutos a partir da década de 2000, aproveitando uma parcela significativa das áreas de cana-de-açúcar abandonadas pelo declínio da cachaça, sobretudo em Abaetetuba. Não seria interessante debater amplamente uma possível concentração de açaizais no Baixo Tocantins?
No caso marajoara, o número de touceiras por hectare bem menor ao caso cametaense poderia ser explicado pela forte presença da mata primária ainda no dia a dia do trabalhador rural, que intercala várias tipologias florestais, o que o torna vantajoso para todos os componentes do ecossistema e mesmo economia varzeira. Um exemplo nesse sentido é o manejo praticado pela Emater em Curralinho, que além de incentivar o equilíbrio entre espaçamento, entrada de luz e sombreamento, tem proporcionado ambiente propício para outros arranjos produtivos como a meliponicultura (obtenção do mel das abelhas sem ferrão nativas).
Com as mudanças climáticas e a “quentura” aumentando de acordo com depoimentos nas prosas que tenho no meio rural, fica imperativo manter a paisagem florestal, diversificada, sistemas agroflorestais, o cacau, o açaí, o pau-mulato, a meliponicultura, a piscicultura, a cutia correndo, o homem pensando na vida enquanto caminha sombreado, tudo em uma mistura sabiamente organizada.
Para combater formas de atendimento ao mercado que não consideram o bem estar em longo prazo da população e a biodiversidade, é fundamental propor maneiras de uso da terra harmoniosas com a natureza e que valorize a mata em pé. O manejo de açaizais praticado no Marajó consolidou-se, pois já subjugou a extração predatória do palmito em muitos municípios, além de ter sido a pauta de várias reuniões de família e comunidades sobre seus limites de respeito, diminuindo conflitos de terra. Eu nunca poderia imaginar em 2001 ver palmito ser negociado em bater de pé pelo trabalhador rural a pelos menos R$0,90 a cabeça e o atravessador ficar sem opção. Em Portel no ano de 2005, testemunhava a venda de palmito a R$0,15 a cabeça e assim se cortavam milheiros e milheiros de estipes. Mais vale o fruto de que o palmito não retornável. Foi um dos primeiros atos que presenciei da peça amazônica: mais vale a floresta em pé do que deitada.
Em tempos atuais de debate sobre os plantios de arroz no estuário, destaco a frase de Dom Alessio, Bispo da Prelazia de Ponta de Pedras, dita em um seminário que “o arroz que vem sendo implantado em Cachoeira do Arari é uma mancha na agroecologia praticada no Marajó”. Segundo Dom Alessio, o Marajó sempre se caracterizou por apresentar uma agricultura rudimentar, bem verdade, mas que vem sendo organizada e melhorada sem perda dos adjetivos de sustentabilidade e convivência com o meio ambiente. Ao contrário disso, fazendeiros - alguns deles vindos da Questão Raposa Serra do Sol em Roraima - estariam plantando arroz com uso de fortes pesticidas e mudando curso de igarapés, impactando o meio ambiente local.
O manejo de açaizais nativos no Marajó tem sido soldado valoroso nesta guerra entre sustentabilidade e irresponsabilidade que vivenciamos. Ajude-mo-lo sempre.
Belém, 22 de janeiro de 2012.
Outro dia viajando no trecho Chaves-Afuá, noroeste do Arquipélago do Marajó, reparei que dois passageiros conversavam sobre a safra do açaí. Sentado no assoalho da proa do barco, ouvia sua troca de idéias da quantidade de frutos de açaí sendo vendidos por onde passavam e como isso havia, segundo eles, “quebrado” o grande corte de palmito na região em que viviam. Enquanto falavam, vieram-me aquelas lembranças de minha passagem nas localidades que repartiam os municípios de Gurupá e Melgaço, no começo dos anos 2000.
Eram tempos decisivos para o manejo de açaizais no rio Marajoí, onde lideranças locais como Zé Trindade, Ermínio, Lage, Simar, Adonias consolidavam a luta de não mais vender palmito sem que houvesse manejo. Era já a herança da luta iniciada de pessoas como seu Edgar, Agapito e outros trabalhadores rurais nos anos 1980 e 1990 que transformaram aquele rio em destaque regional de produção de rasas de açaí, enfrentando os patrões. Tais discussões incentivadas pelas associações comunitárias do Marajoí sobre os recursos naturais, com assessoria do sindicato dos trabalhadores rurais de Gurupá e da ONG FASE deram a base para a criação da hoje Reserva Extrativista Gurupá-Melgaço, com seus 145.000 hectares de floresta conservada.
Lembro-me nas oficinas de inventário e manejo dos açaizais nativos. Como aprendiz em lidar com a mata de várzea, entendi que só trocando informações com os trabalhadores rurais poderia ter alguma chance de prestar uma boa assessoria. E assim manejamos considerando que todos eram diplomados, eu, na teoria e os agroextrativistas, na vida.
Em tese pensava no padrão de espaçamentos entre touceiras de açaí (comecei com espaço de 3 metros) e na sua quantidade de estipes, logo visto na prática em algo mais complicado de se fazer simplesmente pela floresta de várzea não o permitir por suas inúmeras “repontas” de buçu, murumuru, virola e outras espécies. Como conseqüência o contingente de estipes em suas diversas idades na touceira ficariam variáveis conforme o bom senso a partir do uso de um determinado espaçamento. Até brincávamos como sendo uma formação de futebol: 4 x 3 x 3 no campo e 3 x 3 x 2 na quantidade de estipes por touceira (três perfilhos, três filhotões e 2 produtivos). Neste momento todos passavam a ser técnicos de futebol e de manejo, com os comunitários buscando suas próprias conclusões. O importante no geral era entendermos que touceiras muito próximas e com grande quantidade de estipes jovens diminuíam a produção de frutos de açaí pela competição por luz solar e nutrientes.
Hoje penso que devíamos discutir e aprimorar como fazemos o uso florestal. A homogeneização da mata de várzea pela conversão em açaizais tem surgido nas rodas de discussão sobre o açaí, o temido monocultivo, tão perigosa prática já demonstrada em vários exemplos como a não mais apropriada para a Amazônia e sua floresta.
Na Ilha de Santa Bárbara (bem no meio do caminho entre Santana e Gurupá), em inventário feito por uma equipe a qual eu fazia parte, encontramos em método de amostragem passando pelos vários ambientes como pracuubais, murumuruzais e açaizais uma densidade de 190 touceiras/hectare. Em mesmo exercício realizado para filhos de agricultores no município de Cametá, achamos média de 600 touceiras por hectare, o que chamou a atenção e reforçou a idéia que este município juntamente com Abaetetuba e Igarapé-miri podem ter priorizado notadamente o açaí em relação a outras espécies graças ao boom econômico causado pelas exportações de frutos a partir da década de 2000, aproveitando uma parcela significativa das áreas de cana-de-açúcar abandonadas pelo declínio da cachaça, sobretudo em Abaetetuba. Não seria interessante debater amplamente uma possível concentração de açaizais no Baixo Tocantins?
No caso marajoara, o número de touceiras por hectare bem menor ao caso cametaense poderia ser explicado pela forte presença da mata primária ainda no dia a dia do trabalhador rural, que intercala várias tipologias florestais, o que o torna vantajoso para todos os componentes do ecossistema e mesmo economia varzeira. Um exemplo nesse sentido é o manejo praticado pela Emater em Curralinho, que além de incentivar o equilíbrio entre espaçamento, entrada de luz e sombreamento, tem proporcionado ambiente propício para outros arranjos produtivos como a meliponicultura (obtenção do mel das abelhas sem ferrão nativas).
Com as mudanças climáticas e a “quentura” aumentando de acordo com depoimentos nas prosas que tenho no meio rural, fica imperativo manter a paisagem florestal, diversificada, sistemas agroflorestais, o cacau, o açaí, o pau-mulato, a meliponicultura, a piscicultura, a cutia correndo, o homem pensando na vida enquanto caminha sombreado, tudo em uma mistura sabiamente organizada.
Para combater formas de atendimento ao mercado que não consideram o bem estar em longo prazo da população e a biodiversidade, é fundamental propor maneiras de uso da terra harmoniosas com a natureza e que valorize a mata em pé. O manejo de açaizais praticado no Marajó consolidou-se, pois já subjugou a extração predatória do palmito em muitos municípios, além de ter sido a pauta de várias reuniões de família e comunidades sobre seus limites de respeito, diminuindo conflitos de terra. Eu nunca poderia imaginar em 2001 ver palmito ser negociado em bater de pé pelo trabalhador rural a pelos menos R$0,90 a cabeça e o atravessador ficar sem opção. Em Portel no ano de 2005, testemunhava a venda de palmito a R$0,15 a cabeça e assim se cortavam milheiros e milheiros de estipes. Mais vale o fruto de que o palmito não retornável. Foi um dos primeiros atos que presenciei da peça amazônica: mais vale a floresta em pé do que deitada.
Em tempos atuais de debate sobre os plantios de arroz no estuário, destaco a frase de Dom Alessio, Bispo da Prelazia de Ponta de Pedras, dita em um seminário que “o arroz que vem sendo implantado em Cachoeira do Arari é uma mancha na agroecologia praticada no Marajó”. Segundo Dom Alessio, o Marajó sempre se caracterizou por apresentar uma agricultura rudimentar, bem verdade, mas que vem sendo organizada e melhorada sem perda dos adjetivos de sustentabilidade e convivência com o meio ambiente. Ao contrário disso, fazendeiros - alguns deles vindos da Questão Raposa Serra do Sol em Roraima - estariam plantando arroz com uso de fortes pesticidas e mudando curso de igarapés, impactando o meio ambiente local.
O manejo de açaizais nativos no Marajó tem sido soldado valoroso nesta guerra entre sustentabilidade e irresponsabilidade que vivenciamos. Ajude-mo-lo sempre.
Pantoja Ramos
Enviado por Pantoja Ramos em 22/01/2012
Código do texto: T3454942
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