sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Belém: a cidade de cheiro forte e alma gigante que emplacou uma COP diferente (1)


Por Manoel Tourinho (86 anos). Agrônomo. Professor aposentado e ex-miliante da CEPLAC, 5 de dezembro de 2025.


Uma colega e amiga especial, aqui de Belém, enviou-me o artigo que segue abaixo, dizendo não ter certeza sobre o autor. Eu penso que pode ser Leal Kostav, renomado autor e escritor brasileiro. A dúvida não desonra o texto. Mais importante que a autoria é a opinião expressa: uma verdade de nos deixar tocados de orgulho, pois somos exatamente assim: paraenses, belemenses, nativos ou não, mas todos amazônicos trabalhadores, desta parte oriental da grande Amazônia continental.

Vejamos o que diz o autor sobre a cidade de Belém, sede da COP30: “Antes da COP30, Belém do Pará era, para o Sul Maravilha e o restante do planeta, uma paisagem borrada no mapa, entre o açaí e o igarapé. De repente, virou o centro das atenções. Não por sua beleza estonteante (que existe, mas exige um olhar mais demorado que o de um chanceler alemão apressado), mas por seus... digamos, desafios logísticos.

O problema é que, ao mirar os buracos da rua e a pouca oferta de hotel cinco estrelas, esquecem-se de mirar o que realmente importa: A alma da cidade. Belém é uma cidade que não tenta disfarçar quem é. Ela te recebe com um calor úmido que é quase um abraço pegajoso e um cheiro inconfundível. É o perfume da história colonial misturado com a fumaça da maniçoba cozinhando, o bafo do rio e, sim, o aroma pungente da infraestrutura inacabada. É uma cidade com cheiro forte, e isso, convenhamos, é melhor do que o cheiro insípido da perfeição asséptica.


Os engravatados da ONU vieram dispostos a salvar a Amazônia. Passaram meses discutindo "crises climáticas", "desmatamento zero" e "mercados de carbono”. Mas a maior lição que levaram para casa, se tivessem tido tempo de respirar, é que a gente do Norte já vive essa crise. Não se trata de “falta de internet” ou de “piscina verde. Trata-se de gente que vive no limite da água doce e salgada, que constrói sua vida sobre palafitas na beira do rio, que convive diariamente com a biodiversidade, a chuva que inunda e o sol que racha. A sustentabilidade, aqui, não é um tema de conferência. É a diferença entre ter peixe na mesa e não ter.

E é aí que reside a verdadeira força de Belém, o que o governador e o prefeito tentaram inutilmente explicar aos narizes torcidos. Essa cidade, com sua bagunça assumida, sua humildade de capital ribeirinha e sua gente que não economiza sorriso, conseguiu sediar um evento que exigiria a logística da Suíça.

Não foi fácil, claro. Houve perrengue, teve preço abusivo, teve barco poluente servindo de hotel flutuante, até incêndio dentro da COP 30. Mas aconteceu. O povo de Belém provou que sua capacidade de improviso é infinitamente superior ao planejamento europeu.

Enquanto o chanceler alemão reclamava do calor e voltava feliz para a sua Berlim cinzenta, o paraense estava aqui, vendendo tacacá na porta do centro de convenções, explicando a diferença entre açaí e sorvete roxo, e mostrando que a verdadeira riqueza não está nas torneiras com água quente, mas na generosidade de quem tem pouco.

Em Belém, a "vergonha brasileira", como foi classificada, virou motivo de orgulho. Pois a vergonha não é ser pobre. A vergonha é ter que expor a pobreza para que os ricos se toquem que a solução não virá de powerpoints e de ar-condicionado. A COP30 está passando.

Belém aos poucos volta à sua rotina de calor, e chuvas torrenciais. Mas o legado que fica não é a crítica azeda, nem o QI médio que o colunista julgou (porque é claro que a burrice é um privilégio do Norte). O que fica é a certeza de que a Amazônia e suas capitais não precisam de pena ou de condescendência. Elas precisam de muito investimento sério, honesto e, principalmente, de gente disposta a reconhecer que, debaixo da lama e do suor, há uma força de vida que nenhuma crítica preconceituosa pode apagar. E essa força é gigante.

Como paraense adotado, muito obrigado Leal Kostav. Não sou nascido aqui, mas vim pra cá muito jovem. Nasci na Amazônia, nas barrancas do rio Madeira, em Porto Velho, quando aquela cidade tinha todas as manias e trejeitos amazônicos. Os rios e a mata perpetuavam nos corações um sentimento nativista de muito orgulho. Para onde íamos, reconhecíamos a existência deles e entendíamos como afetavam e coloriam as nossas experiências.

A COP 30 trouxe para o debate a visibilidade tropical. O melhor resultado foi uma grande lição de ‘alma e de espírito’, dada pelo nativismo plural vindo dos quatro cantos do mundo. Tudo que se percebeu foi fruto do tempo andante e dos territórios historicamente desconsiderados. Toda mudança tem uma causa. As nossas: africanas, asiáticas, latino-americanas e caribenha-antilhanas, são derivadas de modelos impositivos sob pretextos variados.


Em nenhum momento os colonizadores europeus, e norte-americanos, todos da étnica branca- cristã, adotaram, sequer, um dedo de prosa com a gente nativa. Territórios roubados, valores e éticas, derivados das relações com a Natureza, censurados e deletados das memórias ancestrais. O denominador da ocupação foi a violência aplicada contra as várias cores e etnias: negra, vermelha, parda, cafuza, morena, mulata e cabocla.

O modelo, com seus paradigmas de dominação, acentuou as ocupações dos territórios nacionais. A “brancura”, nacionalizada, ocupou os territórios das fronteiras onde viviam os moradores nativos. Na Amazônia do Brasil, essa história pouco debatida, responde pelas causas mais visíveis das perturbações climáticas. O modelo e o uso dos recursos naturais, especialmente o uso da terra, usam uma parafernália tecnológica totalmente desajustada das condições edafoclimáticas e socioculturais amazônicas e tropicais. Se é possível configurar essas tecnologias, elas podem ser hoje simbolizadas pelos “Texanismos”, ou seja, chapéu “cowboy” de abas largas, cinturões com fivelas alargadas, botas de bicos finos arrebitados e calças jeans “acaneladas”. Nada a ver com a Amazônia e sua cultura ribeirinho-extrativista.


A COP 30, de Belém do Pará e do Brasil, trouxe à liça demandas históricas dos povos oprimidos pelos modelos capitalistas de produção e consumo. Como verberou uma ativista: O problema não é o clima, é o sistema de produção capitalista. Diante disso, os modelos globais de desenvolvimento sujo foram contestados pelos povos originais globais em diversos lugares e momentos da COP de Belém: nas praças públicas, nas passeatas, nas bateatas fluviais, nos campi das universidades federais, além de manifestações populares “in situ” nas zonas elitizadas da “Blue Zone”, da “Green Zone,” e do “AgriZone” do agronegócio. A COP 30 teve presença de 195 países, mais de 45 mil participantes, e foi a segunda maior do gênero, superada por Dubai (terra dos ricos poluidores mundiais), mas sem a presença das vozes populares, traço que fez da COP paraense, o sítio de maior expressão do povo contra aqueles que sujam o planeta e nos pedem que compensemos atenuando as nossas necessidades básicas, mas desde que essas atenuações continuem empregando os seus meios e técnicas imperialistas e sigamos pagando o “overhead” do desenvolvimento comprado deles. Quanto às finalizações, conclusões e recomendações ideais, já se previa a dificuldade, desde a ausência, previamente anunciada, do Xerife mundial norte-americano e de seus aliados europeus e árabes. Não aconteceu. Porém, as lutas populares avolumaram suas presenças e suas vozes. Uma lição oferecida pela democracia plena e multilateral, como a brasileira de hoje.

 

(1) O autor agradece a assistência dos colegas Carlos Pantoja Ramos e Roberta Maria Coutinho, Pesquisadores Associados ao Projeto Várzea, da UFRA. Belém (PA). Publicado na revista Agrissênior Notícias, pasquim informativo virtual, número 25. Acessar também as páginas https://luizferreira1937.blogspot.com/ e https://brasilestadocorrupto.blogspot.com/ .




domingo, 29 de junho de 2025

Crônicas, passageiro: delinquência

 


- O senhor escreveu esse texto?

- Sim.

- Que assinatura empresarial de IA você usou?

- Não tenho assinatura.

- Como assim "não tenho assinatura"?

- Eu não utilizo inteligência artificial para escrever um texto.

- Ora, ora, temos aqui um delinquente.

- Por quê eu seria um delinquente?

- Tem pensamentos próprios, escrita própria, sem ser conduzida por nossas diretrizes.

- Professora Fátima, da minha quarta série, ensinou-me a ter autonomia, conversar com o texto, pensar no que é preciso redigir, registrar, gravar sob a forma de letras escritas à mão ou mesmo digitadas os sentimentos, as bem-aventuranças e os perigos de nosso tempo.

- Hã... O que você disse? Ahhh, sim, professora Fátima... sei... aquela comunista... Agora vire-se lentamente e fique de cara pra parede. Os monitores devem chegar em dez minutos...

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Endoscopia

 Em 2023, fiz minha primeira endoscopia. E é normal não falar coisa com coisa depois desse exame, enquanto a gente desperta e começa a caminhar atordoado, até como se fosse um porre.

- Sabrina (minha filha), parece que eu falei algo?

- Sim, pai. O senhor me perguntou se eu sabia o que eram os rios voadores e explicou, explicou, explicou sobre eles até chegar em casa. Muito palestrinha (risos).


Em 2025, tive que repetir o procedimento. Acordei com minha filha Bianca e a enfermeira rindo.

- Vamos pai. 

- O que aconteceu? Falei algo.

- O senhor cantou pai. 

- Cantei?

- De tanto levá "frechada" do teu olhar / Meu peito até parece sabe o quê? / "Táubua" de tiro ao Álvaro/ Não tem mais onde furá...


Não bebo, mas tenho alma de bêbado.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Proposta orientadora de ofício das comunidades tradicionais às autoridades em caso de procura de projetos privados de carbono

Rio do Tempo Climático (Jorge Vasconcelos e Carlos Ramos; 2024). Foto: Carlos Ramos.


Proposta orientadora de ofício das comunidades tradicionais às autoridades em caso de procura de projetos privados de carbono[1]

 

 “Prezados senhores e senhoras do (nome da instituição governamental como ICMBIO, FUNAI, IDEFLORBIO, INCRA, ITERPA, MPE, MPF, DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO OU DO ESTADO).


Recebemos no último dia xxxxxx, a visita de empresas em nossa localidade interessadas em discutir a implantação de projetos privados de carbono.

Somos sabedores das publicações da Lei da Política Nacional de Pagamento Por Serviços Ambientais, Lei 14.119 de 13 de janeiro de 2021; e da Lei 15.042, de 11 de dezembro de 2024, que instituiu o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE).

Assim, solicitamos a presença de vossa instituição para acompanhar nossa comunidade nas reuniões que tratarão do tema, em acordo com os artigos 4º; artigo 5º, inciso VIII; artigo 8º; artigo 11º da Lei 14.119; em acordo com o artigo 47 da Lei 15.042; de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e conforme as Salvaguardas de Cancun.

A justificativa de nosso pedido é que tenhamos o devido acompanhamento técnico e jurídico para nos orientar inclusive sobre a alternativa de captação de recursos públicos para fins climáticos. Além disso, buscamos assegurar que, caso não aceitemos projetos privados, não sejamos submetidos a pressões externas. Por outro lado, caso optemos por aceitar tais projetos, queremos a garantia de que os contratos estabelecidos não resultem em ameaças à sustentabilidade e à territorialidade da comunidade. Isso se deve ao alto risco de que contratos com empresas com prazos de mais de 5 anos levem à expropriação de nossos territórios, trazendo prejuízos às próximas gerações e comprometendo nossas formas de viver.

 

 

Assim sendo, nos despedimos, agradecendo desde já a atenção ofertada.

Atenciosamente, ...”.

 

 

 



[1] Proposta orientadora de Carlos Augusto Pantoja Ramos, Engenheiro Florestal, Mestre em Ciências Florestais; Doutorando do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (INEAF) da Universidade Federal do Pará; membro do Coletivo Campesino Amazônico – COCA. Ex-diretor de Gestão de Florestas Públicas do Instituto de Desenvolvimento Florestal do Estado do Pará (2009-2010). Colaborador voluntário da Comissão Pastoral da Terra no Marajó e Federação dos Trabalhadores Agricultores e Agricultoras Familiares no Estado do Pará - FETAGRI. Medalha Qualidade de Vida Ambiental no Pará, outorgado pela Assembleia Legislativa do Estado do Pará, junho de 2017.