Quibdó, 15 de dezembro de 2019.
Era uma vez uma jabota conhecida como Rabeta. Mal-humorada, avessa a amizades, quando respondia, era só na patada. Vivia no seu casco e deste lugar quase nunca saía. Praticamente achava-se que Rabeta não comia, tal era a sua discrição em comer as marias-mole e as goiabas-do-mato que se anunciavam ao seu redor.
Rabeta tinha raiva do mundo.
Os animais em geral a viam perto do velho jambeiro, árvore que marcava que em certo tempo humanos moraram ali. O macaco-de-cheiro puxava conversa:
- Bom dia Dona Rabeta!
- Quem disse? - respondia lá de dentro do casco.
Cumprimentava o jacaré:
- Boa tarde Rabeta.
- Tu provas? Te sai.
Tentava ser gentil a onça:
- Quer prosear?
- Te sai. E não vem que meu casco é duro ou você já quer perder o outro dente?
- Ó jabota casca grossa - e partia a onça passando a língua no buraco do antes dente canino.
Em geral os bichos desistiam de conversar com Rabeta e desta maneira esta conseguia seu objetivo: ficar na sua, quieta, mastigando as folhinhas e a raiva que tinha do mundo.
Ainda assim, havia a Nara, a ave Guará que todo dia a visitava.
- Olá Rabeta, tudo bem?
- "Tudo" e "bem" juntos não existe. Te sai.
- Credo, Rabeta, só quis dizer Bom dia.
- Não será.
- Tá, como estás?
- Mastigando.
E Nara assuntava e falava, falava, descambava a contar histórias sobre camarões que comeu, dos caranguejinhos que lhe escapavam, da fofoca e críticas por puro despeito às araras, "aquelas coloridas que se achavam"; dos tatus que erravam os buracos de suas casas.
Rabeta, lá dentro do casco, mastigava. Não dava trela.
Só que Nara não desistia de sua amizade.
- Rabeta, olha que eu trouxe pra você: é folha de jambu que eu roubei de uns humanos. Tá até com tucupi.
- Me treme o beiço. não quero.
- Rabeta, olha essa flor de tajá pra colocar por cima do teu casco.
- Vai chamar mamangá pra me ferrar. Não quero. Te sai.
- Rabeta, achei um jabuti bonitão pra ti.
- Pra comer minhas marias-moles? Tô dentro!
- Quer conhecer??
- Não. Tô dentro do meu casco! Te sai.
- Rabeta, tu reparaste como a chuva tá pesada esse ano?
- Não quero.
- Não quer a chuva?
- Não quero papo.
Deste modo seguia o curso da boa relação de Nara (na concepção unilateral desta) à amiga Rabeta.
Rabeta mastigava.
Um dia, enquanto Nara inspirada falava em seus mínimos detalhes sobre a farra dos catitus no marizal da vizinhança, não percebeu que um humano se aproximou e vap, pegou-a pelos pés e a ensacou, provavelmente para lhes arrancar as bonitas penas alaranjadas como o pôr do sol.
Rabeta mastigava sua raiva cotidiana e nem reparou do movimento que se fez lá fora de seu casco. E como o silêncio pairou de repente, pensou: "a doida deve ter ido embora cansada de tanto falar, égua! Devia ter nascido periquito de tanto falar!".
Silêncio ecoou.
Até Rabeta estranhou.
Devagar meteu a cabeça pra fora.
Tudo parado, sequer uma estridulação de grilo.
- Te sai?
E voltou pra dentro.
No outro dia, Rabeta acordou tarde. Pudera, seu despertador matinal não tinha chegado ainda.
- Viu? De tanto não ser bom o dia, a doida da Nara não veio perturbar.
E mastigou sem graça.
Os bichos foram se aproximando de Rabeta. Um a um.
- Rabeta? Bom dia.
- Ihh! Lá vem vocês.
- A gente não sabe como te dizer...
- Primeiro aprendam a falar!
- É que a Nara tá na mão dos humanos...
- Dos humanos?
- Vão tirar as penas dela pra fazer fantasia das festas deles.
- O quê??
- Sentimos muito.
- Sentem? Sentem? Vocês não sentem nada! Não sentem quando a família de vocês é pega por esses monstros que nos cozinham! Nos matam aos poucos! Meu pai, meus irmãos, minha mãe morrendo se debatendo na panela quente!! Eu vi o pé deles se mexendo! Eu vi tudo pequenina que era, debaixo daquele pedaço de lenha! Todos assados! Comidos no sumo do limão! E não foi por fome daqueles humanos! Foi por gula!! Gula!! Tavam todos gordos! Aquela senhora babando pelas ovas da minha irmã! Sentem?? Não! Vocês não sentem!
- Sentimos muito. Nara é uma boa amiga.
- E ainda é! Vocês não entenderam a história da panela?? Mesmo cozinhando, um jabuti não desiste!
E Rabeta foi pra junto do rio na velocidade dela.
- Não me apressem! Tenho que me concentrar, cambada!
E tirou seu casco, imenso casco de jabota que tinha e jogou no rio.
- Sobe todo mundo!
Todos subiram no casco,
- E agora?
- Agora os calangos ali fazem o trabalho: bora!
E como um motor de popa os calangos juntos deslocaram rapidamente o casco de Rabeta pelos igarapés com os bichos da vizinhança até chegar na barraca dos caçadores que mantinham Nara presa na gaiola de madeira roliça.
Assim que o casco parou na margem, a bicharada num desatino de todos os sons invadiu a barraca, mordendo, arranhando, fazendo misuras para os caçadores que saíram correndo. Era tatu, arara, catitu, onça, mutum numa confusão danada. Até cocô de macaco-prego voou. O maior deles ainda tentou pegar na espingarda, mas Rabeta pulou na sua orelha e deu a dentada, digna dos jabutis.
O homem gritava, gritava, atirava a esmo e chorava de dor.
Rabeta segura na orelha do marmanjo até este bater com a cabeça num acapu e desmaiar de dor.
A guariba cantou:
- Solta!!
Pronto. Rabeta largou o infeliz.
Nara, libertada pelos macacos, já estava no casco de Rabeta, que corria (no seu ritmo) pelada em direção à margem.
Todos no casco, os calangos acionaram as pernas. O jacaré veio ajudar. A Rabeta empinou e porfiou com os pássaros.
No outro dia de manhã, agora já no normal começo de um dia de algazarra dos animais, Nara pousou para prosear com a amiga:
- Muito feliz de tá livre!!! Bom dia amiga Rabeta!!
Rabeta, lá de dentro, admitindo só pra si a saudade que teve da companheira e também percebendo que deveria mudar seu comportamento, meteu a cabeça pra fora e um indisfarçável sorriso amarelo a fez balbuciar:
- É... pode ser que seja...
- O que você disse??
- Te sai.
Pantoja Ramos.