quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Texto do PL 182 do carbono para sanção presidencial: algumas reflexões


Caríssimas e Caríssimos:

Venho aqui socializar algumas reflexões sobre o Projeto de Lei 182, disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/161961 que trata do Sistema Brasileiro de Comercialização de Emissões (SBCE) e que cria um mercado de carbono regulado no Brasil, na tentativa de precificar as emissões dos gases de efeitos estufa que intensificam o aquecimento global. Assim, primeiramente recomendo a leitura da ótima matéria da Agência Pública intitulada Brasil aprova mercado regulado de carbono; saiba como ele deve funcionar, assinada pela jornalista Isabel Seta, disponível em https://apublica.org/2024/11/brasil-aprova-mercado-regulado-de-carbono-saiba-como-ele-deve-funcionar/ que apresenta um resumo muito interessante do tema.

Gostaria de contribuir com esse momento de discussões sobre a regulação o mercado de emissões. Tenho algumas ressalvas sobre o PL:

1️⃣ Acho estranho que não seja citado no texto do PL a Lei 14.119, que trata da Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais e que traz importantes amarrações para salvaguardas, obrigatoriedades sobre métricas e respeito a outros sistemas nacionais importantes como o Sistema Nacional de Unidades de Conservação.

2️⃣O Plano Anual de Alocação previsto no PL precisa também ter suas versões nas discussões subnacionais: não é possível que o Estado do Pará apresente seu quadro de venda de créditos de carbono sem discutir com a sociedade, sem apresentar (agora entendendo que há possibilidade) de um Plano Estadual de Alocação.

3️⃣No caso de comunidades de povos indígenas e de povos e comunidades tradicionais (artigo 47), onde o consentimento resultante de consulta livre, prévia e informada (CPLI), prevista na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) será custeado pelo desenvolvedor interessado, percebo uma possibilidade de fragilização futura de direitos. Entendo que apesar de garantidas a supervisão dos ministérios públicos federal e estadual, Funai e Câmara Temática de Povos e Comunidades Tradicionais, o texto precisava ser contundente sobre as metodologias a serem utilizadas, uma vez que a consulta é um ato da comunidade. Desenvolvedores interessados podem pagar e interferir nas metodologias de CPLI? Como membro de vários grupos técnicos que atuam junto a comunidades tradicionais, recomendo que fiquemos alertas às tentativas de "diluição" da voz e vez das comunidades.

4️⃣O tratamento dado a mercado voluntário, diferenciando-o de mercado privado na prática não existe; acompanho desde 2018 os controversos projetos de carbono na região do Marajó e vejo que esse "voluntariado" age aproveitando-se de comunidades e famílias que sofrem forte pressão econômica e social.

5️⃣Espero que o comitê técnico consultivo permanente (artigo 8), conte com a participação de profissionais e cientistas com experiência em projetos e estudos em diversos biomas brasileiros de proteção da floresta e apoio a comunidades tradicionais e povos indígenas. A atuação desse comitê nas elaborações sobre mensurações e índices será fundamental para evitar o predomínio de valorações advindas dos mercados especulativos e de grandes conglomerados. O governo do Pará, por exemplo, aceitou sem debater no campo da ciência o valor de 15 dólares / tonelada de carbono indicada pela Coalização Leaf, formado por EUA, Reino Unido Noruega e mega corporações como Amazon, Bayer, Nestlé. Nesta relação público-privada, qual é o potencial de endividamento de estados e municípios em nome do clima? 

Não resta dúvida que a futura lei que irá instituir o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE) é um avanço em uma área sombria que avançava na Amazônia tal qual uma nau europeia de 1500. Até então o comando estava no capital especulativo, suspeitíssimo em evadir divisas e com alto poder de expropriação de territórios de povos indígenas e comunidades tradicionais. 

Sinceramente compreendo que o Estado Brasileiro deve liderar de fato a discussão mas sei que haverão orquestrações para que o sistema criado seja liderado pelo capitalismo de carbono ou sua forma híbrida envolvendo estados nacionais e subnacionais. Cabe a nós estarmos atentos e cobrar que os recursos econômicos de origem pública sejam maiores do que aqueles vindos dos projetos privados/voluntários de carbono, pois é sim temerária a possibilidade de perdas sistemáticas de direitos. É imprescindível monitorar junto às instâncias previstas no SBCE os casos de abusos ambientais, econômicos, sociais e intergeracionais. 

Aproveitando, envio os seguintes textos que publicamos sobre os mercados de carbono:

✅Sobre os projetos de carbono na Amazônia: por que contratos que duram uma geração? / Boletim de dezembro de 2023 do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais, disponível em https://www.wrm.org.uy/es/boletines/nro-268 ;

✅O mercado de carbono e os impactos negativos sobre as comunidades do campo / Comissão Pastoral da Terra / Caderno Conflitos no Campo Brasil 2023, disponível em https://www.cptnacional.org.br/publicacoes-2/destaque/6746-conflitos-no-campo-brasil-2023 ;

✅O caso da comercialização de créditos de carbono em Portel, Marajó, Pará - https://racismoambiental.net.br/2023/10/26/o-caso-da-comercializacao-de-creditos-de-carbono-em-portel-marajo-para/ (uma versão deste artigo com mais profundidade sobre o tema está sob avaliação da Revista Científica Estudos Interdisciplinares).


A paz é filha da justiça, filha da justiça climática.


Forte abraço.


(*) Carlos Augusto Pantoja Ramos é Engenheiro Florestal, Mestre em Ciências Florestais; Doutorando do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (INEAF) da Universidade Federal do Pará; Membro do Coletivo Campesino Amazônico – COCA e do Grupo de Trabalho Amazônico - GTA. É colaborador voluntário da Comissão Pastoral da Terra no Marajó e da Federação dos Trabalhadores Agricultores e Agricultoras Familiares no Estado do Pará - FETAGRI no Marajó. Estuda os mercados de carbono desde 2018.


quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Crônicas, Passageiro: o bolo


 

Belém, 9 de outubro de 2024.


Por meio desta crônica quero registrar que neste dia, em comemoração ao aniversário de minha sogra, Dona Lene, encomendamos um bolo. Nesse dia de tanta luta, mais um dia entre tantos de lida de um lar, não houve tempo para preparar um bolo e assim optamos pela compra de um já feito, trazido pela minha cunhada ao retornar do trabalho.

Bolo estranho, parecia uma pedra, daquelas britas grandes que até hoje vemos nas ruas de Monte Dourado, lá no Jari. Era coberto com alguns brigadeiros e biscoitos, assim todo "gourmetizado". Continuei bagunçando, dizendo que o bicho parecia pesado de tão massudo. Minha esposa disse que ao contrário, era muito macio. E cantamos parabéns para Dona Lene, uma mulher verdadeiramente guerreira. 

Enquanto as conversas seguiam na mesa, provei do bolo. O sabor que me veio fez minha cabeça voltar-se para trás como se tivesse levado um empurrão. Fui tirar a dúvida em uma segunda colherada, uma terceira e as sinapses me contaram o que havia me surpreendido.

As memórias surgiam, levando-me para minha casa em Monte Dourado nos anos 1980, ali na mesa de madeira as minhas irmãs, o meu irmão e o meu pai a esperar a minha mãe nos trazer aquele singelo bolo, um bolo de caixa de sabor laranja. Era simples, mas festivo. De caixa, mas com toques próprios de minha mãe Tereza. 

Quando as sinapses me devolveram do passado, eu estava a lagrimar. Apesar de não querer demonstrar, fui traído pela voz embargada ao responder se eu tinha gostado do bolo:

- Lembra gosto de infância lá no Jari.

E saiu o choro de vez. Comedido, é verdade, mas ali havia um choro.

Hoje vou dormir com a experiência de um alimento te fazer viajar como se fosse uma máquina do tempo a ponto de despertar diversas emoções. E foi uma saudade boa. 

Um sentimento de privilégio de ter vivido e revivido o bolo de minha mãe.


Pantoja Ramos.

domingo, 30 de junho de 2024

Cabelos astrais



Belém, 30 de junho de 2024.


Alerta para um papo de velho. Mas é que hoje é o último dia oficial das festas juninas. De quadrilha, de milho quente, de pipoca, roupas quadriculadas, forrós, Luiz Gonzaga e arraial. Ahh, quermesse, de roda gigante, de maçã do amor, tiro em caixinha de fósforo valendo urso de pelúcia. Enquanto isso, em 1987, em Monte Dourado, no Vale do Jari, nós aguardávamos ansiosamente por estas festas. Ano que também foi da explosão do grupo RPM, de Olhar 43, Loira Gelada e Flores Astrais. E antes, é bom explicar que eu era uma criança caminhando para a pré-adolescência, mas já admiradora do RPM, banda boa, bons sons. Muito da molecada da época queria ter aquele cabelo do vocalista Paulo Ricardo. Inclusive eu, que deixei crescer um tufo de cabelo na parte do cangote, um mullet, tipo de cabelo grande na parte do pescoço.

Coisa feia, cabeludinha eu estava a correr pela rua, aspecto de cabelo melado de suor. Porém, que não mexessem ou falassem mal de minha cabeleira que mirou no Paulo Ricardo e acertou no Zezé de Camargo em início de carreira. Eu me achava o máximo naquele visual, já minha mãe nem tanto.

- Carlinho, vai cortar esse cabelo, menino!

Meu pai gargalhava com os amigos na rodada de Antártica:

- Cabelo do Menudo!

- Menudo, Não!! - Eu protestava quase chorando. 

E tinha a Priscila. Sim, a menina que eu paquerava (termo de velho) de longe e que eu queria convidar para andar na roda gigante no arraial. Na primeira noite, nada pra mim, sequer uma reação dela a passear com as amigas. Tudo bem, a noite não foi tão perdida, ao menos ganhei uns trocados nas apostas de acertar a bola nos desenhos de time de futebol. Lembro bem, apontava e jogava a bola no escudo do Botafogo. Toma-te! Mais uns cruzeiros no bolso. Azar no amor, sorte no jogo.

E já aguardando a outra noite de passeio, minha mãe me ordenou que fosse cortar o cabelo. E fui quase na base de vassourada. O barbeiro cortou o projeto de rabo de cavalo que eu nunca teria. Acertou aqui, ali, deixou "rapazinho".

Cheguei em casa. Minhas irmãs olharam-me surpresas e sorridentes. Minha tia me caducou. Minha mãe disse:

- Agora simmmm!.

Eu realmente não entendia nada daqueles comentários. Fui à quermesse.

Minhas colegas de escola me viram e sorriram. Achava aquilo meio exagerado. De repente, vem a Priscila com sorvete na mão.

- Carlinho?

- Oi.

- Vamos andar na roda gigante?

- É... Vamos, é, vamos sim.

E naquele quinze minutos, o mundo lá embaixo ficou pequeno, tão pequeno e na minha frente uma menina tão bonita me oferecia sorvete, como se fosse a própria Lua me iluminando. Sem saber o que fazer, só aproveitei o momento de subidas e descidas naquela cadeira enferrujada e barulhenta. De vez em quando, passava a mão no cangote e sentia a ausência de minha cabeluda beleza. "Será que a Priscila tá me achando estranho sem meu cabelo maneiro?", pensei.  

Quando a roda-gigante parou, ela se despediu. 

- Tu é sempre tão calado?

- É... hã... o quê?

Deu-me um beijo no rosto e partiu. E meses depois, Priscila foi embora do Jari.

Naquela mesma noite, tentei a sorte no jogo. Errei todas jogadas. 

E tenho sido assim na vida: acerto mais do que erro, muitas vezes sem saber o que está realmente se passando. Caso contrário, como estaria aqui escrevendo sobre arraial, festa junina, roda-gigante, corte de cabelo, beijo no rosto e alvorecer da juventude com a saudade serena de quem teve uma história sortuda? 








segunda-feira, 24 de junho de 2024

Jamanxim



Belém, pensando no Povo Munduruku, 10 de junho de 2024.


O Jamanxim já foi verde-azul, me disse Alessandra Korap Munduruku. 

Imaginem a beleza deste rio, mais belo do que eu vi. 

A miséria humana em busca do ouro vem descolorindo esse rio sagrado. O vício pelo El Dourado, esse mal, essa coisa demoníaca, invenção própria dos Pariwat (brancos), que preferem sempre TER do que SER. 

Se não SÃO rios, vão querer TER o Jamanxim, se não SÃO árvores balançando na correnteza, irão desejar TER as árvores ou destruí-las. Se não se SENTEM da mesma substância originária como os Munduruku, tentarão TÊ-LOS ou eliminá-los. 

Querer é poder, diz o dito.  Não é querer SER? Entendi, é querer TER... Eis o caminho capitaloceno que a Humanidade escolheu até o fim de seu mundo que já foi azul esverdeado.


Como o rio Jamanxim.



domingo, 5 de maio de 2024

Analisador de espectro



Belém, 05/05/2024.


Espectro, espectro, eis que sou um espectro.

Espectro, espectro, eis que cuido do meu filho, no espectro.

Espectro sobre o bem e o mal, sobre a ganância e o desapego, sobre felicidade e dissabores.

Espectro também é fantasma.

Espectral é o universo, visagens de pessoas que já se foram mas que quanticamente pode ser possível reunirmo-nos.

Olha lá, meu pai evitando o gol, buscando a bola no ângulo. Era o meu ângulo.

Espectro da vida, de corpo e mente oscilando para prosaicamente escrever.

Na música tocada de cada destino.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Nosso Viver / Por Gracionice Costa



Portel, 1 de maio de 2024.


No comboio do trabalho 

A trilha é água e casco

Subindo o caminho de terra 

Chega em área fértil a espera 

Espera de mudas diversas 

Que delas vem muita alegria 


Comida saudável e proteica 

A fome de muitos sacia 

Com filhos vizinhos e irmãos 

Sempre nos dando as mãos 

Mãos que ajudam um ao outro 

Fortalecendo vínculos e união 

Comum é que praticarmos 

Na comunidade vivemos 

Por nossas terras lutamos 


Defendemos nossa moradia 

Nessa terra somos felizes 

Cuidando com nossa expertise 

Equilíbrio com meio ambiente 

Harmonia entre floresta e gente 

Aqui não se faz nada em bagunça 

Somos composto de tudo 

Inclusive ainda temos a onça 

Zelar pelo bem que nós temos 

Plantar, produzir e cuidar 

Manter as espécies existente 

No Território demarcado e decente 

Aqui tem vida e história 

Geração que perpassa cultura 

Raiz identidade e saber 

Para muitos que o quiserem ver 


Não somos doutores das letras 

As mãos calejadas dissertam 

Que somos de garra e de luta 

Para alcançar a vitória 

Falar nossa história é tão longa...




Poema: Gracionice Costa, liderança comunitária de Monte Hermom, Portel-PA, presidenta da Cooperativa Manejaí e presidenta da Associação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Agroextrativistas do Alto Rio Pacajá.






sábado, 20 de abril de 2024

A maçã do Jari



Dos borrões de minha memória.

Aconteceu naquele dia a coincidência de um coleguinha de escola e eu irmos juntos ao supermercado de Monte Dourado naquela manhã ensolarada de 1984, quando o sol das nove horas tinha a quentura das sete horas matutinas de hoje. Seguíamos no bate-papo sobre futebol adentrando no estabelecimento, todo empolgado eu estava a falar que o meu time, o Palmeiras, iria para a final do extraclasse. De repente, o amigo pegou uma maçã e tacou-lhe uma mordida.

- Que é isso??? Como tu come assim a maçã sem pagar?? 

Indignado, tirei a fruta da mão do menino e fui colocar no lugar. A mão de um homenzarrão segurou nossos braços:

- Ahá!! Peguei vocês da gangue dos comedores de maçã!! Vamos pra gerência, agora!

E lá estavam meu amigo e eu, ambos com 9 anos de idade, sendo interrogados na salinha do gerente:

- Então vocês fazem parte da gangue dos comedores de maçã??!!

- Moço, eu até coloquei na prateleira pra não piorar!

O amiguinho calado.

- Quem vai pagar pelo prejuízo? Vamos ligar para os seus pais.

Pronto. Veio a sentença.

- Não conta pro meu pai, não, moço. Por favor. Vou apanhar!

E choro. Muito choro.

Depois de uma hora de ameaças, fomos liberados. O assunto não foi levado pra frente. Mas podia jurar que eles riram quando nós saímos daquela sala escura e mofada, que deixava passar poucos raios de sol.

O amiguinho continuou calmo. Reclamei horrores:

- Bicho, eu nunca mais vou contigo no supermercado!!

Tempos depois meu coleguinha foi pego novamente, desta vez terminando de sugar um copo de iogurte, escondido atrás de sacos de farinha, já que não haviam nesta época as câmeras que atualmente nos flagram e nos julgam. E quando conheci a casa de meu amigo, casinha humilde de muitos irmãos e irmãs, espalhados nos quartinhos lá da Vila Facel, cujo pai recebia baixo salário, desproporcional para as necessidades de sua família, surgiu-me na mente uma desconfiança que meses depois virou um pé-de-vento crescente do entendimento sobre uma possível injustiça.

Perguntei pra minha mãe enquanto ela fazia o almoço:

- Mãe, de quem é o supermercado?

-  Da Jari, meu filho.

- O papai trabalha pra Jari, né?

- Isso. 

- O papai trabalha pra Jari, recebe o salário da Jari e depois compra o rancho do mês no supermercado da Jari?

- Isso, isso, Carlinho, agora vai reparar teus irmãos!

Saí matutando: "A Jari, o amiguinho, a família do amiguinho, a fome, o iogurte, a maçã...".


Seria essa a tal maçã do conhecimento?