Caríssim@s Manos, Mãe, Tios, Primos, Guerrilheiros,
Meu pai, senhor
Waldir Coelho Ramos, foi um operário, trabalhador de fábricas, principalmente de
Indústrias de Celulose, se especializando e passando boa parte de sua vida neste setor. Era um técnico mecânico muito talentoso
segundo os que o conheceram no trampo. Aliás tenho família com tradição na geração de bons profissionais
na arte de lidar com equipamento industrial. Eu, longe disso, segui torto.
Seu Waldir e eu não conversávamos muito sobre a vida, a não ser que ele
estivesse “animado” pela cerveja de fim de semana. O “Ué?” era o sinal, assim eu
já sabia que ele iria abrir o verbo alegremente. Acabei me aperfeiçoando na
arte de conversar com ébrios. O segredo é não falar muito e prosear com os
olhos, mostrando expressões de concordância, discordância e ponderação, mas de
respeito acima de tudo. Neste último domingo, no retorno de Curralinho a Belém
no Navio Baluarte, um senhor que
lembrava seu Waldir, da mesma idade aparentemente, mesma fisionomia e mesma
galhofada embriagada se aproximou e puxou conversa comigo. Me surpreendi com a
semelhança, o que me fez buscar o velho método para prosear longamente. Ele
falando sem parar no seu linguajar de língua atropelada, eu calado, sentenciando
cada frase com gestos e pequenas mímicas. A saudade que despertou e o contexto
atual me levaram a aqui escrever uma passagem familiar e política.
Eu respeitava meu pai, não somente porque se deve respeitar um pai, mas
porque ele tinha uma mão pesada (risos), principalmente naquela mão direita que
tinha o dedo indicador a faltar um pedaço, perdido em uma máquina quando ainda
era jovem aprendiz. Pobrezinho.
Ele não falava muito sobre isso e eu nunca toquei também no assunto. Tinha
a impressão que ele tinha nascido daquele jeito, quando minha mãe e tios me
contaram do fato. De minha parte, nunca me dirigi à esta amputação até o ano de
2002.
Eram tempos de eleições. De um lado José Serra, o candidato para substituir
Fernando Henrique Cardoso mantendo a mesma linha governante. Do outro, Luís
Inácio Lula da Silva, “Lulinha Paz e Amor”, naquela chance que tínhamos dele
finalmente ser eleito e mudar o país em favor dos pobres, apesar da Globo,
apesar da Regina Duarte.
Certo dia:
“Pai, tudo bem? ”, começo de ligação Belém – Dias D´Ávila, Bahia.
“Tudo, filho”.
Seu Waldir de meio de semana era sério. Sisudo. Depois de indagar como
ele estava, tentei a novidade de puxar conversa de algo sei lá, amplo,
político.
“Pai, em quem o senhor vai votar pra presidente? ”.
“No Serra”.
“Por que? ”
“Porque o Serra é melhor, mais preparado”.
“Mas pai, o senhor devia votar no Lula”.
“Que Lula que nada! ”.
Pronto. O tom de voz era familiar. No subtom dizia “Eu sei o que tô
falando e tu não sabe! ”.
Pronto. Aí baixou o rapazote encrenqueiro que resolve responder ao pai. Há
anos eu tinha superado a fase rebelde (não sei, será?). No calor do
quase-debate, disse a frase mais cruel da minha vida a alguém, logo para uma
pessoa tão amada.
“Pai, respeita o seu dedo torado!!”
“Quê??? Seu Muleque!”.
Bateu o telefone na minha cara. Toda razão. Não julgo. Uma coisa é certa,
se eu tivesse falado na sua frente, aquela mão pesada iria me acertar entre o
pescoço e a nuca. Aquela do dedo torado.
Semanas se passaram. Não falava comigo.
De repente, trocando falas com minhas irmãs, contaram-me que
estranhamente meu pai começou a deixar a barba crescer naqueles tempos, coisa
que não fazia. Um dia me ligou. Tratava-se do outro Waldir, o alegre.
“E aí filho? ”.
“Tudo bem pai? ”.
“Eu tô aqui pra dizer que nós vamos ganhar! ”.
“Quem pai? ”
“Ué? Nós! Vai dar Lula na cabeça!!”.
“Ahhhhh, tá, tá bom, pai...”.
Não consegui entender a mudança. Porém, fiquei matutando, matutando, acho
que meu pai olhou pro dedo do Lula. Pode ter pensado: “Esse cara foi um lascado
que nem eu fui. Perdeu o dedo no trabalho de fábrica que nem eu perdi, pode ser
que ele queira realmente mudar as coisas pro trabalhador. Eu quero”.
Lula venceu e o resto da história nós sabemos. Dos erros de Lula, dos
acertos de Lula. Da esperança que foi Lula, do medo que Lula venceu. Da cortina
afastada pra mostrar que cada um de nós, mesmo de origem pobre, pode ser presidente de uma nação se
antes de tudo houver comprometimento com a melhoria das condições de vida do povo.
Esse episódio amenizou em mim a imagem que meu pai era um operário que
não questionava seus patrões. Enquanto isso eu seguia com meus amigos na
bandeira de luta pelos que vivem sem justiça social, no
sofrimento diante de tanta violência institucional nas bandas do Marajó da floresta.
Meu pai partiu deste plano terrestre em maio de 2016, de complicações
advindas do alcoolismo. Uma luta sofrida entre o Waldir sisudo e o Waldir
alegre. Ao encontrar no final do ano passado meu tio Walter, irmão de meu pai que
ainda mora em Portel, conversamos muito sobre quem foi o Waldir. Meu tio no seu
descrever esbravejou, o criticou, contou que muitas vezes não se davam bem, mas
também riu à beça das memórias, o admirava. Certa hora, quando contei que eu tinha me tornado
uma pessoa muito diferente dele, meu tio corrigiu-me.
“Carlinhos, tu não sabe? Ele nunca te contou quem ele queria ser? Ele me
disse”.
“Não tio, não sei, quem ele queria ser? ”.
“Fidel Castro”.
Quando cheguei na praia do Arucará, em Portel, agora sozinho, me toquei dos
livros que ele sempre me presenteava, mais do que brinquedos. Contemplei minha mão, encolhi parte do
meu dedo indicador, sorri e perguntei:
“Ué? ”.
Belém, num dia “discunforme”
chuvoso, 10 de abril de 2018.