domingo, 1 de abril de 2018

Texto de 2002: Por que Manejar o Açaí?


Caríssim@s,

Eis que achei um texto publicado em O Liberal em 2002. Como não encontrei na internet, resolvi publicar aqui.


De um Carlos jovem e esperançoso. Que nem hoje.



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Zé Trindade, Rio Marajoí, Gurupá-Pa. Foto: FASE, 2002.




 
Por que manejar o açaí?[1]

Carlos Augusto Ramos[2]


O açaí (Euterpe Oleraceae Mart.) é a palmeira de maior destaque em importância socioeconômica nas várzeas que ocorrem ao longo do rio Amazonas e afluentes, sobretudo naquelas localizadas em áreas de influência flúvio-marinha[3]. Possivelmente, sua utilização pelos ribeirinhos remonta desde os tempos pré-colombianos. Os frutos do açaizeiro têm servido de base de alimentação para milhares de pessoas, in natura ou em forma de vinho, contribuindo para manter a população regional longe do estado famélico que caracteriza outras partes do país, apesar da pobreza latente do interior amazônico.

     Outro produto do açaizeiro bastante demandado é o palmito, cujo destino é abastecer os supermercados das grandes cidades, sendo normalmente pouco apreciado nas regiões de extração. A crescente procura por fábricas e marreteiros[4], aliada à falta de informação e conscientização dos ribeirinhos, tem diminuído os estoques de açaí, a ponto de desencadear distúrbios no padrão de vida de algumas comunidades que exploram a palmeira.

Rio Marajoí, Gurupá-Pa. Foto:FASE, 2003.



     Recordo-me de minha passagem pela vila do Lontra da Pedreira, na segunda metade dos anos 90, como sendo um exemplo emblemático das conseqüências negativas do não planejamento no uso dos recursos naturais. Distante cerca de 70 Km de Macapá-Ap, a localidade fora “brindada” com a instalação de uma “palmiteira”, o que praticamente esgotou em menos de cinco anos, o antigo e farto açaizal de uma área de aproximadamente 3.000 ha, pertencente à comunidade. Assim, os habitantes foram forçados a comprar frutos e vinho do açaí de outras localidades, uma vez que este é imprescindível à dieta local. Ou seja: acrescentaram um item “importado” à sua cesta básica pela exploração sem planejamento de uma de suas maiores fontes de alimentação. Atualmente, os comunitários do Lontra da Pedreira, educados por essa dura lição, têm se esforçado para recuperar seus açaizais e reverter esse quadro, corroborado pela falência da fábrica de palmito. Casos como estes, infelizmente, tem aumentado muito nos últimos tempos nas regiões estuarinas do rio Amazonas.

     O histórico dos planos de manejo de açaizais nativos tem mostrado a predominância de planejamentos voltados quase que exclusivamente para o aproveitamento do palmito, com operações de plantio ou condução da regeneração natural, seguida do corte raso das palmeiras selecionadas para corte e transporte da matéria-prima até o seu destino final que são as fábricas. Mesmo em regime comunitário, os planos de manejo de açaizais seguem esta lógica. A extração dos frutos, por ser uma atividade bastante corriqueira e sem danos aparentes ao meio ambiente, não justificaria a apresentação de um plano ao IBAMA, com toda a burocracia e as exigências documentais existentes.

     Essa postura de relativa indiferença da sociedade e dos órgãos ambientais quanto à inexistência de planos de manejo de açaizais preferenciais aos frutos é digna de preocupação. Se pensarmos que entidades como o IBAMA são limitadas em termos de pessoal para avaliar e fiscalizar tantos projetos que surgiriam para manejar frutos e palmitos em pequenas áreas, poderia soar como loucura a proposta de cada comunidade amazônica venha a exercer o bom uso de seus açaizais através de documentos protocolados em um órgão federal. Entretanto, a idéia da existência de pequenos produtores florestais parece ser bem mais razoável do que a perspectiva de grandes grupos de supermercado empreendendo grandes projetos na Amazônia – um filme que a maioria de nós já assistiu e não gostou. Neste sentido, o cada vez maior desapego aos recursos naturais e o êxodo dos habitantes locais para as periferias das cidades próximas talvez sejam fortes argumentos a favor do manejo florestal comunitário dos açaizais direcionados preferencialmente para frutos.

     A utilização dos frutos é mais vantajosa, tanto econômica, quanto social e ecologicamente, do que o uso simplesmente do palmito para os ribeirinhos. Ao contrário da receita bruta de apenas R$250,00 obtidos com o corte de 1000 “cabeças”[5], estudos tem apontado que o manejo florestal pode aumentar a produção de frutos em até 30%, gerando uma renda bruta média de R$ 470,00 mensais[6], já incluídos a venda do palmito retirado daquelas estipes mais velhas e com a produtividade frutificativa em declínio, que são abatidas para a maior entrada de luz na mata. Os custos são mínimos. Tal receita está acima da média de municípios estuarinos como Gurupá, que têm uma renda média mensal familiar de dois salários mínimos (R$360,00)[7].

Rio Jupatituba em Breves-Pa. Foto: FASE, 2003. 


     Ecologicamente, o manejo florestal preferencial aos frutos de açaí é benéfico por manter uma quantidade bem maior de estipes na área, sem forçar a resiliência da floresta, o que não ocorre em casos de manejo exclusivamente para palmito. Garante também a alimentação de pássaros e mamíferos locais e evita a incidência maior de plantas invasoras e espinhosas. Finalmente, nos aspectos sociais, o aumento da produção de frutos e de vinho é uma segurança maior para a subsistência da comunidade e previne problemas como o ocorrido na vila do Lontra da Pedreira.


     Durante a vistoria do IBAMA-Ap ao plano de açaizais nativos da ilha de Santa Bárbara, aprovado em 30 de Novembro de 2001, com a ajuda da FASE Gurupá, um dos técnicos vistoriadores levantou questionamentos sobre a pequena área estabelecida para o manejo (em média 3 ha por posseiro) e o direcionamento dado mais aos frutos do que ao palmito, o que não garantiria, em tese, um grande retorno econômico – uma das bases que as atividades sustentáveis preconizam. A reação da comunidade foi bastante serena. Seus objetivos vão muito além do que simplesmente ganhar um documento de comprovação do bom uso da mata: eles querem se tornar produtores florestais, organizando sua produção e aplicando o que foi estabelecido no plano de uso da comunidade[8]. Desejam também recuperar o estoque de açaizais, impactado pela exploração desenfreada do palmito em tempos atrás.

Curso de manejo de açaizais e de pau-mulato, Ilha de Santa Bárbara, Gurupá-Pa. Foto: FASE, 2001.


     O exemplo da ilha de Santa Bárbara demonstra que a organização voltada para o manejo de frutos de açaí pode ser uma oportunidade de inserir as comunidades tradicionais no âmbito das discussões sobre o futuro da Amazônia. A exploração sustentável deste e de outros produtos florestais, regida pelo zoneamento da floresta em áreas de manejo específico para cada recurso, assegura a otimização do uso da terra, valorizando-a e oferecendo ao ribeirinho motivos para não mais deixá-la, a não ser que seja para os filhos e netos.






[1] Texto escrito e publicado em O Liberal em 2002.
[2] Engenheiro Florestal, MSc., pertecnente ao quadro da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), atuando no Projeto Demonstrativo Gurupá, no desenvolvimento do manejo florestal comunitário, no município de Gurupá, Estado do Pará.
[3] Delas fazem parte, segundo os professores Rubens Lima e Manoel Tourinho, ambos da Faculdade de Ciências Agrárias do Pará - FCAP), as Várzeas da Costa Amapaense, Várzeas do Estuário Amazônico, Várzeas do Rio Pará e Várzeas do Nordeste Paraense e Pré-Amazônia Maranhense.
[4] Marreteiros são comerciantes que visitam as localidades ribeirinhas periodicamente, comprando os frutos e palmito de açaí, camarão, etc., e vendendo víveres sempre a preços bem maiores do que os oferecidos na cidade aproveitando a falta de alternativa dos ribeirinhos pelo isolamento.
[5] Utilizando como média por cabeça de palmito, o valor de R$0,25.
[6] Estimativas do autor com bases nas experiências em Gurupá. Preço médio da lata (14 Kg): R$2,00 (moda de preços ao ano).
[7] Segundo Hermes da Costa Viana, Presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Gurupá, informação pessoal.
[8] O plano de uso é o conjunto de regras gerados pelos próprios ribeirinhos para o uso racional dos recursos florestais, pesqueiros e agrícolas.

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