Belém, 04 de fevereiro de 2016.
Caríssimos,
Os Territórios da Cidadania foram reconhecidos
pelo Governo Federal, a partir de Decreto Presidencial em 25 de fevereiro de
2008. No Estado do Pará são 8
territórios nesta categorização. Dentro do programa, muito orgulha ter sido contemplado o Marajó
também como uma região distinta no Brasil. Já éramos diferenciados como
marajoaras, dos campos, dos furos ou das matas de terra firme. Quem sabe a
metafísica explicaria o motivo desta própria identificação, no carrear genético
das lembranças dos primeiros viventes destas bandas, onde nem sequer Portugal
era Portugal, onde nem sequer Espanha era Espanha. O autoreconhecimento nos
acompanha bem antes, num jeito inteligente que até hoje perdura de que ser
Marajoara é pensar três vezes ao mesmo tempo: de como está a lua, se está chovendo
muito ou não; e se está enchendo ou está vazando.
Se somos muito bem natureza, estamos ainda
nos construindo em nossos direitos universais. O Colegiado de Desenvolvimento
Territorial do Marajó – CODETEM - é um dos principais observatórios da
sociedade quanto ao acesso da população regional às políticas públicas. É o
espaço de cobrança de direitos. É o espaço de propostas. No hábito nosso de
reclamar, reivindicar, há momento também de reflexão sobre o resultado dos
esforços e não somente das problemáticas. O Marajó não é um problema, é uma
solução. Para demonstrar isso, descreveremos aqui como é importante mobilizar,
juntar as mãos entorno de um objetivo, governo e sociedade civil, lideranças de
todas as bandeiras. Nosso exemplar caso é o combate à malária.
Anajás é emblemático do tema. Da memória dos
anajaenses, sabia-se que havia poucos casos de malária nos anos 1980, restritos
nos relatos de moradores da região dos rios Cururu e Jurará, no município
vizinho, Chaves. Acredita-se que a doença ali se proliferava por causa de uma
série de ações danosas ao meio ambiente, como o intenso uso de timbó, que matava
os peixes, que por sua vez não comiam as larvas dos carapanãs; uma maior
concentração de água parada ao longo do Cururu; e o corte desenfreado de
palmito, cuja operação das palmiteiras deixavam milhares de estipes cortadas de
um jeito a acumular água nas touceiras de açaí, verdadeiros “copos” que
ofereciam as condições ideais para reprodução das larvas de Anopheles.
Esta forma de exploração de palmito foi amplamente executada em Anajás.
Somando-se o corte de palmito, a extração de
madeira (sobretudo de virola), as condições indignas de trabalho no meio rural,
o desconhecimento sobre a malária e o esquecimento governamental em suas três
esferas por muitos anos, houve a fórmula perfeita para uma tragédia humana.
O ano de 1999 foi caótico.
Neste fatídico ano, nas lembranças de um dos
autores deste texto, Enilda Lobato, 8 entre 10 pessoas de Anajás detinham o Plasmodium, muitas mortes ocorreram, de
todas as faixas etárias, calamidade exposta na infância e adolescência vitimadas
pela enfermidade. Para Enilda, o falecimento de sua amiga Sandra, grávida aos
14 anos, marcou-a profundamente. Por ser implacável a malária, por ali estar
uma criança a gerar outra criança. E as duas se foram. Situação cruel daqueles
tempos.
E foram dez de anos de sofrimento da
população de Anajás sem uma resposta efetiva para aquela mazela. Diversas vozes
clamavam por mudanças, uma delas de destaque, a de Dom Luiz Azcona, Bispo do
Marajó. Não somente reclamava o combate à maleita, mas que fossem melhoradas toda
a condição vivida pelas famílias marajoaras. Isolados. Negligenciados em pleno
Plano Marajó intencionado pelo Governo Federal.
Dom Luiz é um lutador admirável que a
História lembrará e que foi o decisivo provocador para outros vestirem também a
camisa. Os senhores Amaury, Abraão, Manelitinho, os agentes de saúde de Anajás,
do Estado e da União, as comunidades, os sindicatos de trabalhadores e
trabalhadoras rurais, as ONGs (onde o diagnóstico socioeconômico do Instituto
Peabiru foi bastante útil para divulgar o flagelo), a AMAM, a prefeitura
municipal, o CODETEM (nos encontros regionais para cobrar ações efetivas dos
governos), foram todos guerreiros e guerreiras a serviço da sociedade e que merecem
ser homenageados por seus esforços e pelos resultados alcançados. Mobilização,
Compromisso, Sentimento e Ciência foram os substantivos que aqui podemos dizer
como aqueles que marcaram este processo de enfrentamento da epidemia.
Abaixo mostra-se os números de casos de
malária desde 2009 para avaliação dos leitores:
Um mosquiteiro especial.
Um exame em tempo ágil.
O cuidado aos enfermos.
Autoridades sensibilizadas.
Famílias sensibilizadas (apesar de muitas magoadas).
Dedicação de quem estava na frente de
batalha.
Em 2010 foram 51 mil casos detectados no
Marajó. O ano de 2015 fechou com 4.032 casos em toda a mesorregião.
A atenção ao Marajó.
A atenção ao Marajó, enfatiza-se. Talvez é
aquilo que precisamos, pois do ponto de vista da capacidade, damos resposta.
“Quem Odera” que pudéssemos responder na mesma intensidade nas outras
dificuldades nossas, como aquelas relacionadas à educação, à luta pela terra, à
valorização da mulher, à busca de uma matriz energética mais condizente com
nossa ligação com a natureza. Num mundo onde governos federais e estaduais cada
vez mais dependentes das empresas e bancos (para saber mais, estudar a Dívida Interna
Brasileira) e que não conseguem responder aos anseios da população como deveria,
é no local e regional que a decisão exata precisa ser tomada, a atitude tem que
brotar. Ocorreu isso no combate à malária em Anajás. Arriscamos dizer que houve
uma ocasião de união, de foco, de entendimento comum para a mudança.
Contudo, como toda doença crônica, é
necessário não baixar a guarda, pois se a intenção nossa enquanto marajoaras é
zerar o número de casos até tornar-se apenas uma lembrança ruim daqui a algumas
décadas, o aumento de 2015 em relação a 2014 mostra que o trabalho não para.
Que a sociedade deve permanecer alerta.
Dizem que a História é feita pelos
vencedores, taí, nesta guerra por enquanto vencemos. Alguém aí fora se
interessaria em continuar esta singela prosa?
Que o batalhar de tanto heróis não seja em
vão.
E não será.