Carlos Augusto Pantoja Ramos.[1]
No apagar das luzes de 2022 o Governo
Bolsonaro decretou a medida provisória nº 1.151[2], que trata da alteração
transitória da Lei nº 11.284, de 2 de março de 2006[3], que dispõe sobre a gestão
de florestas públicas para a produção sustentável de madeira. O propósito da MP
é principalmente gerar a possibilidade de acrescentar o direito da
comercialização dos chamados créditos de carbono e serviços ambientais no
objeto da concessão florestal (artigo 16º, parágrafo 2º da MP nº 1.151).
Originalmente na lei 11.284, o
parágrafo 2º apontava que “... no caso de reflorestamento de áreas degradadas
ou convertidas para uso alternativo do solo, o direito de comercializar
créditos de carbono poderá ser incluído no objeto da concessão, nos termos de
regulamento...”. Na redação da nova MP, passa-se a vigorar o texto “... o direito
de comercializar créditos de carbono e serviços ambientais poderá ser incluído
no objeto da concessão...”. Notem que a indicação de créditos de carbono em sua
origem pautava-se no processo de reflorestamento. Vale a pena pesquisar as
notas das audiências públicas que discutiram em 2006 a Lei de Gestão de
Florestas Públicas. Será que naquela à época o entendimento sobre os créditos
de carbono era de funcionarem como prêmio para a ação de recuperar áreas
desflorestadas? Fiquei a pensar.
Outra modificação é a inclusão no
artigo 16 também como objeto de concessão, parágrafo 4º, “...a exploração de
produtos e de serviços florestais não madeireiros, desde que realizados nas
respectivas unidades de manejo florestal, nos termos do regulamento da
respectiva esfera de Governo, tais como... II - acesso ao patrimônio genético
ou conhecimento tradicional associado para fins de conservação, de pesquisa, de
desenvolvimento e de bioprospecção... VI - produtos obtidos da biodiversidade
local da área concedida...". É importante salientar que além do crédito de
carbono, a Lei 11.284 vedava o acesso ao patrimônio genético para fins de
pesquisa e desenvolvimento, bioprospecção ou constituição de coleções e que seu
artigo 17º mencionava que os produtos de uso tradicional e de subsistência para
as comunidades locais estavam excluídos do objeto da concessão, com
explicitação no edital. Como o assunto principal e motivador da MP editada em
dezembro de 2022 é a comercialização de créditos de carbono pelos
concessionários da exploração de madeira em florestas públicas, a inclusão
também de outros bens florestais no novo texto alarga a possibilidade de uso
das florestas públicas, o que traz para mim a preocupação sobre uma tentativa
de descaracterização total da Lei 11.284.
Evidentemente falamos da gestão da
floresta pública, por isso seu uso precisa ser debatido quanto ao seu alcance.
E por se tratar de florestas públicas, o conjunto da sociedade amazônica
precisa estar presente para analisar não somente os pontos cruciais desta MP
como também de avaliar os resultados da lei de 2006, conquistas, falhas e
desafios. Uma marca da Lei 11.284 foi a sua construção em bases participativas.
Várias organizações foram chamadas para a elaboração do Projeto de Lei sob a
liderança de Tasso Azevedo e participação de lideranças técnicas históricas
como Paulo Oliveira Jr., Tarcísio Feitosa, Rubens Gomes, Joci Aguiar dentre
outros. Indico como fundamental a participação do Professor Girolamo Treccani
na Lei 11.284, com regramento no seu artigo 6º que “... antes da realização das
concessões florestais, as florestas públicas ocupadas ou utilizadas por
comunidades locais serão identificadas para a destinação, pelos órgãos
competentes...”. Desta maneira, o ordenamento territorial passou a ser
condicionante das concessões florestais para extração de madeira em florestas
públicas tendo como balizador o Plano Anual der Outorga Florestal – PAOF. Minha
participação no IDEFLOR anos depois acabou por se concentrar nestes valiosos
artigo e plano. E se por um lado, entendemos que é possível disciplinar a
atividade florestal madeireira empresarial com arrecadação para os cofres
públicos e com adoção de parâmetros mínimos que o manejo preconiza como o ciclo
de corte e sobretudo que isso parta de um ordenamento territorial, por outro
lado compreendemos que sem equidade e isonomia no acesso aos bens e serviços da
floresta, praticamos injustiças como assim descrevo em minha Carta da Isonomia
e da Equidade pela Floresta[4].
Com base nas considerações anteriores,
teço algumas críticas sobre a medida provisória lançada pelo governo que está
findando:
1. Entendo que há
“jabutis”[5] no texto,
principalmente ao trazer para o direito das concessionárias, além dos créditos
de carbono, a licença para uso de outros bens da floresta e acesso ao
patrimônio genético; falamos de uma desconfiguração de uma lei que tem por propósito
inicial o ordenamento da atividade madeireira em áreas públicas, gerando
arrecadação para estados e municípios e com monitoramento de suas operações em
uma conjuntura de inúmeros casos de extração de madeira ilegal na Amazônia;
2. Uma vez que a
sociedade amazônica, sobretudo os povos das florestas avançaram no conhecimento
de seus direitos em relação à consulta prévia, livre e informada no âmbito da
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho[6] e leis relacionadas no
Brasil, entendo ser essencial debater com tais atores a tentativa de inserir
outros bens florestais e mesmo os créditos de carbono para benefício a
princípio de empresas do ramo florestal madeireiro que estão nas concessões.
3. É preciso alertar que
há casos da licença de passagem de famílias agroextrativistas para coletar
determinados bens florestais como no caso extração da balata na Floresta
Estadual do Paru por comunidades vizinhas como assim explica Luciana de
Carvalho e Marcelo Silva (CARVALHO e SILVA, 2022)[7]. O caminho estava até
então decidido: as empresas madeireiras acessariam a madeira e não outros bens
florestais que seriam utilizadas por povos da floresta, principalmente quanto
ao delicado uso do patrimônio genético envolvido que possui normatização
própria;
4. Sobre a
comercialização de créditos de carbono previsto na MP, o texto faz menção à Lei
14.119 que trata da Política Nacional de Pagamento Por Serviços Ambientais[8]; desta forma, conforme
previsto no artigo 11 da referida lei, o poder público tem o dever de fomentar
a assistência técnica e capacitação para a promoção dos serviços ambientais e
para a definição da métrica de valoração, de validação, de monitoramento, de
verificação e de certificação dos serviços ambientais, bem como de preservação
e publicização das informações. Isso significa que é imperativo que o Estado se
faça presente e que a sociedade local debata e cobre por informações sobre o
valor que seria pago ao crédito de carbono, o valor que se receberia, como isso
seria repartido com a União, Estado e Municípios e quais os tributos deverão
ser cobrados.
5. O artigo 2º da Lei
14.119 estabelece por exemplo que o crédito de carbono seria “... ativo
financeiro, ambiental, transferível e representativo de redução ou remoção de
uma tonelada de dióxido de carbono equivalente, que tenha sido reconhecido e
emitido como crédito no mercado voluntário ou regulado “. Para Fernando Facury
Scaff, professor de direito financeiro da USP e tributarista, a incidência
sobre a comercialização dos créditos de carbono, que são ativos financeiros, é
a do Imposto sobre Operações Financeiras – IOF (SCAFF, 2022)[9].
O tributarista aponta que IOF representa tecnicamente incidência sobre
operações (1) de crédito, (2) câmbio, (3) seguro, e (4) relativas a títulos ou
valores mobiliários. Ou seja, apesar de ser em sua origem como serviços
ambientais, a venda de créditos de carbono é uma operação financeira, onde
deve-se cobrar o IOF. Caso contrário, poderemos estar falando do seu não
pagamento como evasão de divisas? Como cobrar das concessionárias o IOF de tal
modo que isso caracterize que o objeto envolvido é oriundo de uma floresta
pública na qual o próprio estado é dono? Concessionárias podem deter tais
créditos como se fossem títulos seus e negociá-los em um mundo altamente
especulativo como é o do mercado voluntário de carbono?
6. A discussão sobre a
inclusão ou não da comercialização de créditos de carbono por empresas
concessionárias em florestas públicas que originalmente eram para fins de manejo
florestal madeireiro deve ser feita com o protagonismo da sociedade amazônica e
Estado para a construção das diretrizes e normatização, como foi feito em 2006.
7. É importante lembrar
aos deputados federais que provavelmente terão como pauta em 2023 a regulamentação
do mercado de carbono que é imprescindível escutar os povos da floresta, os
gestores públicos, os cientistas, os conselhos de florestas estaduais e
conselhos de gestão de florestas públicas, os ministérios públicos e as
controladorias de orçamento e tributação.
Não podemos esquecer que falamos de
florestas públicas e não de uma nova fronteira do rentismo[10].
[1]
Engenheiro Florestal, Mestre em Ciências Florestais, estudante de doutorado do
Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (INEAF) da Universidade Federal
do Pará, Mentor de Crédito Socioambiental do Instituto Conexsus no Marajó. Atuou como Diretor de Gestão de Florestas Públicas do Instituto de
Desenvolvimento Florestal do Pará nos anos 2009 e 2010, durante a implantação
das primeiras concessões florestais estaduais.
[2]
BRASIL. Medida Provisória 1.151. Altera a Lei nº 11.284, de 2 de março de 2006,
que dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável, a
Lei nº 11.516, de 28 de agosto de 2007, que dispõe sobre a criação do Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - Instituto Chico Mendes, a Lei
nº 12.114, de 9 de dezembro de 2009, que cria o Fundo Nacional sobre Mudança do
Clima, e dá outras providências. 2022. Disponível em
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.151-de-26-de-dezembro-de-2022-453738894.
Acesso: 27/12/2022.
[3]
BRASIL. Lei nº 11.284, de 2 de março de 2006. Dispõe sobre a gestão de
florestas públicas para a produção sustentável; institui, na estrutura do
Ministério do Meio Ambiente, o Serviço Florestal Brasileiro - SFB; cria o Fundo
Nacional de Desenvolvimento Florestal - FNDF; altera as Leis nºs 10.683, de 28
de maio de 2003, 5.868, de 12 de dezembro de 1972, 9.605, de 12 de fevereiro de
1998, 4.771, de 15 de setembro de 1965, 6.938, de 31 de agosto de 1981, e
6.015, de 31 de dezembro de 1973; e dá outras providências. 2006. Disponível em
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11284.htm .
Acesso em 27/12/2022.
[4]
RAMOS, C.AP. Carta da Isonomia e da Equidade pela Floresta. Publicado em 16 de
novembro de 2021. Recanto das Letras. Disponível em https://www.recantodasletras.com.br/e-livros/7386776.
Acesso: 27/12/2022.
[5]
Segundo o jornalista Octávio Guedes, “jabuti” é um estratagema que muitos
parlamentares fazem ao inserir em uma medida provisória um assunto sem relação
com o tema inicial da proposta. Ver em GUEDES, O. Entenda o que é um 'jabuti'
na política. Publicado em 18 de junho de 2021. Disponível em
https://g1.globo.com/politica/blog/octavio-guedes/post/2021/06/18/entenda-o-que-e-um-jabuti-na-politica.ghtml.
Acesso: 27/12/2022.
[6] A
quem tiver interesse, repasso um link para acesso ao texto da Convenção 169 em https://www.oas.org/dil/port/1989%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20Povos%20Ind%C3%ADgenas%20e%20Tribais%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20OIT%20n%20%C2%BA%20169.pdf
.
[7]
CARVALHO, L.G. de; SILVA, M.A. da. Os balateiros da Calha Norte: a emergência
de um grupo diante das concessões florestais no Pará. In: Antropolítica -
Revista Contemporânea de Antropologia. Publicado em 8 de março de 2022.
Disponível em https://periodicos.uff.br/antropolitica/article/view/41894/31405.
Acesso: 27/12/2022.
[8]
BRASIL. Lei 14.119, de 13 de janeiro de 2021. Institui a Política Nacional de
Pagamento por Serviços Ambientais; e altera as Leis n os 8.212, de 24 de julho
de 1991, 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, e 6.015, de 31 de dezembro de 1973,
para adequá-las à nova política. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14119.htm. Acesso:
27/12/2022.
[9]
SCAFF, F. F. A tributação dos créditos de carbono e dos serviços ambientais.
Publicado em 17 de fevereiro de 2022. Conjur. Disponível em
https://www.conjur.com.br/2022-out-17/justica-tributaria-tributacao-creditos-carbono-servicos-ambientais.
Acesso: 07/12/2022.
[10]
O rentismo é, de acordo com o economista Ladislau Dowbor, todo processo que
extrai valor sem aumentar ou contribuir para a produção. Para Dowbor, quem
extrai dinheiro apenas drenando o que outros produzem é um rentista, e o
dinheiro extraído é “renta”. Ver em DOWBOR, L. Quem produz e quem se apropria:
o poder do rentismo. Publicado em 25 de fevereiro de 2021. Diplomatique Brasil.
Disponível em
https://diplomatique.org.br/quem-produz-e-quem-se-apropria-o-poder-do-rentismo/.
Acesso em 27/12/2022.