Cruz Milagrosa, às margens do Braço do Lago do Socó, Alto Rio Mapuá. Foto: Eliane Costa.
Sendo a Memória base
construtora de identidades individuais e sociais da humanidade, como não
exercitar o seu destaque no dia a dia da sociedade brasileira? Quais são as
lacunas históricas que devemos preencher no nosso sistema educacional para que
as diferentes vozes possam ecoar? Que histórias e memórias foram
subalternizadas pela colonialidade na Amazônia Marajoara?
Na contribuição de respostas
a tais questionamentos para a mesorregião do Marajó, Eliane Costa, Doutora em Antropologia e professora de Pesquisa em
Educação da Faculdade de Educação e Ciências Humanas do Campus Universitário do
Marajó-Breves/UFPA, gentilmente apresenta ao Blog Meio Ambiente, Açaí e Farinha um resumo da sua recentemente
defendida Tese de Doutorado, com o título MEMÓRIAS EM ESCAVAÇÕES: Narrativas de Moradores do Rio Mapuá sobre os Modos de Vida, Cultura Material e a Preservação
do Patrimônio Arqueológico do Marajó, PA, Brasil.
Eliane Costa.
Eliane Costa ao realizar um valioso trabalho de valorização da memória e das vozes de moradores do Mapuá, nos
convida para o respeito aos saberes e práticas culturais das comunidades
tradicionais no Marajó.
Blog Meio Ambiente, Açaí
e Farinha: O que te motivou a estudar a história do rio Mapuá?
Eliane Costa:
A primeira vez que estive no rio Mapuá e região por ele banhada foi em 2008.
Nessa viagem me falaram do sítio arqueológico de cemitério indígena Amélia, na
localidade conhecida por vila Amélia, que até então não tinha conhecimento.
Também conheci uma Cruz chamada de Milagrosa, acompanhada de curiosas oferendas
e narrativas sobre milagres. Essas primeiras descobertas foram decisivas para
despertar meu interesse em estudar a história e memória do Mapuá. Posso dizer
que o motivo maior foi exatamente a possibilidade de dar visibilidade a essa
história, mas também em conhecer a origem da região e, principalmente, nossas
próprias raízes marajoaras, que até então tem sido, em sua maioria, ignorada,
silenciada pela historiografia oficial.
Prováveis igaçabas no sítio de cemitério indígena
Amélia, localidade vila Amélia, rio Mapuá. Foto: Eliane Costa.
Blog Meio Ambiente, Açaí
e Farinha: Há muito o que se investigar e divulgar sobre a
formação dos povos e comunidades tradicionais marajoaras. Em seu estudo, quais
foram suas principais bases de referência? Quais pistas ajudaram você na sua
busca científica?
Eliane
Costa:
O Marajó é um oceano a ser descoberto em termos de história e memória dos povos
tradicionais. Como definiu a arqueóloga Denise Schaan (2009, p. 50) o Marajó é
“um tesouro de história, arte e cultura a ser descoberto”. Então, para desvelar
um pouco mais da história desse tesouro pautei-me, grande parte, nos estudos dessa
arqueóloga, como também das primeiras arqueólogas que pesquisaram no Marajó, no
caso, as americanas Betty Meggers e Ana Roosevelt e, mais recentemente, os
estudos das professoras Márcia Bezerra e Helena Lima. Outra base fundamental
nesse empreendimento foi a pesquisa desenvolvida pelo historiador marajoara
Agenor Sarraf Pacheco. Além dessa base teórica as diferentes fontes que
explorei em campo (no sentido concreto) foram decisivas nessa busca científica.
As narrativas orais de moradores da região, por exemplo, me ajudaram não só a
contar a história escondida nas camadas estratigráficas da memória, como
também, contribuíram com o mapeamento das ocorrências arqueológicas. Estas,
inclusive foram mapeadas com a ajuda do orientador, professor Dr. Diogo Costa,
por meio de um levantamento não interventivo (sem escavação). A etnografia e as
fotografias, por sua vez, me permitiram explorar um pouco mais os significados
e sentidos atribuídos pelas pessoas as coisas do passado e do presente. Os
documentos, a exemplo, do relatório de campo da arqueóloga Dirse Kern, cedidos
por ela, foram fundamentais para conhecermos informações mais detalhadas a
cerca da história e memória dos sítios arqueológicos. Então tanto a memória
escrita quanto as narrativas orais, visuais e materiais foram fontes e pistas
de fundamental relevância nessa busca científica.
Comunidade Cantagalo, Alto Rio Mapuá. Foto: Eliane Costa.
Blog MAAF:
O que seu estudo encontrou nesses 4 anos de pesquisa?
Eliane Costa:
A pesquisa mapeou vários achados. Entre esses achados estão os vestígios da
memória indígena (verificada nos sítios arqueológicos e nas práticas culturais dos moradores), da memória cabana (observados nas narrativas e artefatos chamados de trincheiras dos cabanos pelo imaginário local) e do período da borracha (inclui artefatos e narrativas sobre seringalistas portugueses e nordestinos e os seringueiros em sua maioria,
cearenses). Com base nesses vestígios é possível dizer que os moradores do
Mapuá, em tese, podem estar ligados a duas ancestralidades, uma milenar
(indígena) e uma secular (portugueses e cearenses). Outro achado importante diz
respeito aos artefatos de fé, entre os quais destaca-se, a Cruz Milagrosa, que
muitas famílias sobretudo da comunidade Santa Rita, alto Mapuá, tem como um
poderoso artefato simbólico-religioso. A pesquisa constatou ainda que as
famílias ao longo dos tempos aprenderam a desenvolver um conjunto de técnicas e
táticas para lidarem com a dinâmica do rio e floresta no período das chuvas e
do sol forte. Desse movimento a pesquisa mapeou diferentes artefatos
confeccionados pelas famílias com produtos retirados da floresta e usados de
várias formas na vida cotidiana, que indicam a relação com a ancestralidade indígena. Os dados de campo demonstram ainda que no
período da borracha o Mapuá foi controlado por seringalistas que se intitulavam
coronéis e donos desse espaço. Um sistema que vai perdurar por longas décadas,
sob a tutela dos herdeiros dos coronéis e patrões. Daí os moradores em sua
maioria afirmarem que o Mapuá era “um cativeiro” (JH 2017). Para driblar as
proibições e sanções historicamente impostas foram criando formas de lidar com
as dificuldades e se relacionar com o ambiente. Uma das estratégias apontada como
importante pelos entrevistados foi a própria criação de uma reserva
extrativista, que resultou da reivindicação das famílias para livrarem-se do
domínio dos patrões e, assim, poder acessar a terra e o rio tradicionalmente
ocupados. É bom frisar que nesse rio, terra e floresta não estão apenas os
recursos naturais que garantem a existência das famílias, mas, está sobretudo a
história, a memória de cada pessoa, família. Ficou evidenciado que as vilas,
edificações (inclui casarões antigos e cemitérios com sepultamento antigo),
paisagens são lugares de memória, assim como possuem uma memória. A memória, na
verdade, é o elemento que dá sustentação ao patrimônio cultural e material
desses agentes. É o elo que conecta passado, presente e futuro. Isso nos ajuda a
defender a ideia de que o Mapuá é um lugar de memória, um território onde cada
pessoa e famílias ao longo dos anos vem criando suas histórias, memórias,
desenvolvendo suas práticas, costumes, hábitos, etc. É, portanto, um espaço
histórico, social e culturalmente transformado, praticado e construído pelo
trabalho das diferentes gerações, por isso ser um grande patrimônio natural,
material e cultural, que precisamos estudar e, também, preservar.
Blog MAAF:
Vivemos um tempo de luta pela não invisibilidade das comunidades
agroextrativistas na Amazônia. Como a Memória pode ajudar na mobilização das
famílias para que sejam respeitados seus direitos?
Eliane Costa:
A memória é a base construtora da identidade cultural de cada povo, logo,
precisamos entendê-la como condição sine
qua non para que os povos tradicionais tenham direito ao seu modo de vida,
isso inclui o acesso à terra, ao rio e aos recursos naturais e ao próprio passado. Por meio da
memória esses coletivos podem demonstrar e afirmar que tradicionalmente ocupam
determinado território, e com isso, reivindicar o direito de permanecer nesse
lugar. Mas para que a memória ajude na mobilização dos agentes tradicionais
quanto ao respeito e, principalmente, a garantia de direitos, faz-se necessário
que seja valorizada e reconhecida. Para isso, faz-se necessário uma escola e
uma pedagogia que de fato promova a valorização da memória e história desses
povos.
Nossa Senhora de Nazaré, lago do Jacaré. Foto: Eliane Costa
Blog MAAF:
Que recomendações apresentas às instituições e tomadores de decisão para a
valorização da história local e inserção destes resultados no conteúdo
pedagógico de Breves e do Marajó?
Eliane Costa:
A principal recomendação é que se priorize a história local, que docentes e
discente sejam oportunizados a ter acesso ao saber produzido sobre a região
pela pesquisa científica. A sugestão é que essas pesquisas sejam inseridas nas propostas pedagógica das escolas e da Secretaria de Educação. Durante
a pesquisa ficou evidente que o currículo das escolas pouco dialoga com o saber
local. Então é urgente que se promova esse diálogo e a inserção dessas
pesquisas poderá potencializar na promoção de uma educação capaz de reconhecer
as memórias, as práticas e saberes locais.
Blog MAAF:
O que esta investigação científica contribuiu para a sua própria formação como
educadora e cidadã?
Eliane Costa:
A pesquisa me abriu várias frestas. No campo acadêmico me possibilitou ampliar
conhecimentos sobre o Marajó, conhecer aspectos identitários de nossa
ancestralidade indígena, como também dialogar com diferentes fontes e autores
do campo da História, da Arqueologia e da Antropologia. Um exercício que tem
sido de salutar relevância para pensar a pesquisa e a educação no Marajó. Cabe
destacar nesse exercício a importância do aprendizado em dialogar com a cultura
material enquanto fonte de conhecimento. É um aprendizado que tem me possibilitado
ampliar o diálogo epistemológico que venho fazendo. A pesquisa tem me permitido
assim contribuir com a realização de um trabalho sensível as particularidades
de nossa região.
Eliane Costa no barco em viagem de volta do Rio Mapuá.
Blog MAAF:
Que conselho darias para os jovens da região, onde muitos ressentem-se que não
tem acesso às obras que descrevem a milenar história e cultura do Marajó?
Eliane Costa:
Não seria bem um conselho, mas sugestão que considero fundamental para o
desempenho acadêmico e pessoal. A sugestão aos jovens marajoaras é que apostem
na educação. Quanto ao acesso às obras cabe informar que é possível ter acesso a
algumas dessas produções, pois estão disponíveis em sites na internet. Na
página do Museu Goeldi é possível obter cópias dos primeiros Boletins
publicados por essa instituição que tratam sobre o Marajó. Também alguns textos
da professora Denise Schaan estão disponíveis em diferentes revistas que podem
ser baixadas na internet. Hoje, com a internet as produções já estão mais
acessíveis, o que era bem mais complicado alguns anos atrás. Ainda temos a
limitação quanto as publicações em língua estrangeira, pois, embora algumas
estejam disponíveis a dificuldade com outro idioma impossibilita esse acesso.