A camisa tinha o tamanho de um vestido em mim. Eu, pequenino, só teria as duas mãos de fora, a canela e os pés. O resto do corpo estava envolto por aquela camisa amarela surrada, timinho de futebol para jogar atrás do Ginásio de Monte Dourado, num campo de areia não tão pedrado quanto o famoso "sangue de areia", porém suficiente pra ralar qualquer joelho.
Eu nem iria escrever hoje. Sei lá. Estou pra baixo. Influenciado pelo aumento vertiginoso dos casos de Covid-19 no país. Sentei aqui na frente do computador a ensaiar uma tecladas até deixar o momento me levar. Faria uma montagem-charge? Faria um áudio da Rádio Buca da Noite? Não, não, sem vontade. Lembrei-me desse primeiro jogo meu, em 1986, na ideia que eu seria atacante. Saí de casa todo animado pra esse jogo das cinco da tarde para estrear na ponta-direita.
"Lá vai Carlinho, rápido, insinuante, guisa pra cá, guisa pra lá, é muita habilidade... Uóooooo grita a torcida. Olé. Olé. Parece o Renato Gaúcho".
Pára.
Renato Gaúcho é Bolsonarista. Vai pra lata de lixo da História.
...
Tanta gente a nos sufocar hoje em dia. Atacando-nos de todas as formas, em todas as almas.
E eu, Carlinho, naquela memória pendurada na árvore do Jari, fui indicado pelo arremedo de técnico do meu time a não ser atacante e sim lateral-direito.
"Carlinho, Tu vais marcar aquele lá, o Gilberto".
Esse sim um pequeno craque.
Minha expectativa de driblador murchou. Franzi a testa chateado. Fazer o quê? Vou marcar o tal Giberto. E pelas embaixadas na hora do aquecimento, o cara era fera.
Na primeira bola que disputo, recebo um balão. Os homens do alambrado gritam "OLÉ!". Fui novamente: bola debaixo das pernas.
"OLÉ".
No início até pensei que teria uma crise, daqueles meus arroubos, sentar no chão e chorar; ou sair quebrando tudo pela frente. Resolvi que não. Segui no jogo.
Drible da vaca (que chamávamos "chagão"). O moleque corre muito!
Chapéu (diferente do balão, que é mais alto).
Guisa de Gilberto pra cá.
Guisa de Gilberto pra lá.
Caí de bunda no chão numa freada de bola que ele deu.
Os homens no alambrado rindo de mim. Gargalhavam. "Pede pra cagar e sai!!". Gritavam.
O jogo rolando. Fim do primeiro tempo.
Começa o segundo tempo.
E num momento tocante à todos simultaneamente, os expectadores barrigudos do alambrado começaram a perceber que o jogo estava empatado e que Gilberto só firulava, driblava-me sim, mas não prosseguia muito perto da trave, eu sempre na perseguição. Não dei pernada. Não fazia falta. Perseguia, perseverava. Atrapalhava, chutava pra lateral. De repente Gilberto cansou-se, estava sem paciência, pois eu não o largava. Eu sei que individualmente estava sendo humilhado, mas o foco de marcação não me abandonava.
O jogo terminou empatado. Gilberto não fez gol. Olhou pra mim, passou a mão na minha cabeça, meio carinho, meio alertando. Admitindo que eu não desistia fácil.
Os homens do olé passaram a grunhir comentários. Alguns me elogiaram. Talvez eu tenha virado o jogo das opiniões quando Gilberto e eu fomos atrás da bola e juntos demos com as caras na cerca de arame demonstrando que o esforço estava nivelado. Falávamos de brio na atitude.
O brio de quem está sendo driblado pelos acontecimentos como os de hoje.
E caído por ter sido driblado vergonhosamente pela estupidez das pessoas na pandemia que nos assola, eis que o menino Carlinho me chama pro jogo.
Tá certo, Milton, "... toda vez que o adulto fraqueja, ele vem pra me dar a mão...".
Aí, você que me lê, deixa a tua criança te levantar.
Bora pra luta.