(Imagem: Record)
Belém, 13 de agosto de 2015.
Às cinco horas da manhã estávamos em Ulianópolis, num frio de madrugada e secura da poeira. Nossa equipe chegava do Centro de Treinamento em Manejo Florestal do Instituto Floresta Tropical e de lá seguiria para Belém. Num susto do repente da conversa, um cidadão que não conheço chega perto de nosso veículo afirmando que Davi Resende "era tão rico e morreu como qualquer um morria". Eu respondi "Bom dia". Ali estava um homem de 39 anos (depois ele me diria a idade), sem o braço direito e tendo apenas um dedo na mão esquerda.
No seu puxar de conversa, disse que não adiantava ser tão rico e morrer um dia como qualquer um, dirigiu-se novamente ao mais homem abastado então daquela cidade, já conhecido por mim pelas notícias de grilagem de terras em todo o Pará vinculadas ao nome Davi Resende. Mas não foi o grileiro que chamou minha atenção. Foi a história de Otaviano, registrado no crachá que lhe dava permissão de circular nos ônibus estaduais e interestaduais por sua situação especial. Antes de subir no veículo, comprou uma água mineral, pediu à vendedora que lhe abrisse a garrafa. Esta perguntou como se virava, se sempre pedia auxílio. "Quase nunca", disse Otaviano. "E por que me pediu?", retrucou a senhora. "De vez em quando é bom pedir". Sentenciou.
Aquele cidadão sobrevivia da venda de canetas, chaveiros e fones de ouvido. Ia para Imperatriz. Viajava para Belém. Voltava para Gurupi. "Para Gurupi, lá na divisa com o Maranhão??", perguntei. "Não, aqui, aqui se chamava antes de Gurupi. Eu só chamo assim". Não sabia deste nome para Ulianópolis. "Vou lá pra Belém e consigo tirar meu salário das canetas e volto pra cá. Moro sozinho... Nunca precisei roubar, só trabalhar". Quando dirigi a conversa para o tempo de trabalho dele, cortou com a seguinte frase: "desde pequeno, desde a serraria, mesmo com meu acidente...".
Otaviano sofrera sua tragédia aos 11 anos de idade. Uma criança. Um sofrimento imensurável não só físico, mas da alma de uma criança, de adolescente e de adulto em uma só pessoa todos estes anos. Olhei para aquele homem franzino a fazer mil contas de cabeça a medir a viabilidade econômica de viver da caneta, do chaveiro, na habilidade de ajeitar seus molambos nos poucos suportes do corpo. Não sabe ler, nem escrever. "Nossa diferença, já que temos 39 anos, é a oportunidade que cada um teve ou não teve!", concluí.
E pensei na exploração do trabalho infantil naqueles anos 1980. E pensei no Estatuto da Criança e do Adolescente graças a Deus hoje presente. E pensei naqueles que se fizeram milionários às custas de muitos sem informação nestes municípios afora. Madeira em troca de vidas. E divaguei nas reclamações de jovens atualmente para coisas efêmeras, bobas, irrelevantes.
Presenciei o senhor Otaviano falar para uma moça a pedir uns trocados para os viajantes que por ali passavam. "Ei moça, por que tu não vende canetas? Não vende chaveiros? Num dia eu faço setenta reais mesmo assim do jeito que tô".
Na despedida nossa, recomendei que estudasse; que aprendesse a ler e escrever, pois era bom de cachola.
"Mas é muito difícil".
"Mais difícil você já fez. Esta aí você tira de letra...".
Ele sorriu. Fez sinal de quem escrevia o compromisso.
Naquela pouca mão.
Naquele muito espírito.
"Mais difícil você já fez. Esta aí você tira de letra...".
Ele sorriu. Fez sinal de quem escrevia o compromisso.
Naquela pouca mão.
Naquele muito espírito.
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